Lívia Lakomy é jornalista e tradutora, mestre em escrita literária de Não Ficção e Tradução Literária pela Universidade de Columbia, em Nova York, e doutoranda em Estudos da Tradução pela USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bem que eu queria ter uma rotina! Eu gosto de colocar a culpa por não escrever tanto quanto gostaria em outros fatores (que não eu) e a falta de uma rotina é um deles. Sei que meu dia tem que começar com café, mas nem o tipo de café eu sei de antemão. Às vezes é um café passado em casa – ou café de coador, como preferem os paulistas – sem pressa alguma. Em outros dias é um café de máquina, coisa de quem já está meio atrasada. De vez em quando é uma média de padaria ou um expresso com leite de cantina ou de um co-working. O meu dia é um mistério até mesmo para mim, vou descobrindo conforme ele acontece.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de trabalhar pela manhã, olhar para o relógio e pensar “nossa, olha o quanto eu já produzi hoje e ainda tem um monte de dia pela frente!”. Se o trabalho vai bem, eu fico atrasando o almoço para não quebrar o ritmo e adoro quando isso acontece. Ontem mesmo eu fiquei trabalhando até as 15h e, quando cheguei no restaurante da esquina, já tinham encerrado os especiais do almoço. Paguei mais caro para comer? Sim. Mas a satisfação de ter sido tão produtiva no trabalho compensou ter perdido o estrogonofe.
Outra coisa que eu sempre soube sobre mim é que eu produzo muito quando estou “presa” em algum lugar. Pode ser uma aula, palestra, reunião, seminário… Aqueles ambientes em que você não precisa prestar tanta atenção, mas ao mesmo tempo não pode simplesmente pegar o celular e entrar no Facebook, sabe? Nessas horas eu pego um caderninho e a caneta corre, é muito fácil a cabeça desligar do que está acontecendo, já que o corpo não pode fugir.
Tenho um projeto que espero que saia em breve que tem a ver justamente com isso: uma antologia de poemas que escrevi em sala da aula desde a primeira série até agora, quando devia estar prestando atenção na professora. Cada vez que começava uma aula meio chata lá ia eu inventar um poema sobre o que estava acontecendo… Olhando nos cadernos antigos achei uns seis poemas que escrevi nas aulas teóricas da autoescola.
Obs: Agora que sou professora me sinto obrigada a pelo menos soltar uma nota de repúdio sobre este tipo de comportamento. Prestem atenção e respeitem os professores!
Outro lugar que funciona para mim são os já mencionados co-workings. Tem algo bacana em estar lá produzindo um texto literário ou uma tradução enquanto o resto do pessoal está trabalhando com business, marcando callse discutindo budgets. Ao mesmo tempo que me dá um sentimento bom de estar trabalhando em algo único, secreto, o ambiente também me tira da bolha em que escritores usualmente vivem. É um espaço em que não se consegue esquecer que a imensa maioria do mundo não tem o menor interesse em discutir a voz narrativaou qual a essência da não ficção. Isso sempre me faz questionar o que eu quero escrever, e para quem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária nem dedico um número de horas “x” para a escrita. Tenho vários projetos que administro ao mesmo tempo e cada um tem um deadline próprio, que pode ser interno ou externo. Dou foco no que é mais urgente – um reflexo daquela história da pergunta 1 de não ter uma rotina. Um exemplo: recebi este questionário aqui já faz umas duas semanas sem um prazo para enviar resposta. Assim, preferi priorizar a minha tese de doutorado, já que tinha uma reunião iminente com o meu orientador e precisava entregar mais dois capítulos.
Agora, esse questionário é o mais importante e vou responder todas as perguntas em uma primeira versão e mandar para alguns amigos lerem.
Falei para mim mesma que só vou partir para o próximo projeto (terminar a primeira versão de uma tradução que estou fazendo para revisão) quando terminar de escrever estas respostas aqui.
E depois da tradução provavelmente já vai ser a hora de voltar para a tese e escrever o último capítulo, ou então mexer naquele livro de poesias que mencionei acima.
