Lilian Venturini é jornalista, mestre em Comunicação e redatora de política do Nexo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou jornalista por ofício. Não sou escritora, mas a escrita diária me acompanha desde 2004, quando me formei em jornalismo pela Unesp. De lá pra cá, trabalhei em redações de revistas, jornais e sites, além de fazer alguns escritos acadêmicos – em especial para a minha dissertação em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Minha rotina de escrita gira muito em torno da minha profissão. Durante o mestrado, por exemplo, tive que adaptar a produção acadêmica à minha vida de repórter de política do portal do Estadão, o que significava uma carga horária de 8 a 10 horas (às vezes 12 horas) por dia. Nos últimos anos, também em razão da vida em redação, me habituei a acordar cedo e a fazer ao menos uma leitura rápida de quatro jornais (Folha, Estado, Globo e Valor). É um repertório necessário para minha atividade e que contribui bastante para minha escrita como um todo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já tive um tempo em que eu rendia mais às madrugadas. Mas com o passar dos anos, e com os dias às vezes muito tomados pelo trabalho, fui me forçando a render no tempo que sobrava. Ora era à noite, fim de tarde, ora aos fins de semana.
O diferencial pra mim passou a ser mais a qualidade das minhas leituras do que o horário em si de trabalho. O essencial era fazer uma leitura atenta dos livros e artigos que seriam necessários para a escrita dos meus trabalhos acadêmicos e da dissertação. No meu caso, memorizo e apreendo melhor se vou fichando o conteúdo e, quando dá tempo, fazendo uma segunda leitura dos pontos mais importantes. Quanto mais esse repertório vai se consolidando, mais facilmente as palavras ocupam as páginas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Varia muito. Tem dias que o máximo que consigo é escrever meia página. E não necessariamente isso é ruim (talvez um pouco frustrante apenas). Mas essa meia página pode ser o resultado de uma leitura mais complicada, resultado do amadurecimento de um conceito sobre o qual eu não tinha muito domínio. Então, ainda que pouco, é um avanço.
Nunca me coloquei uma meta diária. Só procurei (e procuro) não adiar o início da escrita. Assim que os prazos de qualificação ou de entrega de trabalho ficavam estabelecidos, procurava mantê-los em foco. Por causa da minha rotina de trabalho, em geral só nos fins de semana ou feriados (ou nas férias) podia dedicar um tempo mais alongado para a escrita. E isso fazia muita diferença para a fluidez do texto, do pensamento…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo às vezes é tumultuado. Começo o texto de um jeito, logo depois releio e mudo tudo. Ou o trecho que estava no fim vai pro começo e por aí vai. É uma constante construção e desconstrução. A pesquisa pra mim é essencial. Seja para textos jornalísticos ou acadêmicos. Na medida em que leio, salvo links mais importantes, trechos que podem ser úteis, faço anotações. Guardo tudo aquilo que pode ser bom para tornar o produto final mais completo.
Procuro ser bastante assertiva na etapa da pesquisa/leitura. Como quase sempre trabalho contra o tempo, ter noção do que é necessário para a escrita naquele momento é essencial. Nesse processo, a conversa com o(a) orientador(a) ou editor(a) costuma ser muito válida para estabelecer critérios, prioridades ou mesmo uma linha de raciocínio. Aliás, por mais que a escrita ou a pesquisa acadêmica pareça algo solitário, ela cresce quando colocada em contato com outras pessoas/opiniões.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A trava é normal, acontece, e arrisco dizer que acomete mesmo o melhor dos profissionais/escritores/acadêmicos. Eu procuro não me desesperar. Em textos acadêmicos, em geral resolvo esses bloqueios retomando algumas leituras ou buscando outras referências. Na maioria das vezes, o bloqueio decorria da falta de segurança sobre algum conceito. Às vezes o bloqueio era por cansaço mesmo. Então era necessário saber a hora de parar, dar uma volta, respirar um pouco para tentar arejar as ideias.
Como falei acima, o meu trabalho exige diariamente que eu escreva. Não há a menor possibilidade de chegar para meu editor e dizer “desculpe, hoje estou com bloqueio criativo e não vou te entregar nada”.
Convivo com a cobrança de escrever bem e em pouco tempo. Parece complicado, e é mesmo… Nem sempre essa lógica da hardnews combina com textos de qualidade, aprofundados etc. Por outro lado, faz com que eu não me permita ter medo de escrever. Afinal, algo precisa ser escrito. Alguns dias o resultado será bom, outros mais ou menos e, inevitavelmente, ruim também. Haverá dias em que entregarei algo que será elogiado. No dia seguinte, posso ser execrada. Cada dia é um aprendizado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meu processo de revisão é quase tão tumultuado quanto o de escrita. Um eterno vai e vem. Mas quando o texto está definitivamente concluído, faço ao menos duas leituras completas. E, se possível, lendo em voz alta. Ajuda muito a perceber erros bobos, de digitação, falta de palavras…
No caso de textos acadêmicos, mostro para pelo menos uma pessoa antes de submeter ao orientador ou à banca. É importante ter um olhar de fora, de preferência que não saiba tanto sobre o projeto. Acho válido para me certificar de que o texto está suficientemente claro. Além de evitar erros de grafia e digitação.
