Licia Maria Henrique da Mota é doutora em Ciências Médicas pela UnB e médica reumatologista do Hospital Universitário de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia bem cedo, um hábito que adquiri na infância. Habitualmente, durmo pouco. Acordo, checo os e-mails recebidos durante a noite (já respondo o que for possível, e organizo o restante em pastas de pendências), leio os principais sites de notícias e os highlights das revistas científicas mais importantes da minha especialidade e respondo às muitas mensagens que chegaram durante o período de desconexão do sono. Tomo um banho e, depois meu café-da-manhã (que meu marido, que acorda ainda antes de mim, deixou pronto), visto-me e faço a maquiagem para o dia de trabalho. Essa rotina é cumprida antes que as crianças acordem. Tenho dois filhos pequenos, que precisam estar na escola às 7h50, e sou eu quem fiscaliza o banho matinal, prepara o café, penteia o cabelo, escova os dentes, checa as mochilas e organiza a algazarra que é a saída de casa todas as manhãs. Chegamos rigorosamente em ponto na escola, ou alguns minutos adiantados. Digo para eles que a pontualidade é um hábito que precisa ser cultivado. Depois de deixá-los no colégio (eu em geral não uso o sistema drive-thru – prefiro estacionar e descer com eles para um último beijo, na porta de entrada, para ganhar um tempinho a mais com eles), dirijo-me ou para a universidade ou para meu consultório, a depender do dia da semana. A rotina do dia é sempre corrida. Há os ambulatórios no hospital universitário, onde oriento os residentes de Reumatologia e de Clínica Médica, as reuniões na universidade, os orientandos do programa de pós-graduação, os pacientes do consultório (e muitas mensagens, ligações e e-mails, de urgências objetivas ou subjetivas, que precisam ser respondidas com a maior agilidade possível, quase que em tempo real), a redação dos artigos científicos, as demandas que advém da Direção Científica da Sociedade de Reumatologia de Brasília e, muito mais numerosas e complexas, da Coordenação da Comissão de Artrite Reumatoide da Sociedade Brasileira de Reumatologia, a preparação das diversas aulas, para os eventos locais e nacionais… E há as muitas viagens – palestras, congressos, fóruns e preceptorias. Desde que me tornei mãe, as viagens foram reduzidas às essenciais – mesmo assim, são muitas. Sempre que possível, se o destino é nacional, faço uma ginástica para ir e voltar no mesmo dia. A mala de cabine fica permanentemente preparada para o próximo embarque. Se o evento é internacional, a permanência é calculada para o menor período viável, para que a rotina da casa sofra o menor impacto possível.
As crianças estudam em período integral, e saem da escola entre 16h e 18h, a depender do dia da semana. Sou eu quem os busca no colégio na maior parte dos dias, e quem os leva para atividades extra-curriculares, como a natação e a dança. Eu e meu marido dividimos a rotina de auxiliá-los nas tarefas de casa e nas pesquisas. Jantamos juntos, quase todos os dias, e o período da noite é dedicado a eles – conversa, brincadeira, às vezes um pouco de televisão, banho e cama. Eles dormem por volta das 21h30.
Depois disso, vem a hora de responder novamente aos e-mails, mensagens, corrigir artigos e teses, preparar aulas, estudar, escrever… A noite é minha grande amiga.