EDIT: Agora já faz mais de um mês que recebi esse questionário e até já recebi mensagem perguntando se eu tinha esquecido… Na verdade já tinha terminado a primeira versão, mas como não tinha um deadline, acabei deixando outras coisas entrarem no caminho, especialmente com o fim do semestre letivo. Obviamente o meu método não funciona muito bem! Acho que isso casa muito bem com o que é perguntado abaixo, na questão 5.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ainda não me assumi completamente como escritora. Quando falo do meu trabalho, geralmente digo que sou jornalista e tradutora. Acho que parte disso vem de eu escrever quase que exclusivamente não ficção, esse “quarto gênero” que ainda é meio desdenhado. Até minha poesia e música podem ser chamadas de não ficcionais… Ironicamente, uma das questões mais importantes que eu trabalho com alunos e na minha própria tese de doutorado é que a não ficção não deve nada para ninguém, que quando é bem-feita é tão válida quanto qualquer romance ou poema. Sou uma militante da causa da não ficção.
Mas uma coisa é acreditar nisso, e outra é colocar isso em prática.
No fim das contas meu processo acaba sendo quase que como o de uma jornalista. Tenho uma pauta, ou tema, que quero trabalhar. Algo que me inquieta e sobre o qual eu sinto que tenho algo a dizer. A partir daí faço pesquisa, leio muito, vejo o que já foi feito e o que eu tenho a acrescentar nessa conversa toda que já está acontecendo.
Se – somente se! – eu achar que posso dar uma contribuição, eu construo meu argumento e o texto todo se encaixa em torno disso.
Essa fase de pensar o texto é cheia de listas e esqueletos do texto. O que vai onde (e por que vai nesse lugar e não em outro), quais são as transições, o que é essencial colocar… Sempre me pergunto: qual a maneira mais convincente e sedutora de expor esse argumento? A resposta é sempre diferente, pois acho que nos melhores textos o argumento, a estrutura e a linguagem têm que trabalhar em conjunto. Quando começo o texto já tenho uma ideia de onde e como ele vai chegar ao final.
Quando eu morava fora e escrevia em inglês isso ficava bem evidente. Mesmo nas melhores condições já era difícil fazer o leitor se interessar sobre o Brasil, então eu tinha que resolver esse problema por meio do próprio texto. Geralmente isso acontecia logo nos primeiros parágrafos, com algo que ancorasse os americanos no texto, ou seja, algo que tivesse a ver com o país e a realidade deles, seja por ser muito parecido ou muito diferente.
Nos meus começos de texto eu cuidava para que as frases e os parágrafos fossem mais curtos do que eu utilizaria em português, tanto por uma característica da língua quanto pelo desejo de capturar o leitor de primeira, e só então desenvolver o texto junto com ele. Também cuidava muito de colocar anedotas, metáforas, analogias – queria sempre que quem estivesse lendo pudesse se conectar a uma história que às vezes falava de um tempo e espaço muito diferentes, mas que no fundo era sobre temas muito simples e universais.
A estrutura do texto sempre era construída ao redor deste tema, desta âncora.
Quando eu escrevi sobre como o meu carinho pela língua portuguesa cresceu quando fui morar no exterior, por exemplo, minha âncora foi a ida da Carmen Miranda para os EUA. Ela tem uma imagem bem forte por lá até hoje, que eu logo já associo às paródias feitas nos desenhos do Pernalonga com o turbante de fruta na cabeça. Só isso já faz um trabalho enorme no texto, puxando uma imagem meio de infância, meio exótica, mas sempre de muito bom humor.
Depois eu introduzo o meu argumento sobre a importância da língua materna para cada um. Cito a Carmen falando inglês e brincando com a própria falta de proficiência nessa língua que, para ela, é desconhecida (a melhor frase: “I say twenty words in English. I say money, money, money and I say hot dog.”). Espero que a essa altura o leitor já esteja entretido, se divertindo com esses detalhes todos, com essas frases que, apesar de terem sido ditas em inglês, soam estrangeiras mesmo para ouvidos americanos. Talvez ele já esteja desenvolvendo uma empatia por essa personagem, talvez ele esteja pensando com carinho sobre a sua própria jornada ao aprender inglês.
A esta altura já consigo entrar no que eu realmente quero dizer: como a nossa língua materna é parte fundamental de quem somos. Como perdemos parte de nós quando somos privados disso e precisamos viver em outra língua.
Essas são coisas em que americanos médios não são forçados a pensar.
