Ligia Gonçalves Diniz é doutora em Literatura pela UnB e pós-doutoranda na UFMG.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina nenhuma – a não ser quando a rotina se impõe: se estou dando aulas, participando de algum evento etc. Sou do tipo que demora um bocado a acordar e pegar no tranco. Quando dá, rolo na cama uns bons minutos, de preguiça com minhas cachorrinhas (uma delas é a única “morning person” da casa e fica irritadíssima com a moleza do resto do bando).
De maneira geral, aproveito a manhã para atividades não intelectuais. Muito raramente escrevo qualquer coisa nesse momento do dia; isso só acontece quando me surge uma ideia do nada, e eu paro para anotá-la.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor à tarde e à noite e madrugada. À tarde, trabalho com mais disciplina. Quando preciso fichar textos e fazer coisas assim mais “braçais”, a tarde é o melhor momento. À noite e de madrugada, a parte criativa em geral flui mais fácil. Essa, porém, não é uma regra: vou articulando os tempos de escrita de acordo com a programação do dia, que pode variar de acordo com mil coisas imprevisíveis, sobretudo o meu humor.
E tenho minhas fases… Minha tese escrevi inteirinha, com a maior disciplina, sentada em uma boa cadeira, diante da escrivaninha, ao lado do Pedro, meu marido, que defendeu a tese dele dez dias antes de mim. Ter ao lado alguém disciplinado como ele foi bem fundamental para terminar a tese a tempo. Funcionava como uma influência, claro, mas também como um bastião moral… Dava vergonha não trabalhar, tendo alguém tão compenetrado sentado ali pertinho!
Hoje em dia o que tem funcionado melhor para mim é trabalhar em cafés. Eu gosto muito de trabalhar nos cafés da Asa Norte, em Brasília. Descobri que fico infinitamente mais compenetrada fora de casa – não porque me distraio com diversões ou afazeres domésticos; acho que o silêncio é que me distrai! Não sei ao certo o motivo, mas a presença de pessoas ao meu lado, mesmo quando estão conversando, é algo que me ajuda a focar no meu próprio trabalho. Só não vou a cafés todo dia porque gastaria minha bolsa de pós-doc inteira com chás, bolinhos, cafés e minha nova obsessão, kombuchas!
Mas, mesmo quando estou em casa, vou variando muito – às vezes escrevo na escrivaninha (estou numa fase de birra com ela), às vezes na mesa de jantar, e, mais frequentemente do que deveria, no sofá da sala.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Bom, acho que essa resposta já está implícita. Durante a tese, até tentei inventar metas diárias, mas, no fim, a única meta era mesmo escrever alguma coisa, qualquer coisa! Havia dias em que só rascunhava algo, outros em que eu escrevia horas a fio.
E eu funciono muito bem com prazos – a coisa mais difícil pra mim é escrever alguma coisa sem um prazo definido. Por isso demorei tanto a responder esta entrevista! E com artigos acadêmicos, funciono assim também: sou aquela pessoa que faz o upload do paper às 23:58 do último dia.
Agora estou trabalhando na versão da tese para publicação em livro – reescrevendo algumas partes, apenas revisando outras. Talvez devesse ter uma meta: não voltar para a página um sempre que pego o arquivo! Mas preciso me desapegar. Eu sempre vou achar que poderia ficar melhor, porque sempre poderia mesmo!
