Liza K é cantautora, professora e baixista do bloco Mulheres de Chico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia com café e rádio MEC, acessando a música barroca (a que mais gosto) para abrir as janelas. Em seguida preparo as aulas do dia (sou professora de música) e estudo contrabaixo, meu instrumento de trabalho (sou baixista do Bloco Mulheres de Chico). Depois de colocar a agenda e e-mails em dia, gosto de pedalar, nadar e fazer musculação para manter a disposição e resistência. Esta é a minha rotina de um modo geral.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A noite sempre me chama pra trabalhar. Quando fico menos presa com os compromissos diários, esvazio a cabeça e consigo buscar a inspiração com mais tranquilidade. Sou compositora e como letrista, não costumo escrever por encomenda, exceto quando componho trilhas sonoras para teatro. Não tenho um ritual propriamente dito para iniciar os trabalhos, mas costumo ter na bolsa um bloco para anotar as idéias que surgem tanto em casa como na rua. Uso também um gravador ou o celular para guardar as frases que chegam instantaneamente em qualquer momento, em qualquer lugar, antes que a palavra escape. No depoimento de Carlos Malta no meu vídeo release tem uma frase que gosto muito: “Não é a pessoa que escolhe a música. A música que escolhe a pessoa.”
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse acima, na maioria das vezes não escrevo por encomenda, o que me dá a liberdade de escrever em qualquer momento, quando necessito registrar algo inportante.
Existem períodos em que escrevo mais letras e outros em que escrevo mais melodias, mas procuro trabalhar e equilibrar as duas coisas paralelamente, fechando a ideia em música e letra juntas. Quando o texto não pede uma melodia, este vai para o “diário de reserva”.
Quando falo em criação ou composição, no meu caso, música, não gosto de usar a palavra meta, pois não quero beirar a “composição burocrática”. Existem meses mais produtivos, onde as ideias brotam sem parar, mas existem períodos mais contemplativos que talvez sejam similares ao período de gestação onde o terreno é adubado para o porvir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de escrever frases soltas sobre imagens, fatos, pensamentos ou afirmações que não necessariamente são letras de músicas, mas sim anotações úteis que podem servir de “chave” para algo mais adiante, seja música ou texto. E assim vou guardando e armazenando com planos de reunir e organizar tudo o que não for letra de música em um futuro livro. Talvez este seja um ritual inconsciente, inclusive quando essas idéias (melodias com e sem texto) se apresentam através de sonhos. Para estes casos já tenho o gravador à postos ao lado da cama. Tenho algumas composições que vieram inteiras através de sonhos e outras que se apresentaram somente com o refrão me deixando a tarefa de completar as outras partes.
Quando tenho fragmentos diversos anotados em variados contextos, procuro agrupá-los em torno de um tema central combinando as ideias. As anotações funcionam como “mapas-guias” e perfeitas referências. Uma espécie de quebra-cabeças bem divertido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Vejo que no âmbito da criação existem períodos mais férteis do que outros, mas isso não é uma desvantagem, pois considero que as pausas podem ser grandes aliadas, onde temos espaço para semear, desenvolver e amadurecer como seres humanos sobreviventes neste mundo de tantas lutas principalmente na área da cultura. Parar e dar um respiro é importante para prosseguir e evitar atropelamentos. Acredito que isto faz parte dos sinais de uma longa estrada.
Quanto aos medos e angústias, nunca tive a preocupação de ter a aprovação do público ou expectativa de obter um grande sucesso. O retorno que vislumbro é fundalmentalmente e exclusivamente interno. Quando escrevo ou componho, faço unicamente para mim e por mim, pensando na minha própria satisfação de expressar o que realmente sinto, sendo fiel à mensagem que desejo imprimir. É imediato o alívio de colocar “algo” para fora. Vejo a arte como um filho que quando botamos no mundo, passa a ser dele também. Por isso a palavra lançamento é muito bem empregada quando concluímos uma produção, pois o trabalho é lançado no ar para o mundo e para todos, deixando de ser exclusivamente nosso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou extremamente exigente com a finalização de um projeto ou produto. Até que a obra se conclua, passo por várias aprovações pessoais, analisando todos os caminhos e bifurcações possíveis para em seguida me deslocar e me colocar como espectadora. Depois de observar tudo de fora com um olhar auto-crítico, avalio se o caminho escolhido é realmente o mais adequado. No meu caso, a música quando está no “forno”, ela própria se comunica e sinaliza se falta algum tempero, mas é preciso estar aberto e atento à esta troca. Às vezes este processo pode ser mais demorado ou em outras vezes pode ser mais dinâminco, mas acredito que nesse momento não pode haver regra e sim muita paciência. Com certeza o trabalho por encomenda flui de uma outra maneira, onde as escolhas caminham junto com as ampulhetas.
Antes de gravar, tocar no show ou lançar uma música, costumo mostrá-la em primeira mão para alguns amigos músicos ou não e pessoas mais próximas que acompanham meu trabalho. Vale dizer que o movimento dos saraus de compositores tomaram força há alguns anos, tanto na cena carioca como em SP, e este é o local perfeito para apresentar as novidades, perceber as reações e exercitar a troca fazendo a arte circular.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Consigo me adequar à tecnologia de acordo com minhas necessidades e ferramentas básicas de trabalho. Gosto de usar não só os programas de texto, mas também explorar alguns programas de áudio. Quando comecei a compor trilhas sonoras para teatro, conheci alguns programas específicos de áudio e neles pude experimentar sonoridades, mapeando os arranjos. Nesta hora, com certeza, o trabalho de composição começa a interagir com o trabalho de produção de áudio e para isso deve haver a disposição de acompanhar os passos velozes da tecnologia. Sendo assim, optei pelo caminho mais simples, onde construo os projetos e arranjos utilizando os programas mais intuitivos e mais adiante, no momento de gravar, encaminho a pré-produção já montada (DEMO) para um estúdio equipado com recursos mais avançados de gravação, finalização e mixagem.
