Lidia V. Santos é escritora, doutora em literaturas latino-americanas, autora de “Diários da Patinete. Sem em pé em Nova York”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal, desde 2012, passou a ser determinada pela quebra de um tornozelo, tema do meu livro mais recente: Diários da Patinete. Sem em pé em Nova York. O êxito da minha recuperação desse acidente deveu-se `a rotina de exercícios físicos que nunca mais abandonei porque, além da cura, aprendi com eles a integrar o trabalho intelectual ao cuidado com o corpo. Prezo muito um bom café da manhã, cheio de frutas, depois do trabalho corporal. Quando estou no Rio, a isso se segue o tratamento do meu jardim, quase todo plantado sob uma mangueira, que produzindo mais de mil frutas a cada verão, me fez gostar ainda mais dessa cidade onde nasci. Em seguida, procuro tomar diariamente um banho de sol (escrevo em tempo de quarentena), que, num apartamento térreo em Copacabana sempre chega quando a manhã já vai alta. Sob esses poucos minutos de sol, celular em punho, repasso as notícias e respondo aos amigos por via eletrônica.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho a qualquer hora do dia. Fora dessa rotina matinal (quando, como se viu, não sobra tempo para escrever), posso escrever a qualquer hora. Não tenho rituais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim, escrevo todos os dias, não necessariamente um texto literário. Me obrigo a escrever: no meu blog, nas respostas nas redes sociais. Minha meta é treinar a escritura. Escrever bem, em qualquer meio. Sigo o conselho de uma psicanalista, de cujo nome, como disse Cervantes a respeito de sua província natal, “no quiero acordarme” (Sendo escritora num momento em que, na verdade, não consigo lembrar-me do nome dela, RISOS). Segundo essa psicanalista, a angústia dos escritorxs deriva do fato de não perceberem de que até um bilhete para um amante ou amigo pode ser um exercício de escritura. Inclusive para os músculos que usamos no ato de escrever. Minhas oficinas de texto sempre começavam com um exercício de escrever palavras a esmo, cada vez mais rapidamente. E os alunos levavam para casa naquele dia o exercício de buscar, no jorro de palavras que tinha produzido, as que pudessem compor um texto literário.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Só muito recentemente pude dedicar meu tempo inteiramente `a escrita criativa. Fui professora de literatura na Universidade Federal Fluminense e também dei oficinas de texto, aqui no Rio e fora dele, por muito tempo. Além disso, em 1995, depois de dois livros de contos publicados, a convite da Universidade de Yale, fui ensinar nos Estados Unidos. De 1995 a 2012, escrevi muito mais textos acadêmicos do que criativos. Por muito tempo, lutei contra a profissão com que ganhava o pão. Dela liberada em 2012, comecei a escrever os Diários da Patinete, onde o humor predomina e que, ilustrado, conversa com a predominância da imagem nos novos tempos que encontrei depois de tantos anos sem publicar literatura. Para minha surpresa, o livro terminou incorporando muito do que aprendi na vida acadêmica. Anos de pesquisa nele entraram. Na forma de citações, comentários e até como piadas. E o escrevi em poucos meses. No momento, escrevo finalmente o livro que venho gestando há anos e que, envolvendo personagens de outros séculos, me vem custando muita pesquisa. Concluindo: mesmo que não admita, meu treinamento como professora universitária me transformou numa pesquisadora. Admito, portanto, que levo muito tempo na pesquisa (atendendo ao meu lado acadêmico). Uma vez satisfeita com o que encontrei, libero a escritora, escrevendo sem parar, todos os dias, até terminar o livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Este é um grande problema. Especialmente quando se vive em duas diferentes cidades, uma em cada país. Isso facilita a procrastinação. Não há rotina se você passa seis meses no Rio de Janeiro e seis meses em New York. Quando você procura em New York um livro que está no Rio e vice-versa. Quando você carrega os materiais que anda pesquisando ida e volta entre as duas cidades, ambas repletas de atividade culturais que você “não pode perder”. Ainda estou aprendendo como me concentrar no meio desse turbilhão do qual, por outro lado, não quero sair, porque ele aumenta consideravelmente a minha exposição, não só a soluções criativas de outras artes, que termino por incorporar nos meus textos, mas também ao universo humano sobre o qual escrevo, que hoje abarca os dois países onde vivo. Já o medo de não corresponder `as expectativas me acompanha em cada frase que escrevo. Só deixo uma frase quando me parece que não posso melhorá-la mais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso sem parar. Até depois de publicados, encontro mudanças que