Estou escrevendo também aquele que será meu “trabalho final” de pós-doc, um livro sobre a experiência de “transcorporificação” do leitor (eu!) ao ler poesia. Será um livro muito mais experimental, em um formato bem ensaístico. Por enquanto tenho apenas vários começos de capítulos – é uma nova prática, que começou sem querer. Na verdade, só vou me dedicar a essa escrita, exclusivamente, a partir de novembro; mas volta e meia leio alguma coisa que quero incluir ou tenho uma resposta afetiva a algum poema que leio, e aí escrevo esses “começos de capítulos”, cheios de pedacinhos de ideias e de recadinhos para mim mesma.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nada mais assustador que uma página em branco, né? Além desse apreço doido por prazos apertados, acho que herdei do tempo em que trabalhei como redatora, na Folha de S. Paulo, uma relação de amor e ódio com lides. Por um lado, acho realmente que o parágrafo que inicia um texto ou um capítulo tem que ser especial, chamar a atenção de alguma forma, mesmo que seja simplesmente porque está bem escrito. Por outro, tenho horror àquelas introduções do tipo “vou tratar aqui de tal assunto sob a ótica de tal autor”. Já fiz isso, claro, quando era regra. Mas, de modo geral, meu lema é: menos objetividade e mais charme, gente. Isso não vale para todas as áreas do conhecimento, eu sei (e lamento), mas, nas artes e humanidades, quem escreve pode e deve usar a linguagem não só para informar como para envolver o leitor. Não se trata de florear o texto, mas de entender que ele tem duas dimensões que se interpenetram, e que é nesse bobolô de efeitos de leitura que se produz uma resposta produtiva. Enfim, com toda essa pressão, começar é difícil, e eu tento começar só quando aparece uma ideia legal. Nem sempre é possível, claro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com as travas e a procrastinação, eu lido fingindo que está tudo bem, que meu estilo é esse mesmo. Às vezes eu me convenço, às vezes me angustio. O maior problema desses momentos é que os bloqueios se auto-alimentam. Já não fico mais tentando, tentando, sem sucesso, porque aí a ansiedade só aumenta.
Quando travo, geralmente é porque não estou mesmo a fim daquilo naquele momento. Já faz tempo que não me dedico a uma escrita que não me deixe contente – eu gosto muito mesmo de escrever. Escrever sem prazer – seja a tese, seja um artigo – é um troço que para mim não faz nenhum sentido. Se não estou curtindo, vou ver uma série, ler alguma coisa, beber um vinho, passear com as cachorrinhas, brigar com alguém no Facebook. A vida já é difícil por si mesma, não vou transformar um problema simples em um metaproblema!
É claro que essa tática tem uma consequência chata: não consigo me programar, trabalho em quase todos os fins de semana etc. Ainda assim, tem valido a pena.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante meus textos, aí mexo algo bem importante e envio sem reler, e depois vejo que não deveria ter mudado. (Mas, se não mudar, depois decido que deveria ter mudado, sim, então…). Mostro tudo ao Pedro, que é um excelente leitor. Mesmo sendo de outra área – é sociólogo –, sempre faz observações relevantes, corrige erros e poda coisas muito líricas ou hippies. Às vezes, eu me irrito, claro; sou meio hippie e lírica, ué (não necessariamente no bom sentido!). Tenho algumas amigas, da literatura e do jornalismo, cujas opiniões também valorizo imensamente; envio textos a elas quando acho que elas podem se interessar, ou quando são coisas particularmente importantes pra mim. De qualquer forma, tenho uma confissão horrível: às vezes não mostro a ninguém, quando estou particularmente sensível a críticas (ou com preguiça de fazer alterações!).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador. Existem experimentos da psicologia cognitiva que sugerem que há, em determinadas atividades, comandos que vão diretamente de um estado pré-consciente da mente à superfície corporal, em forma de movimentos. Entre esses processos estão os reflexos, claro, mas não só. Acredito que, em momentos fluidos de escrita, atos semelhantes a reflexos se operam. Sinto, muitas vezes, que determinadas ideias chegam aos meus dedos dez milissegundos antes de chegar ao foco da minha consciência. Se eu começar a prestar atenção no processo de escrita (nesses momentos), travo totalmente. Acho bem doido. Gostaria, inclusive, de saber se outros autores passam por experiências assim – imagino que sim.
