Liliane Neves é professora, escritora e ativista política baiana.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acredito que o tempo do sono e o tempo da vigília são ambos tempos de um só Grande Dia, uma outra proporção de similar proposta ao que James Joyce concebeu em seu livro “Ulysses”.
Deste modo, não tenho um ritual específico além do diário despertar após um período de sonhos.
Se é dia de semana e tenho compromissos laborais, o ritual gira em torno de simplificar ao máximo as tarefas matinais para garantir vitalidade ao longo do dia. Aos finais de semana e nas férias, deixo que a liberdade da vontade me guie pelos caminhos de maiores significâncias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A hora do dia em que trabalho melhor é aquela em que consigo imergir na fluidez do que faço e tudo em mim se alinha no propósito de entregar o sentido mais belo e profundo a cada ato.
Meu ritual de escrita consiste basicamente em sentar em algum lugar confortável e sem barulho e meditar no silêncio até que a palavra me fale por uma voz que, até então, não era por mim entendida. Aí eu começo a escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, mas escrevo frequentemente. A mim, é importante manter o canal sempre limpo, não ser linha de produção. Minha meta está sempre aberta e normalmente tendo a dobrá-la quando a atinjo. Sei disso porque é quando transbordo de contentamento diante de uma boa metáfora.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A poesia é um campo altamente imagético e melódico. Além do suporte físico, necessito do vazio. O vazio de um ambiente aconchegante, o vazio do silêncio, o vazio do papel e o vazio de quem se dispõe a retrabalhar os conceitos, pois a metáfora se esconde na contramão do trivial.
Não é difícil começar a escrever após haver compilado notas. Difícil, por vezes, é chegar a esta compilação. Trabalho com ideias poéticas. Usualmente penso em um tema e fico em silêncio buscando o caminho onde se esconde a metáfora. Por vezes não há compilados: os versos simplesmente me chegam, é como se eu os ouvisse. Eu só faço escrever. Feito isso, volto ao texto com a razão e edito. Eu me movo da pesquisa para a escrita na carona da epifania.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Respeito muito os momentos que o silêncio pede licença às palavras. Não considero como travas de escrita, está mais para uma “pausa de mil compassos”. Entendo que há tempo para que as coisas floresçam dentro da gente. Não crio expectativas conscientes, apesar delas brotarem como ervas daninhas no inconsciente. Quando eu percebo seus brotos, corto logo com a razão. Deixei também na juventude – ou no inconsciente- a ansiedade com a questão dos projetos longos e atualmente prefiro me concentrar na caminhada. Afinal, é nela que as coisas acontecem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não há um número exato de vezes para a revisão dos poemas. Depende muito de cada peça. Uns parecem até que já nascem prontos. Outros eu edito até hoje!
Não costumo mostrar a ninguém em especial o que escrevo antes de publicar. Ninguém especial além de mim, que não deixo de ser leitora do que escrevo!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meu suporte de escrita varia de acordo com a circunstância. Sempre carrego papel e caneta comigo. Já escrevi em ônibus, em trilhas, em banheiro de shopping… se a ideia surge, eu paro e escrevo ou ao menos anoto os pontos principais. No entanto, quando deliberadamente me sento para escrever, tenho optado pelo laptop ou mesmo o celular. Poupa-me o inevitável trabalho de ter que digitar depois.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias de escrita vêm da desautomatização deliberada do olhar do cotidiano. Creio que isso em mim se ritualiza não perene busca em fazer com que a vida se descortine com lírica frente a expressão do meu olhar. Meu hábito é o modo quase sempre poético com o qual decido habitar o mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, meu processo de escrita adquiriu a maturidade que também é própria da idade. Sinto que hoje enxergo as coisas por uma perspectiva mais ampla que ontem e mais estreita que amanhã. Se pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria a mim para continuar escrevendo. Sou a soma de todas as linhas que vieram antes. Sou grata por ter cedido ao chamado da poesia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que gostaria de fazer e ainda não comecei é aquele que ainda não cogitei. Os cogitados já foram começados. O livro que gostaria de ler e ainda não existe é um livro de História escrito em 2050. Juro que quero muito saber o que vai ser do Brasil e do mundo daqui a 30 anos.