Lília Figueiredo é escritora e médica, formada pela Universidade Federal do Pará.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Dedico-me à literatura por hobby, pelo puro prazer de inventar histórias. Então meus dias se iniciam voltados às obrigações do meu trabalho como médica e à coordenação das prioridades domésticas. Para cada dia da semana, tenho uma rotina diferente para dar conta de compromissos distintos.
- Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando me dá vontade de escrever, com as ideias alvoroçadas na cabeça mal esperando para ser transformadas em palavras, não tenho turno preferido, não. Entretanto, por uma questão prática, os finais de semana me proporcionam oportunidade de maior dedicação; também costumo deixar para as tardes e as noites, depois de me desvencilhar das tarefas rotineiras, pois assim há menos chances de sofrer interrupções.
Não tenho nenhum ritual específico para a escrita. Se puder ter silêncio, eu produzo melhor. Pequenas pausas estratégicas para esticar as pernas, tomar um cafezinho, um chá ou um lanche também ajudam.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando um projeto está pronto para ser posto em prática, costumo escrever, se possível, todos os dias. Dificilmente ultrapasso um capítulo por dia, porque, ao final de cada um, eu reviso, volto, releio, modifico. Trabalho sempre com a dupla variável tempo disponível-disposição de escrever ou pesquisar para a história.
Não ter metas definidas me dá mais liberdade para criar, mudar o rumo da trama, incluir um dado interessante pescado nas leituras, enfim, brincar à vontade com o texto até eu achar que ficou do jeito que eu imaginei, às vezes até melhor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Algumas vezes, se já tenho uma ideia estruturada sobre o desenrolar, os conflitos ou mesmo alguma intenção de diálogo, eu parto direto para a redação e então vou pesquisando conforme a necessidade. Mas, como tenho me dedicado a romances de época, procuro ler ficção nesse gênero e busco biografias e obras históricas para me nutrir do período em que vou situar a trama. Desse modo, a pesquisa costuma ocorrer tanto previamente como lado a lado com a escrita, do primeiro ao último capítulo.
Nunca acho difícil começar uma história; mais árduo é concluí-la, porque não gosto de finais muito certinhos, enquadrados. Gosto de deixar um pouco para a imaginação do leitor. Assim, o fechamento requer maior elaboração, um final que não cause frustração, como se fosse uma história inacabada, mas que deixe uma sutil sugestão de continuidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu nunca tinha enfrentado uma trava importante ou duradoura até o meu último projeto. Eu planejei dar fim a um personagem muito querido, e simplesmente não conseguia escrever o capítulo da sua morte, apesar de ter toda a ideia de como isso se sucederia. Talvez tenha pesado a coincidência com os meses de notícias dramáticas sobre o Brasil e o mundo, e também casos de pessoas queridas afetadas pela pandemia. Tudo isso mexeu muito comigo. Foram semanas de bloqueio, durante as quais eu só consegui ler e revisar os capítulos já escritos. Então um dia respirei fundo, me disciplinei e me propus escrever apenas uma frase. Depois veio outra, e a próxima, tentando visualizar a cena com se fosse um filme; daí saiu! Acho que o resultado ficou na medida certa de dramaticidade e suspense.
O medo e a expectativa sempre estão presentes na vida do escritor, afinal é um pedacinho da nossa alma, das nossas vivências que se expõe ali, dentro de cada personagem; escrever é se lançar a um escrutínio público da nossa capacidade (ou da nossa falha). No meu primeiro romance Correntes paralelas (Penalux, 2017), essa ansiedade foi maior, pois eu jamais havia escrito nada no estilo, muito menos para submeter ao mercado editorial, ao público, às resenhas de profissionais da escrita. Fiquei bem apreensiva. O retorno satisfatório me deu confiança para continuar a escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso o texto incontáveis vezes, primeiro na tela do computador, depois em formato impresso, para ter o impacto da leitura no papel. Persigo os detalhes, na forma, no enredo, no tamanho dos capítulos. Monitoro tudo exaustivamente. E a história nunca está realmente pronta, porque, a cada revisão, falta ou sobra uma palavrinha, uma substituição, há um parágrafo que ficaria melhor assim ou assado. Tenho que me policiar para dar o ponto-final (metafórico) e parar de mexer no texto.