poderia ter feito. Sou, principalmente, uma narradora. Mas com plena consciência de que mais importante do que o que conto é a domesticação da minha língua nativa, que tão bem conheço e de cujos desgastes do seu uso cotidiano tenho que fugir com coragem e rigor. Daí a minha insistência em não abandonar a língua portuguesa. Como minha exposição `a língua inglesa deu-se numa idade já madura, não poderia brincar com ela, revinventá-la, como faço com a minha língua nativa. Meu primeiro leitor é sempre meu marido e grande companheiro, inclusive na área intelectual. Também mostro textos curtos aos amigos mais chegados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, como antes escrevia na máquina de escrever. Aprendi que tinha que escrever assim com a Nélida Piñon, com quem fiz uma Oficina de Textos ainda da Faculdade de Letras da UFRJ. Ela nos chamou a atenção para o fato de que o texto (naquela época datilografado) nos dá uma idéia mais clara de como ficará ao ser impresso, que cara terá a página. Nunca mais escrevi `a mão. Quanto `a tecnologia, estou aprendendo. Em 2019, iniciei um blog, inserido no site Lidia V. Santos, escritora. Nele, publico crônicas ilustradas que, numa espécie de continuação dos Diários, contam como se vive nas duas cidades em que hoje divido minha residência. Eles podem ser acessados em www.lidiavsantos.com/blog
Estou no Flume /Instagram como lidia.santos.967; no Facebook, onde, na página Diários da Patinete. Sem um pé em Nova Iorque, publico posts sobre literatura, arte e notícias sobre cultura. Mantenho, num outro perfil, uma espécie de memória da trajetória do livro, com posts sobre eventos em que participei com ele. Chama-se Friends Who Like Diários da Patinete: Sem um pé em Nova Iorque.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas idéias vêm de todo lado. Felizmente a minha formação e o meu treinamento acadêmico não mataram a minha capacidade de observar os humanos, que são, afinal, os personagens de um narrador; e o ambiente que os circunda. Nem a curiosidade pela arte, venha ela em qualquer linguagem. Nesse sentido, acho que uma obra de arte visual, ou musical, e até a ciência pura, me ensinam mais do que um texto de teoria literária ou de ciências sociais. Me refiro `a parte criativa do meu trabalho escritora, porque reconheço que a minha formação em Letras, claramente me ajuda na escolha dos gêneros literários que posso usar e nos truques que percebi nos muitos escritores cuja obra pesquisei e /ou ensinei contém. Também a filosofia me ajuda na hora de aprofundar certos recursos criativos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Os Diários da Patinete. Sem um pé em Nova Iorque, publicado em 2015 (tendo ora em andamento sua publicação em inglês), me ensinou que eu podia me divertir escrevendo. Que escrever literatura séria não precisava ser uma tarefa árdua, com temas pesados. Foi um alívio imenso. Depois desse livro, tudo ficou mais fácil. Tanto, que até mudei meu nome de autora para LIDIA V. SANTOS, modo, ainda, de liberar-me do nome profissional que me atribuíram nos Estados Unidos, onde em geral cortam o nome completo que, no meu caso, é Lidia do Valle Santos, Não tenho interesse em voltar `a escrita dos meus primeiros textos, nem ao nome Lidia Santos. E meu nome completo é muito longo. Ainda gosto muito de antigos textos meus, como “Os Ossos da Esperança”, conto que me deu o Primeiro Prêmio do primeiro Concurso da Radio France Internationale /RFI dedicado aos escritores brasileiros, que recebeu o nome de “Prêmio Guimarães Rosa”. Até então, a RFI atribuía esse prêmio apenas aos escritores latino-americanos que escreviam em espanhol. Nomes importantes, como o do cubano Senel Paz, foram revelados por esse concurso. O título desse conto, graças ao prêmio traduzido em muitas línguas, passou a ser o título do último livro que publiquei, ainda com meu nome de autora sendo LIDIA SANTOS, antes de sair do Brasil, em 1995: Os Ossos da Esperança. Publiquei o conto recentemente no blog do meu site Lidia V. Santos, escritora, além de três outros contos desse livro: “A volta do Bruxo”, “Lembrança de Getúlio” e “Influência do Jazz”. Meu primeiro livro, Flauta e Cavaquinho, publicado com a autoria LIDIA SANTOS, em 1989, também teve um título emprestado de outro conto premiado, o “Sinfonia para Flauta e Cavaquinho”, que recebeu o prêmio oferecido pelo então ativo Conselho Nacional da Mulher, `as “Escritoras Emergentes”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Todos os projetos que gostaria de fazer já estão começados, Espero acabá-los nos próximos anos. Se tal livro não existe, como posso saber se gostaria de lê-lo? E, se quero ler algo que não existe, o jeito é escrevê-lo. Mas, como se diz trazer má sorte falar sobre o que ainda não se escreveu, ou terminou, melhor ficar calada.