Lívia Prado é escritora, revisora e tradutora, mestranda em Estudos Latino-Americanos no Uruguai.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias ideais, antes de começar a trabalhar, encontro uma brecha de sol no frio uruguaio e leio com café por algumas horas. Mas essa é a exceção, e não a regra. Essas poucas horas de trégua têm sido raras; o que nunca muda é o café.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou lenta para pegar no tranco: algo como um motor a álcool num dia de inverno. O tempo que passo, efetivamente, trabalhando, escrevendo ou estudando, é mirradíssimo. Normalmente passo muitas horas dedicada a uma atividade, em abstrato; e dentro dessas muitas horas tenho intervalos de hiperatividade em que faço praticamente tudo. A procrastinação está aí, claro, mas está, além dela, essa necessidade de tempo vazio ao redor do tempo produtivo. Até porque não acredito em tempo morto. Quando não escrevo é quando mais e melhor escrevo: andando, falando com amigos, ouvindo música, andando, pensando; sobretudo andando. As ideias me vêm, normalmente, em movimento. Mais que ideias, frases. Por isso pode parecer que psicografo: porque me sento e o que sai, sai rápido e quase definitivo. Mas isso não significa que tive um surto de inspiração, e sim que já escrevi e editei muito na minha cabeça antes de pegar no papel. Exemplo: demorei cinco meses para responder essa entrevista, mas fui dialogando com ela aos poucos enquanto caminhava por Montevidéu, enquanto discutia com amigos num bar… Para mim, grande parte de escrever é manter-se em estado de escrita: exercitar a curiosidade, a indignação, a escuta. Escrevo quase exclusivamente, à noite.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo, como disse antes, em arranques. Me provei incapaz de cumprir metas de meses: nem me atrevo a pensar em metas diárias. Certamente é algo que gostaria de aprender a fazer com o tempo, nem que seja com o interessante exercício de escrever sobre minha dificuldade em escrever. Guardados as devidas e quilométricas distâncias, isso pode trazer resultados impressionantes: o romance luminoso de Mario Levrero que não me deixe mentir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para escrever algo que se assemelhe à literatura (palavra pesada que excede em muito as capacidades da minha estrutura óssea), parto geralmente de algum disparador, e o resto é fluxo. Trabalho como revisora mas não tenho nenhum talento para me autorrevisar. Já para a escrita acadêmica, sou pura notas: esqueleto de ideias centrais, como conversam e se desentendem, e dá-lhe recheio.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O medo de não corresponder às expectativas é, acho, meu inimigo principal. Às vezes brinco, com terrível seriedade, que só poderei realmente escrever depois que fizer terapia. Os textos que tenho respingados em publicações por aí normalmente só surgiram porque me convenci bastante bem que nunca seriam publicados. Pequenas armadilhas para mim mesma. A procrastinação me fez desenvolver esse funcionamento arisco: não escrevo, não estudo, não trabalho, até que, no momento final, escrevo, estudo, trabalho. Só tem funcionado porque, enquanto procrastino, a cabeça não para, escreve à revelia de mim. Não me engano tão bem assim, afinal.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não reviso quase nada porque, se reviso, me acovardo. Tenho muita dificuldade de ler algo depois que escrevo, inclusive ou especialmente depois de publicado. Não conseguir mostrar o que escrevo a outras pessoas é um dos meus mais inaceitáveis pecados: ego frágil.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho fases. Já fui de tomar notas em mil caderninhos que nunca mais olhava, ou olhava anos depois; de só conseguir escrever em papel, de precisar dessa obscena proximidade entre coração, cabeça e mão. Agora, no entanto, tenho escrito quase só no computador. Acho que isso tem a ver com escrever em fluxo. Como o tempo da digitação é menor, tenho menos tempo de desistir da empreitada, uma vez iniciada. O resultado manuscrito é, porém, diferente. Quase como se duas inteligências diferentes operassem. Talvez seja um bom exercício: glosar o mesmo mote em duas plataformas diferentes, papel e tela, e ver o que acontece. Claro que o que viesse segundo seria irremediavelmente influenciado pelo primeiro… Não sei, simplesmente sinto que é diferente, que aciono mecanismos outros. O mesmo vale para a revisão, aliás: percebo coisas distintas quando leio um texto no computador e quando o leio em versão impressa. Acho até que muda a vozinha na cabeça que vai emendando as palavras…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sou pobre em ideias. Sempre fui melhor em desenvolver ideias que em tê-las, infelizmente. Mas também em relação a isso tenho fases. Já funcionou muito bem pedir a amigos um par aleatório de palavras; em outros momentos, isso resultou inócuo. O que tento desenvolver agora, mais que um hábito, é a aceitação de que tenho momentos em que necessito escrever (soa a Rilke, não? —não escrever a menos que seja absolutamente necessário) e momentos em que não. Aprendi isso precocemente com relação à leitura: não sinto culpa, por exemplo, se começo um livro que sei bom e não o termino, pois entendo que aquele pode não ser o momento para ele. Inúmeras vezes voltei anos mais tarde a um mesmo livro e percebi que, aí sim, era a ocasião de lê-lo. Tento desenvolver o mesmo sentimento em relação à escrita: há coisas que irremediavelmente escreverei, mas talvez não seja agora o momento. E tudo bem. O mais fundamental para escrever, como sabe qualquer professor, da primeira série ao pós-doutorado, é ler. E nisso devo muito à tradução, que é a maneira mais atenta de ler.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria, provavelmente, “que merda é essa?”, porque é muito fácil ser arrogante no dia seguinte àquele em que se aprende, ou acha que se aprende, meia dúzia de coisas. E, por sorte, aprendi ou acho que aprendi muito no par de oficinas que fiz. Aprendi, especialmente, que uma vez escrito, o texto já não te pertence: o leitor fará dele o que bem entender, e isso é maravilhoso. Vi na prática aquilo que dizia o Calvino, sobre cada um ter sua biblioteca pessoal de referências e vivências, o que torna a experiência da leitura pessoal e intransferível. Não posso forçar no leitor um entendimento específico. Não se cruza duas vezes o mesmo rio, não há duas leituras iguais para um mesmo texto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever de pé. Gostaria de escrever algo com a história das ruas de São Paulo, sobre por que as que têm nome de mulher, por exemplo, geralmente não têm sobrenome. Sobre quem foram essas mulheres, essas Donas. Gostaria de escrever o diário de uma pessoa apenas tangencialmente louca, isto é, do tipo mais assustador de louco. Não sei. Coisas que vou marinando. Gostaria de ler mais livros que me encharcassem de música, como o “Sem vista para o mar” da Carol Rodrigues, que é um livro que não se lê, se canta.