Mostro meu trabalho primeiro para uma ou duas pessoas, entre família e amigas. Depois envio para leitura crítica e preparação profissional. Tenho entregado essas tarefas à jornalista e escritora Nanete Neves, que realiza um trabalho fabuloso nos originais. Depois de absorvidas as considerações das leituras, consertos aqui e ali, envio o texto final à revisão especializada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Admito que eu poderia ser um pouco mais atualizada quanto aos recursos tecnológicos. Frequentemente tenho que pedir socorro para alguém me tirar das dificuldades com o computador. Porém, a cada trabalho, aprendo um pouquinho mais, e aos poucos as cortinas vão se abrindo. Seria impensável abrir mão desse instrumento.
Escrevo o texto digitalmente, sem rascunho prévio. Entretanto, algumas montagens, como, por exemplo, árvores genealógicas das distintas famílias da trama, cronologia de acontecimentos, datas importantes, idade das personagens relacionadas com os fatos narrados, eu prefiro fazer à mão, então uso cores diferentes para melhor visualização, o que me proporciona melhor perspectiva das informações e recurso de consulta rápida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias são do dia a dia, do que eu leio, do que ouço, do que eu capto nas personalidades e nos caracteres alheios. As inspirações vêm de cenários fictícios ou históricos, em que eu me pergunto: e se as personagens agissem diferente, num país diferente, numa época distinta? A maioria surge de exemplos reais. Eu já carregava comigo uma vontade de escrever sobre as médicas pioneiras no Brasil quando li o trecho de uma crônica nada gentil publicada num jornal do século 19 dirigida à primeira mulher formada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; foi a centelha para a história de Nascida na Independência (Penalux, 2018).
Alimento minha criatividade mantendo os olhos e os ouvidos atentos ao que as pessoas dizem, fazem, relatam, relembram, reclamam; vivo pescando experiências e frases da vida real. E de muita leitura, é claro. A literatura é a base da alimentação da minha própria escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevo romances há apenas quatro anos, com dois livros publicados e um terceiro em fase de revisão. Assim, se não sou exatamente uma recém-nascida na literatura, ainda me considero engatinhando nesse extraordinário universo. Apesar disso, entre as duas obras publicadas, houve um avanço notável na maturidade da redação, percebido por mim mesma e também pelos leitores. Credito esse crescimento à experiência, claro, mas também ao aprendizado com os profissionais admiráveis que encontrei no meu caminho. Com o terceiro livro, ainda inédito, avalio que foram dados mais alguns passos na evolução de minhas produções.
Se pudesse voltar ao início, eu diria a mim mesma: “Confie mais na capacidade dedutiva do leitores!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um desejo me persegue: o de produzir um romance ambientado na minha cidade natal, Belém do Pará. Ora me pego imaginando-o na época de sua fundação, ora no período da Revolta da Cabanagem, ora ainda na época do Ciclo da Borracha, com destaque para a imigração estrangeira na cidade, principalmente de portugueses. Esse germenzinho de projeto é confessadamente influenciado pela história da minha família no Pará por ambas as partes, materna e paterna.
Ignoro se já existe, mas gostaria de ler um romance denso e envolvente que se passasse justamente em Belém, ao feitio de Dois irmãos, de Milton Hatoum, que nos leva a enveredar por ruas, vielas, mercados, cheiros, cores, sabores e gentes de Manaus. Estou me dando conta agora de que talvez as respostas para ambas as perguntas sejam uma só, ainda semente no meu coração, esperando o tempo certo para desabrochar.