Ao usar a Carmen falando inglês eu posso construir um argumento que conecta com um leitor americano: aqui está uma personagem carismática, engraçada, com um óbvio controle sobre as suas ideias mesmo sem ter um controle sobre a língua. Como será que ela soa na língua materna dela, onde ela tem total domínio? Por que ela resolveu deixar isso de lado e ir para os EUA e “viver” em inglês?
Isso também me dá espaço para falar de mim já que eu, como a Carmen, também saí do Brasil/Português para ir para os EUA/Inglês e perdi minha língua, estou contando em primeira mão para eles como é essa experiência. O texto que eles estão lendo comprova a tese da escrita: I say Carmen Miranda and I say please and I say read me.
Mesmo antes de começar o texto eu já sabia como seria o final. Eu queria terminar com a minha visita à calçada da fama, no antigo Grauman’s Chinese Theater, em Los Angeles, onde a Carmen Miranda ainda é a única sul-americana a ter deixado sua marca, mãos e pés, no cimento. Seu VIVA! – em português – seria o momento em que todos os fios da história se uniriam: EUA, Brasil, inglês, português, Carmen e eu.
Depois que eu já tinha pensado e estruturado tudo isso foi que eu comecei a escrever. A resposta que tive foi excelente – na época estava cursando um mestrado na Universidade de Columbia e o texto foi escrito para um dos workshops em nonfiction. Até apareceu a oferta para que ele fosse publicado. Mas aí vem a lição sobre a realidade: você pode planejar o quanto quiser, mas quando entra a figura do editor, você tem que voltar para a vida real (e isso não é necessariamente uma coisa ruim).
Um dia ainda gostaria de ver esse ensaio sobre o português/Carmen no formato integral em algum livro, mas a versão disponível online é bem mais enxuta, conforme os padrões da revista online que o publicou. Poder ouvir e confiar no editor é fundamental, e eu tive a sorte de sempre trabalhar com bons editores, mas na hora de escrever eu ainda sonho com a versão “perfeita” e só depois faço os ajustes necessários.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como eu lido? Muito, muito mal.
As maneiras como eu não sei lidar são muitas para listar aqui, mas um exemplo é o caos mental explicitado na terceira pergunta: uma pessoa que lida com tantos projetos que demora séculos para terminar qualquer coisa.
O que acho mais estranho ainda é que em certos momentos da vida já fui o completo oposto disso, tive a paciência e serenidade de cursar cinco anos de uma faculdade que nunca me faria feliz (a ainda passei na OAB, para coroar essa total falta de noção).
Em minha defesa, tudo o que posso dizer é que sou muito mais feliz escrevendo, mesmo que isso envolva o caos, a procrastinação, as travas, a ansiedade, o drama e o mistério sobre como será o meu primeiro café do dia.
Durante os anos em que meus dias eram previsíveis e quase não envolviam arte na minha rotina, eu acabava fugindo pra dentro de livros para ver o que estava rolando por lá.
Enfim, ainda lido muito, muito mal com todas essas coisas. Mas antes isso tudo do que a calmaria.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tive uma professora que falava que o jeito de escrever é se preparar o máximo que você puder e depois só deixar fluir. Gosto dessa ideia. Sempre fiz mais ou menos isso sem nem perceber. Claro que isso tem a ver com o tipo de coisa que eu escrevo – essa professora liderava um workshop sobre reportagens longas, que é o tipo de coisa que me atrai. Talvez um professor de contos ou de ensaios líricos dissesse algo bem diferente.
Quando finalmente começo a escrever é por que já pensei bastante no que eu quero dizer, já fiz pesquisa, listas, esqueletos… Esse trabalho de pré-escrita é quando mais reviso e edito. Depois disso “só” falta mesmo preencher os espaços com palavras. Foi o que fiz no trabalho da Carmen, que mencionei acima. Depois de todo o planejamento, a parte de escrever foi a mais simples, feita quase sem pensar.
Claro que sempre reviso depois e passo para alguns colegas como o Daniel Knight, que já deu seus pareceres aqui nesse site. Participo também de um grupo de escrita com autoras muito boas – gente bem mais experiente que eu. Boa parte desse pessoal já passou pelo “Como Eu Escrevo.”