Meus primeiros rascunhos são quase todos feitos à mão, em cadernos, mas eventualmente anoto no celular ou gravo para depois passar a limpo ou trasncrever. Quando os insights surgem fora de casa ou em viagem, qualquer pedaço de papel é bem vindo!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Com certas vivências musicais dentro dos sonhos, somadas a algumas leituras espirituais, comecei a dar crédito a um termo que desconhecia: Inspiração Divina. Não posso afirmar que todas as minhas ideias vêm através de sonhos, mas uma boa parte delas. E como nada chega de bandeja, estas ideias aparecem em partes fragmentadas ou muitas vezes completas, mas pedindo sempre um complemento. Taí um “jogo” desafiador e um bom exercício, pois devo ser fiel a imagem e recado do sonho. Alguns sonhos apresentam partes maiores de música, outros menores, mas em todos os casos me empenho em traduzir, anotar o que ouvi ou apertar o rec rapidamente para reproduzir e segurar a melodia, frase ou palavras. Algumas (poucas) vezes, me lembro de ter ficado bem triste por não ter acordado e deixado passar. Perder é sempre uma sensação dolorosa, mas gosto de acreditar que as ideias podem voltar a qualquer madrugada. Ouvidos abertos! Importante dizer também que mesmo perante a estas ideias (dos sonhos), aplico a auto-crítica e quando acho que não é tão bom, acabo descartando-as. Contudo, existem as ideias que aparecem enquanto estou desperta e assim utilizo o mesmo recurso de trasncrever tudo instantaneamente.
Não costumo usar nenhum método de criatividade. Apenas deixo fluir a sensação, o sentimento, o insight, uma saudade, uma tristeza, uma desilusão, uma decepção, uma alegria, uma surpresa. Às vezes a letra vem primeiro e outras a melodia chega na frente, mas já fiz músicas com letra e melodia nascendo juntas. Não existe uma regra.
A maioria das minhas letras falam de amores, desamores, dissabores, dores, mas também gosto de falar das cores das flores, celebrando a existência da vida, vibrando positividade. Tive uma fase em que acreditava que a tristeza me ajudava a compor, mas agora tirei os pés dessa areia e levo fé que a criação é uma questão de estado de espírito capaz de imprimir tudo o que estiver dentro da gente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Amadurecemos a cada segundo e conosco vem a arte. Dou crédito a todas as fases de criação e não faria ou refaria nada do que já fiz anteriormente em músicas já gravadas ou não. É interessante ouvir os primeiros registros das primeiras composições e perceber as nuances da caminhada. Quando comecei a compor usava fitas cassetes para armazenar as ideias e hoje ouvindo estes registros, consigo diferenciar uma canção madura daquela outra que ainda precisa de ajustes ou pode simplesmente ser descartada e deixada na gaveta. Escolho as mais maduras para lançar em Cd/Ep físico ou em plataformas digitais em formato de singles. Creio que todo artista tenha suas obras de “gaveta”, ou seja, aquelas criações que marcaram um momento, mas têm outro lugar, ou seja, estão em processo de construção, ou somente serviram de “atalho” para uma nova direção. Considero estas “obras descartadas” muito úteis, pois servem como ganchos imprimindo uma fase, um ciclo da história do artista.
Gosto do papel, do lápis e caneta onde a gente escreve e risca sem usar a borracha. O riscado permanece a vista, a olho nu, para tempos depois ser visto apresentando a ideia anterior. Este é um hábito que aplico ao escrever no papel, mas sigo o mesmo esquema no computador quando faço o esboço do texto e coloco entre parenteses todas as possibilidades de palavras, deixando em negrito tudo o que se adequa mais. Mesmo assim, mantenho as descartadas a vista, sem apagar, pois toda ideia é primordialmente uma ponte que nos leva a ideia final.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou organizando um livro com trechos de pensamentos de tudo o que não usei em letra de música, aproveitando as ideias que ficaram guardadas e proporcionando-as um lugar ao sol. São anotações que serviram de gancho para chegar nas letras ou simplesmente frases em cadernos datadas e com locais de referência. Uma espécie de colcha de retalhos de palavras onde monto as atmosferas em capítulos. Não tenho a pretensão de vender milhões de exemplares, mas só o fato de registrar, agrupar as ideias peneirando-as, ligar os sentidos e significados dentro de uma gama infinita de conexões, traz um alívio intraduzível. Este projeto nasceu com o único propósito de esvaziar, dar espaço para o novo e reinventar.
Sobre qual livro eu gostaria de ler e ainda não existe, no meu caso, talvez você possa me perguntar qual música eu gostaria de ouvir e ainda não existe. Mesmo assim, apesar de ser uma leitora curiosa e apreciadora musical, é muito difícil essa pergunta já que não li todos os livros que existem e nem ouvi todas as músicas. Meu receio é te responder citando algo que já existe. Por exemplo: o som do universo ou do silêncio. Gostaria de ouví-los como música, mas acredito que isso seja impossível neste mundo já que o verdadeiro e puro silêncio não existe. Temos uma ideia do silêncio, e achamos que ele existe, mas isso é um engano. Ele pode existir no Universo, mas não estamos lá agora pra saber. Sei que com o surgimento da New Age, algumas simulações sonoras sobre o som do Universo já foram apresentadas, executadas ou gravadas com sintetizadores produzindo estes efeitos sonoros. Dentro desta pesquisa, mesmo com todo seu requinte, sempre teremos dúvida do som real do Universo enquanto não respiramos por lá. É como a morte que não conhecemos ainda.