O lance é que a tecnologia papel-e-caneta não permite esses momentos: a escrita manual é, para mim, infinitamente mais racional. Tenho trocentos caderninhos cheios de palavras a lápis, mas são sempre ideias jogadas, ou anotações de aulas e palestras. Não sou capaz de formular uma frase realmente boa no papel. Nem à caneta gosto de fazer essas anotações, porque acho que o lápis dá uma sensação de maior volatilidade, é menos grave!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ideias vêm de todo lugar, da mesma maneira que os afetos. O mundo é um lugar horrível, porém sensacional. O mesmo vale para as pessoas. Você nunca sabe de onde vai aparecer um troço lindo, perturbador, esperto, genial. Tenho a sorte de estar cercada de amigos não apenas brilhantes como supersensíveis à realidade. Adoro ouvir pessoas contando experiências de leitura, sobretudo quando não estão se esforçando para fazer comentários inteligentes! Foi um comentário bem simples e bonito do supervisor do meu pós-doc, o Sergio Alcides, que deu toda a energia que move o livro que estou começando.
Além disso, minha tese (e muitos outros textos) não existiria se eu e Pedro não tivéssemos o hábito de ficar bebendo vinho e conversando até tarde. (Nessas horas, anoto ideias em qualquer lugar, no celular, em bloquinhos, no que for.) Conviver diariamente com as cachorrinhas também é tremendamente instigante para alguém que, como eu, se dedica a questões referentes à consciência, à imaginação e aos afetos corporais.
Por fim, as ideias vêm dos livros e outros objetos estéticos ou teóricos, claro – às vezes de alguns improváveis. Há algumas referências que nunca perdem sua qualidade de potência inspiradora. “Inspiradora” é uma escolha terminológica carregada. Mas o que quero dizer é que tenho uma coleção mental de momentos, imagens, que voltam sempre à cabeça, espontaneamente. A mão de Alec sobre o ombro de Laura em Brief Encounter (replicada por Meryl Streep e Clint Eastwood em Pontes de Madison); Milton Nascimento cantando “O que será que será / Que todos os avisos não vão evitar / Porque todos os risos vão desafiar…”; o padre que se mistura à moça no poema do Drummond; todas as mãos das esculturas da Camille Claudel; a mordida que o Suarez deu no Chiellini na copa de 2014; o momento de regeneração do 10º doctor da série Doctor Who; Jesus Cristo se lançando ao chão, em desespero, com medo de morrer.
E há sempre a poesia. Aqui em casa há livros de poesia espalhados por todos os cantos. Gosto muito de abri-los ao léu – não me lembro se algum dia li algum livro de poemas de cabo a rabo, na ordem das páginas… Me parece que a estratégia do susto, esse se abandonar à presença instantânea do poema, produz muito mais efeitos. Na minha frente, vejo aqui o Mínima Lírica, do Paulo Henriques Britto, de quem eu nunca fui a maior fã, por achar muito cerebral. Mas outro dia comecei a ler a “Liturgia da matéria”, nesse mesmo volume, e estou obcecada, abro toda hora pra reler, já fiz uma anotação para mim mesma no rascunho do novo livro… Um poema que se encerra relacionando a origem dos deuses a um “desejo úmido de morder” – olha só que coisa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Essa primeira é a pergunta mais difícil. Acho que estou mais segura, espero que esteja! Tenho menos medo de resvalar em argumentos que possam ser acusados de místicos ou hippies. Por outro lado, estou mais atenta a questões políticas. Não sei se essas são questões propriamente ligadas ao “processo de escrita”, mas não consigo separar muito bem as coisas. Quero acreditar que estou menos ansiosa com os bloqueios e os momentos de desânimo. Quanto ao que eu diria à Ligia de 2015, 2016: “Garota, menos citações, menos aspas, por favor!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero ler todos os livros que já existem, antes de pensar em um que não exista! Fico desesperada quanto à quantidade de lançamentos bons. A cada vez que vou a Belo Horizonte e entro naquelas livrarias de rua maravilhosas da Savassi, eu saio com quilos de livros e toneladas de culpa e ansiedade por não ter tempo de ler tudo. Quanto a projetos, eu adoraria traduzir! Nunca me aventurei nessa área, mas acho que me divertiria bastante. Além disso, e nem sei se isso pode ser chamado de projeto, porque é um projeto meio impossível, mas eu adoraria ter o talento e a disciplina para escrever poemas. Já escrevi alguns, perdidos por aí, mas acho ruins, truncados, não merecem sair da gaveta. Quem sabe um dia o vírus da poesia me pega?