Lilian Sais é escritora, pesquisadora, tradutora e doutora em Letras Clássicas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal envolve muito o nada. Eu preciso começar o meu dia em um estado de coisa alguma. Fico tomando café, e aí, de fase em fase, muda o que fica ao fundo. Tem a fase do café ouvindo música – foi nessa que eu escrevi o meu livro “Acúmulo” quase inteiro. Tem a fase do reler poemas que sei de cor. Em relação às músicas é a mesma coisa, são sempre músicas que sei de cor, que já ouvi milhões de vezes. Não é o momento de descobrir coisas novas, mas de degustar e redescobrir, nos detalhes, as velhas conhecidas. Quando releio poemas ou escuto pela milésima vez músicas nesse estado, sempre tem algo que me vem à mente que nunca tinha pensado antes – às vezes é só uma palavra que eu nunca tinha notado perdida ali no meio. É quando consigo olhar as coisas com frescor, como se fosse a primeira vez. E também a fase do nada puro e simples, sem pano de fundo mesmo, o nada-vertigem. Em qualquer uma das fases, é o meu ritual obrigatório, eu em silêncio, conversa nenhuma. Se vou começar a trabalhar às 8h, acordo às 6h30. Se vou sair às 7h, levanto às 5h30. Preciso de 1h30 de nada para começar meu dia, as urgências todas caladas, o meu ócio possível agora. Se não faço isso por algum motivo imperativo, me sinto verdadeiramente violentada o dia todo, e até fico de humor questionável. Tenho tido que acordar muito cedo esse ano, pelo trabalho, e prefiro perder 1h30 de sono a transgredir esse ritual.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De dez anos para cá, que foi o período em que de fato escrevi (seja na academia, seja, mais recentemente, na literatura) minha vida deu pulos e pulos. Trabalhei com coisas diferentes, vivi em diferentes cidades. Cada nova rotina ou cada falta de rotina teve sua característica. Quando eu estava trabalhando apenas na tradução de Édipo Rei, por exemplo, eu me levantava todos os dias às 4h40, fazia meu ritual matinal e então começava a traduzir até a hora do almoço. As primeiras horas, com o dia nascendo e os barulhos da cidade emergindo pouco a pouco eram as que mais me inspiravam a trabalhar com afinco. Fazia assim, de domingo a domingo. Com o romance “Nessa casa se dorme cedo”, que venho escrevendo há alguns anos, os períodos mais produtivos também foram os matutinos. Mas de modo geral meu processo é mais caótico. Cada dia em um horário, e em dias avulsos, sem uma lógica, sem uma rotina. Eu estou sempre pensando nas palavras. Primeiro nelas soltas, as tais palavras em estado de dicionário, a palavra-letras. Então pendo na palavra-som, penso nela dezenas e mais dezenas de vezes, repito-a em diferentes velocidades, tanto que quase consigo esvaziá-la de sentido e ter a sensação de que nem sei se essa palavra existe mesmo ou se fui eu que a inventei e se eu começar a usá-la ninguém vai entender nada. Depois penso no que decorre dela, a palavra-universo. Penso nisso tudo com uma sensação contínua de estranhamento. Cada palavra é algo maior que eu, algo que eu olho à distância, com respeito. Fico remoendo essas coisas dentro de mim. Dificilmente tomo nota. É tudo um processo interno e lento, até eu sentir que tenho algo a dizer sobre a palavra-tema. Não adianta ter um bom estilo se você não tem nada a dizer.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De novo, cada processo é um processo, cada rotina se transmuta em uma outra completamente diferente. Meta de escrita diária, só com traduções. É mais difícil assim, sem a rotina. Só que não adianta nada você se forçar a fazer o caminho mais fácil se aquele não é o seu processo. Acho que precisamos tentar primeiro entender qual é o nosso processo e depois, acima de tudo, respeitá-lo. O meu é um camaleão. Depende de coisas como se estou em uma casa ou em um apartamento. Se na cidade há prédios ou cheiro de mar. Do quanto eu preciso naquele momento para viver e daí, proporcionalmente, do quanto eu preciso trabalhar para viver. Somos obrigados o tempo todo a produzir. Produzir é quase sinônimo de viver. Ao menos na minha literatura eu posso dizer: não. Não quero ter meta, não ambiciono publicar vinte livros, um por ano, não desejo produção em série. Meu processo nada tem a ver com a velocidade, o ritmo da contemporaneidade. Não à toa um escritor essencial para mim é Murilo Rubião, cuja obra completa se resume a poucas dezenas de contos que ele reescreveu a vida toda. Compreendo que os escritores ditos profissionais precisam disso, mas eu preciso de tempo, de gestação, degustando, regurgitando a palavra, preciso sentir ela saindo do estômago, batendo no céu da boca e descendo de novo, antes de ultrapassar a barreira dos dentes, as teclas sendo pressionadas. Não existe um processo melhor ou pior que o outro. O importante é: entender como o seu funciona e respeitá-lo. Se você consegue produzir um romance em dois meses, ótimo, invista nisso. A mim me leva três meses para escrever um conto de três páginas. Às vezes um poema me leva um ano.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu dificilmente tomo notas. Todo esse processo pré-escrita se dá interiormente. Como eu disse, eu fico remoendo um tema e uma palavra, cercando isso tudo. Daí às vezes me vem uma frase inteira, um primeiro verso de um poema. Esse processo pode levar muito, muito tempo. Esse ano eu comecei a ter esse estranhamento com o tema-tempo. Passei junho inteiro remoendo isso, em julho queria muito escrever e não consegui. Só tinha um par de versos na cabeça, meio acabado. No fim de agosto cheguei em casa, sentei no computador e me saiu o poema inteiro em cinco minutos. Eu já o sabia todo através dos sentidos, mas não através das palavras, até que essa tradução de uma coisa para a outra aconteceu naturalmente.