Publicar é outra história… Na minha experiência, ainda que limitada, nunca aconteceu de eu conseguir publicar exatamente o texto que eu escrevi. O tamanho é geralmente é o principal problema, mesmo em publicações online, e acabo tendo que cortar bastante do trabalho original e me consolar pensando que um dia ainda acho espaço para a “versão da autora.”. Não sou purista e faço essas mudanças de maneira tranquila, entendo o aspecto prático da coisa e tive sorte de ter editores muito bons. Também tem o fato de que virei professora e agora sou eu mandando outras pessoas revisarem, corrigirem, mandarem o texto bons leitores… Por isso reforço ainda mais o que disse na pergunta acima: editar é preciso. E é uma arte.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Anotar ideias, fazer listas, montar os esqueletos e traçar a narrativa que vai ser construída são trabalhos para papel e caneta. Escrever o texto é trabalho para computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu observo e me dou liberdade para ser tão curiosa quanto eu quiser, não importa o assunto. Passo horas, dias, obcecada com alguma coisa que parece não ter nada a ver com a minha vida cotidiana. Minha biblioteca não faz sentido, meu browser às vezes chega a ter centenas de páginas abertas… Fico pesquisando só por que gosto de saber das coisas: pode não dar em nada ou o resultado pode não ser imediato, mas tenho a satisfação do momento.
Por outro lado, também acho que todo escritor (ou artista) acaba tendo umas três ou quatro questões básicas que ele trabalha ao longo da vida e das quais não pode fugir, é uma coisa gravitacional. Não estou falando de temas mais simples, mas sim de questões essenciais que queremos explorar.
Para continuar no exemplo que estou usando nessa entrevista: se alguém me perguntar sobre o que é o ensaio que publiquei na Toast Magazine, não estaria errado dizer que é sobre a Carmen Miranda e sua ida aos EUA, sobre ter que aprender a viver em outra língua. Esse é o assunto superficial do texto. Eu passei muito tempo feliz da vida lendo e pesquisando sobre tudo que tinha a ver com a Carmen, a calçada da fama, os países lusófonos, etc.
Mas eu só quis escrever o ensaio por que ele era um jeito de falar de duas questões que para mim são cruciais: a busca por uma identidade própria e o fato de que, por ter uma alma de jacu, eu só consigo me comunicar direito pela palavra escrita.
Essa mesma ânsia de escrever sobre a busca por uma identidade também já me fez escrever páginas e páginas (e uma música) sobre a vez que nevou em Curitiba por meia hora, uma década antes de eu nascer! Ou um estudo etnológico sobre como brasileiros se comportam em outlets americanos.
Na superfície eu posso estar escrevendo sobre as novas tendências na fabricação de botões de calças jeans, mas certamente o texto vai trair algo dessas minhas questões.
E acho que isso é verdade para todo mundo – cada qual com seus questionamentos, claro. O que muda é o grau de consciência que temos disso e o quanto estamos dispostos a explorar estas partes de nós mesmos. Quando disse que só partia para a escrita quando sentia que tinha algo a dizer, era sobre isso que estava falando.
Sobre os hábitos da escrita, quero sempre que os textos funcionem além da superfície, que as partes funcionem como um todo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A primeira resposta que me veio à cabeça seria dizer para a Lívia de 15 anos: calma!
Mas logo já mudei de ideia.
Essa pergunta veio em um momento bom, pois estou justamente abrindo as pastas e cadernos antigos para compilar os textos que vão na minha antologia [aquela dos poemas escritos em sala de aula]. A ideia é a de fazer uma autobiografia de uma autora desde a alfabetização até o doutorado e a docência a partir dos textos escritos à época. Por sorte eu guardei quase tudo que produzi. É muita coisa. Fui jogando tudo em gavetas e agora me surpreendi com a quantidade de pastas e cadernos que encontrei. Eu escrevia como se minha vida dependesse disso e a produção oscila entre o melodramático e o (intencionalmente) cômico. Estou deixando o drama de lado (hormônios…) e focando no cômico, que é o que sobrevive até hoje.
Acho que me acalmei, fiquei mais pragmática, aprendi a revisar e estou bem mais econômica em relação ao papel. Penso que a Lívia de antes jamais planejaria um texto como eu faço agora – ela acreditava que o importante era escrever até a tinta da caneta secar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minha lista de projetos é longa e só perde para a de livros de cabeceira que ainda aguardam leitura. Acho que estou bem abastecida sem precisar pensar em coisas novas. O que quero mesmo é tirar os projetos que já comecei do papel e colocar no… papel.