Lilia M. Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da USP, autora de Lima Barreto – Triste Visionário.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu me sinto melhor escrevendo de manhã ou de tarde. Sou pouco notívaga, não tenho nenhum ritual de preparação. Isso porque eu sinto um imenso prazer ao escrever. Em geral as ideias vêm quando eu começo a escrever e não tenho nenhuma preparação maior. E penso que é a própria alegria do ato de escrever que faz com que o meu dia comece bem, se o começo escrevendo algo, terminando um texto, montando um capítulo, finalizando um ensaio ou até pensando numa nova pesquisa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tudo depende se estou escrevendo um livro, um ensaio ou um artigo mais alentado. Mas eu costumo escrever, sim, todos os dias. E não tenho uma relação tão ritual com a escrita. Ao contrário, como sou muito concentrada, julgo que tenho uma grande facilidade na escrita, qualquer hora é hora. Escrevo quando tenho dez minutos, quatro horas, meia hora. Em geral, prefiro períodos mais largos quando estou escrevendo livros. A gente rende melhor, no caso de um livro, se conseguir escrever mais longamente. Mas eu consigo escrever em todo e qualquer contexto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em geral pesquiso muito, anoto muitas coisas, de alguma maneira vou amadurecendo as ideias na minha cabeça. Por vezes eu digo que estou grávida de um texto, de um livro. Por exemplo, quando eu terminei todos os lançamentos de Brasil: uma biografia, e foram muitos, eu disse para o Luiz, meu marido: “eu me sinto grávida do Lima Barreto”. Eu já anotava, pesquisava, tinha uma série de arquivos em torno desse escritor. Foi um processo longo de dez anos. E a impressão que tenho hoje é que quando sentei para escrever Lima Barreto, o livro já estava pronto na minha cabeça, dentro de mim. Então eu funciono dessa maneira. Tenho que ir pesquisando muito, amadurecendo muito, e quando eu sento para escrever é porque as ideias já estão todas lá.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Diferente da maioria das pessoas, não tenho muitas travas na escrita. Também não procrastino. Claro, todo mundo tem medo de não corresponder às expectativas, mas esse medo vem pra mim quando eu entrego o texto, não quando estou escrevendo. O momento da escrita, para mim, é um momento de muita liberdade, muita alegria, de muita satisfação. As expectativas vêm todas depois. É claro que tem dias melhores, em que tudo sai mais fácil, outros em que tudo sai mais devagar, mas eu não conheço dias de travas de escrita. Em geral, quando sento para escrever e ponho do lado a minha água, é porque as palavras vão me ajudar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É variável. Eu reviso meus textos muitas vezes. Por exemplo, os textos que escrevo para o jornal Nexo são entregues numa segunda-feira, a cada quinze dias. Eu tenho a ideia deles uma semana antes, escrevo o texto pelo menos cinco dias antes e reviso sem parar até o dia da entrega. A mesma coisa acontece com os meus livros. Reviso muitas vezes e, quando eles vão para a revisão profissional da editora, reviso novamente. Eu acho que escrever é revisar. Escrever é reler, refazer e a gente não tem que ter nenhuma atitude de respeito com a nossa escrita, ao contrário, a atitude tem que ser de abnegação. Quanto mais a gente relê, melhor fica, e quanto mais enxuto fica um texto, mais rápido ele vai ao ponto. Eu mostro, sim, meus trabalhos antes de publicar. Mostro os livros grandes ao meu marido, o Luiz Schwarcz, que é meu grande revisor, e mostro para alguns amigos queridos como André Botelho e Heloisa Starling, para citar dois e cometer muitas injustiças, porque eu mostro para muitos outros. Eu gosto de dividir o trabalho. Gosto de dividir esse momento e gosto de ouvir críticas, também.