Mas é a aí que entra a parte que eu mais gosto do processo, e o motivo central pela minha constante demora na produção literária: a reescrita. A minha paixão são as palavras e a linguagem. Dizem que todo escritor tem suas obsessões, a minha é essa: reescrever. Quando estou trabalhando um poema, um conto, o capítulo de um romance eu o releio centenas de vezes – aí sim, uma rotina quase diária. Abrir o arquivo, reler, trocar uma palavra. No dia seguinte abrir o arquivo, reler, trocar uma vírgula. Buscar a formulação mais precisa, a palavra exata, a pausa mais significativa. E depois de novo, e de novo, e de novo. Eu sei quase tudo que eu já escrevi de cor, hoje em dia. Nem é preciosismo, é só a parte mais prazerosa para mim. Eu me pergunto: será que essa é a melhor forma de transmitir o que estou tentando transmitir? Geralmente a resposta é: não. Então reescrevo. Mas também chega um momento em que precisamos dizer chega, está pronto, e mandar para o mundo. Eu ainda sofro com isso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação talvez seja o pior de tudo. Eu venho escrevendo o “Nessa casa se dorme cedo” há oito anos. Esses dias me ocorreu que posso morrer antes de terminar de escrever esse romance e a sensação foi de “Poxa, não é justo, é o projeto da minha vida e vai ficar na gaveta?” Isso me deu uma certa ansiedade de terminar logo. Às vezes atravessando a rua, um caminhão, vai saber? (risos)
Mas em relação às expectativas é simples, antes até foi um problema, mas hoje em dia não as tenho. Tudo o que vem é lucro, nesse caso. Eu acabei de lançar um livro de poesias agora, o “Acúmulo”. Que expectativa eu posso ter? Digo, todo escritor quer ser lido, quer ter a sua cota de algo como um “reconhecimento”, mas sinceramente, o que se pode racionalmente esperar, publicando poesia hoje, no Brasil? São inúmeros os fatores que fazem uns se destacarem mais que os outros, a maior parte exteriores ao autor e à obra. Então não adianta nada se angustiar com algo que está muito além do seu controle e do controle de cada vírgula posta ou suprimida no seu livro. Estamos vivendo uma época da democratização das publicações, em que o número de autores publicados só cresce, graças, em grande parte, ao trabalho incrível, guerreiro e histórico das editoras independentes. Eu sou sim uma boa escritora e conheço muitos outros bons escritores também. E que bom que seja assim. Está tudo bem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão/reescrita é feita dezenas de vezes ao longo de meses. Mas, por exemplo, com os poemas eu muitas vezes posto nas redes sociais a primeira versão, e depois de algum tempo a segunda versão, etc. Engraçado que algumas vezes aqueles que julgo serem meus melhores poemas às vezes não têm repercussão nenhuma, e algumas bobeirinhas que posto como brincadeira estouram de curtidas. É interessante sim ver a reação da sua rede, mas isso não vale como crítica literária. Tem muita coisa ruim cheia de like e tem muito diamante com cinco ou seis.
Mas de uns dois anos para cá tenho mostrado cada vez mais os meus textos para outras pessoas, não só na rede, não só para amigos, mas tenho participado de cursos e oficinas com desconhecidos, com pessoas fora do meu núcleo, e recebido os apontamentos delas. Esse ano comecei a cursar uma especialização em escrita aqui em São Paulo e as oficinas são semanais. É um processo bem interessante, até para você entender que o texto é seu, mas a interpretação é do leitor. Se não for assim, nem vale a pena. Gosto da literatura meio a meio: eu dou metade, você preenche com os outros cinquenta por cento. Não subestimo meus leitores dando tudo de mão beijada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador, sempre. Nunca à mão ou no celular. Como reescrevo muito seria complicado fazer manuscrito. Não sei quase nada de tecnologia, mas editores de texto são ok para mim – só não passo muito disso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de viver, de sair na rua e olhar as pessoas, ouvir o que elas dizem, como elas dizem, observar os muros, o fluxo, o mundo. De ler sobre o que eu gosto, de ouvir músicas que me inspiram, de conversas com meus grandes amigos em mesa de bar sujo, com meu companheiro, com minha família. Em todo canto do mundo tem material para literatura, e o mundo é enorme.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudaram as rotinas (ou a falta dela), cada uma no seu lugar e no seu tempo. Mas se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos eu diria para mim: “Vai, não tenha medo. Se solta, se joga”. É o lance das expectativas. “O que vão pensar de mim se eu escrever isso, será que é bom, será que não, será que vou pagar um mico se publicar, será que isso merece ser um livro?” O fato é: se você escreve, se você deseja escrever, isso quase nunca é uma escolha. Nunca ouço um escritor dizer: “Ah, eu escolhi escrever porque…”. Não. É algo que vem de cima pra baixo e te move. Então, veste logo a carapuça e escreve, esquece isso de bom e ruim e do que vão pensar e etc. Escreve porque a sua vida vai ser melhor, a sua vida vai ser mais prazerosa e no final é isso que importa, escreve enquanto ainda há palavras e elas te acariciam de dentro para fora. É isso que eu diria para mim, há uns dez anos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma história sobre a qual penso há mais ou menos dez anos. Não sei se seria um romance ou um longa-metragem, mas é uma história muito imersa nas pseudomoralidades da nossa sociedade-fiscal-da-vida-alheia.
Eu gostaria de ler todos os livros que não li e que por isso ainda não existem (dentro de mim). Essa é uma frustração com a qual todo apaixonado por literatura tem que lidar, infelizmente.