Já os textos jornalísticos passam por pelo menos uma leitura além da minha. Faz parte do processo de publicação da maioria das redações, envolvendo não só revisão, mas edição também (verificando a coerência do texto, se todos os lados estão representados, se as informações estão precisas e por aí vai).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia está bastante incorporada à minha rotina e ao meu processo de escrita. Há tempos não escrevo textos muito longos à mão. No entanto, gosto de esquematizar o texto num bloco de papel. É como se fosse uma extensão do meu raciocínio. Quando fui elaborar o sumário da minha dissertação, o fiz primeiro num caderno, rabiscando os tópicos de cada capítulo.
Faço isso até mesmo antes de escrever textos jornalísticos. Vou listando o que precisa estar logo no início do texto, o que pode ser colocado num gráfico, os tópicos que não posso deixar de fora. Fazer isso me ajuda a organizar o texto mentalmente e acaba facilitando a escrita depois.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nunca escrevi textos de ficção ou algo do gênero. Minha escrita sempre foi sobre fatos ou acadêmica. No entanto, a literatura, a música, o teatro, o cinema, em paralelo aos jornais e aos livros acadêmicos, sempre são fontes de inspiração. No colégio, não costumava entender quando professores repetiam à exaustão “quanto mais você ler, melhor vai escrever”. Com o tempo, fui compreendendo essa relação. Depois, como jornalista, me dei conta do quanto a diversidade de experiências (não só de leituras) contribui para tornar o repertório maior e mais complexo.
Não tenho um conjunto de hábitos sistematizado. Procuro estar sempre lendo. Em geral, tento alternar literatura com algo especializado. Em literatura, vai do meu momento. Ora poesia, ora contos, ora um autor clássico ora um contemporâneo. Já a leitura especializada vai de acordo com alguma “necessidade” mais imediata, um tema sobre o qual percebo que preciso aprender mais ou grandes temas/conceitos (como alguma escola filosófica, algo da teoria política, econômica etc).
Mas essa ideia de criatividade sempre me soa um tanto subjetiva e abstrata. Prefiro a ideia da prática cotidiana, do trabalho, da transpiração. Vejo a escrita muito próximo de qualquer outra atividade, como tocar um instrumento, treinar um esporte. Quanto mais se escreve, mais facilmente as palavras tomam o papel (ou a tela). Requer empenho, leitura, entrega.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nunca tive muita coragem de reler meus primeiros textos. Outro dia reli trechos do meu trabalho de conclusão de curso da graduação e achei razoável para alguém com vinte e poucos anos. Acho que meu maior medo nem é de achar os textos antigos “ruins”, mas de achar que falhei em precisão, em qualidade…
Hoje acho que sou mais cuidadosa, meticulosa na produção. A pesquisa é mais aprofundada. A atividade jornalística tem como mantra “ouvir todos os lados”. Em tempos de liquidez e de debates tão polarizados, buscar equilíbrio e profundidade é quase um ato político (além de obrigação ética). Procuro levar essa cautela para a escrita/pesquisa acadêmica também. Tento não me deixar levar pela tentação de só ler aquilo com que concordo. Tento também fazer uma leitura ampla da obra para não buscar nela, ainda que inconscientemente, só aquilo que se encaixa na minha dissertação/tese/artigo.
Se fosse voltar no tempo, acho que eu tentaria ter menos pressa. E procuraria ter em mente algo que só fui aprender há pouco, com meu orientador, Eugênio Trivinho: as palavras não “passam impunes” (e contratam compromissos e consequências).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou tentando retomar a pesquisa acadêmica. Minha dissertação dialogou muito com a sociologia da educação, algo que pretendo retomar no doutorado. Mas é ingrata a rotina de quem trabalha nove ou dez horas por dia e quer tentar uma vaga em universidade pública. A exigência por dedicação exclusiva, por mais que eu entenda e ache legítima, tem me feito adiar esse passo.
Sobre o livro, nunca pensei assim… Talvez não leia tanto a ponto de sentir um vazio tão grande quanto esse. Na verdade, gostaria de ler mais. Agora mesmo estou lendo Amar, verbo intransitivo. A julgar pelo que o sistema educacional por vezes espera, deveria ter lido esse livro no colégio. Mas foi só agora que ele chegou até mim, depois de ver uma peça que o mencionava. Provavelmente seguirei assim, descobrindo e me encontrando, entre obrigações e acasos.