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Num primeiro momento eu costumava fazer tudo à mão e depois passava para o computador. Mas isso foi muito no começo, na época da faculdade. Logo aderi ao computador e desde então escrevo direto nele. Muitas vezes eu deixo guardadas as versões antigas, porque há momentos em que, no desejo de reduzir, de cortar, a gente acaba perdendo argumentos ou expressões importantes. O que eu faço é guardar muitas versões dos livros e muitas versões dos artigos importantes. Vou guardando, mando para mim mesma, releio, mas não faço rascunhos, vou direto ao computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei ao certo de onde vêm minhas ideias. Penso que elas vêm da pesquisa. Eu acho que no trabalho de um autor de não-ficção a criatividade é menos importante do que o trabalho. Escrever é trabalhar muito. Dedicar-se muito. Acredito que as ideias vêm da maturidade, da calma, da falta de pressa e, de alguma forma, de uma pesquisa que vai se realizando por fora e por dentro de você mesmo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu acredito que ao longo dos anos eu tentei, cada vez mais, ser clara na escrita. Evitar subterfúgios. Eu não gosto, por exemplo, de adjetivar muito. Acho que os adjetivos atrapalham o texto. Os adjetivos não acrescentam e, ao contrário, são pouco democráticos, porque de alguma maneira você sinaliza para os leitores o que eles deveriam entender. E penso que ao longo dos anos minha escrita foi ficando mais enxuta e mais preocupada em ser legível para um público mais amplo, não só acadêmico. Eu acho que o fio da navalha é que é possível fazer uma tese, uma dissertação, uma livre-docência, uma titularidade que seja ao mesmo tempo acessível e correta e muito complexa na bibliografia com a qual ela lida e com a qual ela discute. Acho que esse é o segredo. Não facilitar nas ideias, nas referências teóricas, mas ao mesmo tempo ajudar o leitor no sentido de que ele compreenda o que você efetivamente quer dizer.
Eu acho que a gente não volta atrás, porque a escrita é um processo, acho que foi necessário que eu tivesse escrito aquele meu mestrado para escrever o doutorado. Foi necessário que eu tivesse escrito o doutorado para conseguir escrever outros livros. Acho que a escrita é processo. E eu não me arrependo demais do que escrevi, até porque não costumo ler o que já publiquei. Eu prefiro ler o que os outros escreveram.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho sempre muitos projetos comigo. Eu não posso contar todos aqui, mas um dos projetos não implica só em escrita, mas em imagem. Fazer um site aberto de imagens da escravidão e do pós-escravidão. Acho que o Brasil, perversamente, tem um acervo muito grande e nós repetimos as imagens. Usamos só Debret, Rugendas, e usamos mal, porque não pensamos na autoria, no contexto, nas demandas. Então esse é um projeto grande que pretendo realizá-lo. Não envolve tanto escrita, mas a relação entre imagem e escrita. Há outros projetos, mas que são tão secretos dentro de mim que eu ainda não posso dizer. Ou seja, quando eu puder contar, é porque eu já estarei escrevendo esse livro.
Que livro que eu quero ler e ele ainda não existe? Eu não tenho muito preconceito, leio diferentes tipos de livros, desde romances, para dormir, e sobretudo não-ficção durante o dia. Quando estou muito nervosa, como na época das defesas de tese ou quando tenho que dar uma aula difícil, sempre leio histórias em quadrinhos, como Tintim, Lucky Luke e outras boas histórias em quadrinho. O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe… toda semana eu me surpreendo com um grande livro, por vezes livros que estão sendo escritos no momento. O fato de estar perto da Companhia das Letras me ajuda nisso, porque eu me obrigo a ler livros que talvez não caíssem na minha mão de outra maneira. E também sempre me surpreendo com livros do passado, que já foram escritos há muito tempo e que eu me pergunto “nossa, por que que eu só fui ler agora?” Essa convivência com os livros é uma imensa dádiva, que me permite nunca estar sozinha, e me permite viajar muito e muito bem acompanhada.