Lilia Guerra é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Além do trabalho com a escrita, sou servidora pública. Atuo na área da saúde e meus dois turnos diários totalizam doze horas. Portanto, em dias úteis, minha rotina matinal é despertar às cinco e focar no início da jornada formal. Mas tenho os finais de semana livres e, nesses dias, procuro viver as manhãs. Acordo cedo. Sempre. Se eu pudesse, nem dormia. Preciso ouvir música assim que me levanto. Começo o dia escolhendo minha companhia musical. Converso com minha gata Madalena, com minha cachorrinha Clô e rego as plantas enquanto a música fala comigo. E me inspira.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As tardes, para mim, são mais convidativas à criação. Sobretudo, se forem tardes quentes. O frio me desconcentra. Tardes douradas são as minhas preferidas para o desenvolvimento de novos personagens e confecção de destinos. Há claridade, calor e a liberdade de não necessitar de agasalhos. Janelas e cortinas abertas. As madrugadas são ótimas para revisões, releituras. Meu ritual de preparação para a escrita também envolve música. Costumo escolher uma trilha sonora para cada conto ou período de criação. A melodia e a letra me introduzem no universo das vidas que manipulo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há períodos em que escrevo todos os dias. Mesmo chegando tarde do trabalho, há épocas em que escrevo furiosamente. Mas, algumas vezes, as pausas são longas. Ainda assim, procuro reler textos, aplicar correções, conviver com meu povo (meus personagens). A meta de escrita diária é anotar ao menos uma das ideias que me visitam.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quase sempre busco um nome, uma característica. Começo o processo livremente. Um ônibus virando uma esquina, a porta de um bar que se abre lentamente. Alguém está dentro do ônibus. Indo pra onde? Fazer o quê? Quem é o dono do bar? E os frequentadores? Por aí, começo a costurar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca travo completamente. Fico meses sem mexer em determinado arquivo, mas sempre movimento outra coisa. Procuro não me apartar totalmente. Como eu já disse, se não estou criando, estou revisando, relendo. Sobre não corresponder às expectativas, prefiro seguir com o trabalho sem pensar muito nisso. Acho que esse receio é um dos maiores transmissores do bloqueio criativo. Projetos longos, para mim, vivem como a gente. Nascem, crescem e morrem. As coisas vão acontecendo. Se não há prazo determinado, flui tranquilamente. As pessoas costumam dizer que a publicação de um livro é o nascimento. Eu acho que é a morte. A ideia é a fecundação. A gestação é o desenvolvimento. Há um momento em que ele nasce. Quando a estrutura se forma, sabe? E já sabemos no que vai dar, só guiamos. Conforme a gente vai enredando, resolvendo, a vida do livro se desenvolve. Quando fica pronto, penso que morre. A conclusão é o fim. Acho que morte tem mais ligação com a ideia de reverência e eternidade. E livro é eterno, né?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quase todas as vezes em que leio um texto, faço correções. Não consigo ler meu próprio texto apenas pelo prazer de saboreá-lo. Pareço uma daquelas mães que estão sempre arrumando uma gola, ajeitando um fio de cabelo arrepiado dos filhos. É inevitável. Sempre que posso, submeto os trabalhos à leitura de alguém que possa emitir impressões. O aprendizado que se obtém com essa prática é precioso e indispensável. Mas nem sempre é possível, infelizmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Sempre! Rabisco ideias, notas, possíveis temas num bloquinho de papel, mas desenvolver, mesmo, só digitando.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Música, movimento. Papos nas conduções. Observar mesmo. Vejo uma pessoa, no metrô, por exemplo. Analiso. Batizo. Estudo as características, os trejeitos, cacoetes. Anoto o dia da semana, a hora, o clima, o bairro. Nem sempre utilizo as anotações. Mas é material acumulado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Agradeço sempre e sempre às oficinas de escrita criativa, grupos de acompanhamento de projetos, coletivos literários, todos os canais de comunicação que, de alguma forma, fizeram com que eu enxergasse a vidraça menos embaçada. Mas penso que, em todos os períodos da vida, achamos que evoluímos. Considero minha escrita de hoje mais madura do que a do início, claro. No entanto, daqui a dez anos, em releituras, certamente considerarei o que escrevi neste tempo passível de reformas. E eu diria a mim mesma: “Será sempre assim”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou apaixonada por dedicatórias. Garimpo livros e discos que possuem dedicatórias em sebos. Gosto de imaginar quem são as pessoas envolvidas. O que dedica e o que recebe. Planejo escrever uma coletânea de contos baseados nas dedicatórias dos materiais que venho colecionando. Meu livro ideal desejável já existe. Tantas vezes já me senti plena ao concluir a leitura de um volume. Conforta-me saber que é uma sensação que ainda viverei muitas vezes. Há tantas preciosidades nas prateleiras da vida. E muitas outras virão.