Lindevania Martins é escritora e defensora pública, autora de Zona de Desconforto (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo todos os dias úteis. Tenho um trabalho formal, jurídico, que desenvolvo durante o dia, no qual lido com violência contra a mulher e população LGBT, numa atividade em que a escuta do outro, a oralidade, a pesquisa de teses a serem desenvolvidas e a escrita são fundamentais, embora seja uma escrita bem técnica, voltada a um fim bem específico e com circulação restrita. Não escrevo ficção pela manhã, nem uso redes sociais, senão me perco nos horários. Mas começo os dias sempre com café e música, ambos para dar energia, enquanto me preparo para sair de casa e ir trabalhar. No trabalho, as manhãs são variadas: às vezes, ouço pessoas que me relatam histórias de vida com graves casos de violência; às vezes, estou em varas ou juizados participando de audiências; às vezes, em reuniões institucionais ou articulações de políticas públicas; outras vezes, ministrando palestras ou no computador escrevendo petições, e por aí vai.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor a escrita de ficção pela noite, entrando pela madrugada. Haruki Murakami é uma das minhas inspirações ao lidar com os espaços reservados para os diversos tipos de afazeres, ao abrir espaço numa rotina atribulada e que muitas vezes sufoca nossa subjetividade. Ritual mesmo, só o de ouvir minhas playlists preferidas no Spotify enquanto escrevo. Mas para certas escritas, o silêncio é melhor. Então, vamos de de John Cage, 4’33”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sento para escrever contos e poesias em períodos concentrados. O trabalho como operadora do direito me demanda muito e por isso escrevo à noite, aumentando os períodos de escrita nos fins de semana, nos feriados e nas férias. Contudo, todos os dias algo chama minha atenção e rabisco em qualquer coisa que tenha à mão, inclusive nas pautas de audiências. Poder exercitar essa escrita é algo muito importante porque me reconecta comigo mesma, faz com que eu lembre de como podemos ser tão facilmente massificados, objetificados e esvaziados em nossa subjetividade, me permitindo opor resistência a esses processos brutalizadores.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não diria que é difícil começar. Difícil é finalizar o que se começou. Um tanto porque não se sabe exatamente qual o melhor destino para aquela história, a melhor finalização para aquele poema. Outro tanto porque às vezes é difícil abandonar certos personagens e se quer sempre retornar a eles, num processo de escrita cuja tendência é de não findar nunca. Outras vezes porque o cansaço é tanto que parece supérfluo tudo que não seja dormir.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei lidar com procrastinação e ansiedade. Elas estão no rol das coisas com as quais não sei lidar. Acredito que nenhuma vida é livre de angústias, de receios e contradições. A minha não é. Então, tento encarar tudo isso como parte natural de um processo. Tento negociar estados de trégua, sabendo que serão sempre provisórios. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, gosto de pensar que não me preocupo com aprovação social. Mas isso é apenas uma fantasia que me acalma e me faz bem. Volta e meia sou flagrada me preocupando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre escrevi muito e sem propósito. Estava sempre criando personagens e situações a partir de coisas vividas, lidas ou assistidas, nas telas do cinema ou TV, que remodelavam o mundo à minha maneira, sabendo que ali eu poderia ser arbitrária, vingativa e até mesmo incoerente. Essa escrita era um misto de escapismo e ao mesmo tempo uma vontade de permanecer. O texto estava pronto quando eu não sentia mais vontade de escrever. Não precisava revisar, era para consumo interno. Quando eu decidi publicar, todo um novo horizonte se abriu. Eu poderia brincar com os textos de diversas formas, disfarçar minha voz de muitos modos, mentir e falar a verdade, me inserindo de algum modo numa ordem pragmática de mundo. Essa escrita, na qual eu gastava tanto tempo e que gerava desconfiança, iria parecer algo respeitável. Comecei a revisar de forma obsessiva. Nunca sei quando um texto literário está pronto, só sei que é preciso parar, porque se tiver tempo, posso revisar infinitamente. Tenho mostrado o que escrevo para pessoas cujo olhar e cujo gosto se aproximam do meu e que imagino que farão críticas mais significativas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou entusiasta da tecnologia. Pesquiso ferramentas tecnológicas e estou sempre testando um aplicativo novo. Escrevo muito no computador, no tablet e no celular. Gravo áudios e depois digito. Uso ferramentas de conversão, compartilhamento e transfiro arquivos de um dispositivo para outro. Só escrevo à mão quando não tem outro jeito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Creio que nós todos somos múltiplos. Fernando Pessoa materializou essa multiplicidade através da criação dos heterônimos, dando a cada um deles personalidades diferentes. Então, as minhas ideias vêm desses múltiplos que nos habitam e de suas vozes e olhares igualmente diferenciados. A minha rotina de trabalho formal também é muito variada e todos os dias estou ouvindo histórias. Tento não me inspirar nessas histórias para meu trabalho de ficção. Muitas delas são brutais demais, muitas delas pareceriam muito inverossímeis, além de que não considero ético ultrapassar certas fronteiras. Mas tudo isso me constrói, habita meu imaginário até de forma inconsciente e às vezes é preciso expulsar certos conteúdos.
Com frequência tenho que lidar com excesso de ideias. Isso não equivale a ser criativa. Muitas vezes implica em desorganização e dificuldade para terminar um projeto porque logo alguma outra ideia surge demandando execução. No mais, leio muito e leio textos muito diferentes entre si, que me inspiram seja porque me vejo ali refletida e às vezes preciso de espelho, seja porque são como o meu avesso e é preciso reagir e aprender com o que não compreendo. Leio autores canônicos e literaturas consideradas marginais ou periféricas. Leio muita ficção, poesia, mas também sou apaixonada por teoria. Gosto dos polêmicos e, em especial, dos autores e autoras que em algum momento se desviaram da tradição.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Estou mais madura. Tenho menos medo de autoexposição e compreendo mais a necessidade de me separar do que eu escrevo. Também acho que meu texto hoje se aprofunda mais nas contradições que antes eu tentava resolver, respeitando essas ambiguidades.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gosto da ideia de Borges de que existe uma biblioteca contendo todos os livros do mundo, tanto os já escritos quanto os que ainda serão. Os livros que eu gostaria de ler, e que provisoriamente não encontro, estão nessa biblioteca. Esses que escreverei, e que se incluem no conjunto dos que eu gostaria de ler, encontram-se nela também. Em algum momento, vou alcançar uma de suas prateleiras e puxar uma graphic novel com meu nome.