No meio da correria, não abro mão de duas coisas: frequentar a academia e as aulas de ballet. A mochila com a roupa de academia está sempre no carro – vou na hora que consigo, às vezes bem cedo, às vezes muito tarde. As aulas de ballet têm horário fixo – segundas e quartas, de 20h às 21h30. No segundo semestre, os horários se multiplicam em função dos ensaios para o espetáculo de final de ano, do qual também não deixo de participar. O espetáculo quase sempre coincide com o maior congresso mundial da minha especialidade – o americano – já precisei voltar mais cedo do evento e passar a noite viajando para chegar no teatro a tempo da apresentação. Às vezes, penso que o esforço é grande demais e que eu deveria escolher. Mas gosto tanto da dança, e acho que ela me ajuda tanto a manter minha mente concentrada e produtiva, que vou tentando equilibrar tudo, da melhor forma possível. E vamos seguindo em frente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com essa rotina tumultuada, não posso me dar ao luxo de escolher um horário para trabalhar melhor. Toda hora é hora, e não há lugar que não seja propício. Estando com meu computador, com meu celular, ou com papel, escrevo em minha casa, cedo ou tarde da noite, no salão de embarque do aeroporto, no avião, no saguão do hotel, no banco reservado aos pais durante a aula de natação das crianças, no estacionamento interno da escola, enquanto aguardo a saída das crianças, no restaurante do prédio onde fica meu consultório, no próprio consultório, nas raras ocasiões em que há uma folga entre um paciente e outro, no salão, enquanto faço as unhas ou corto o cabelo. Enfim, em qualquer lugar. Não preciso de um ritual. Preciso de uma ideia e de tempo – e o tempo eu sempre dou um jeito de conseguir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo praticamente todos os dias, incluindo os finais de semana. Não estabeleço metas diárias, mas metas semanais. Faço um cronograma de atividades a serem cumpridas durante a semana, de acordo com a agenda e as demandas das semanas seguintes. Habitualmente, concluo os artigos e as aulas com antecedência – não gosto da sensação de estar atrasada. Minhas metas são bastante rígidas, mas geralmente consigo cumpri-las até sábado à tarde, de forma que o sábado à noite e o domingo são geralmente dedicados ao lazer com a família.
Como mantenho uma intensa atividade acadêmica de pesquisa e publicações científicas, tenho experiência considerável com elaboração de artigos científicos. Escrever algo lúdico, em linguagem simples, voltada principalmente para as crianças, foi uma vivência nova, muito prazerosa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita sempre foi fácil para mim. Tendo a ideia, e fazendo o levantamento das informações necessárias, o processo flui tranquilamente. Registro primeiramente em tópicos as ideias principais a serem abordadas, em uma ordem que faça sentido, e depois desenvolvo cada tema com mais profundidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho problema com procrastinação. Gosto de trabalhar com projetos longos – a maioria dos meus trabalhos é de longa duração – e o desafio de manter a rotina organizada para atingir os resultados me é muito estimulante. Também não sofro com o receio de não atender às expectativas alheias. Não podemos agradar a todos, e fico muito feliz quando consigo agradar a mim mesma. Absorvo as críticas construtivas e, em geral, consigo não me preocupar com o que considero negativo. Sei que isso não é fácil. Tento ensinar os alunos da pós-graduação a não se martirizarem por não atingirem o que consideram a perfeição. Tento ensiná-los a não lutar por um ideal inatingível. Não sou perfeita, e minha escrita, que é um reflexo de mim, nunca será. Aceito bem isso, e vivo tranquila.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos muitas e muitas vezes. Tenho a impressão de que nunca estão realmente ideais, mas, como disse anteriormente, aceito o fato de que não poderão sê-lo. Se aguardasse a perfeição, provavelmente inatingível, deixaria de publicar muita coisa que considero útil para meus pares. Compartilho o que escrevo com os coautores do trabalho que estou desenvolvendo. Algumas vezes mostro meus escritos para meu marido, embora eu o considere um tanto condescendente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Lido bem com toda forma de tecnologia, e procuro incorporar as novidades à minha rotina. Posso escrever à mão, mas escrevo da mesma forma no celular, no tablete ou no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A ideia para um projeto ou para um artigo pode surgir durante a discussão de um caso no ambulatório, na aula de outro colega ou de um residente, durante uma banca de defesa de tese. Mas não há um padrão. Às vezes, tenho ideias enquanto dirijo, enquanto brinco com as crianças, durante a aula de ballet, na academia, no cinema. Gosto de mesclar a arte com a ciência, e procuro inspiração em livros não científicos, em exposições, em filmes clássicos e, principalmente, na ficção científica. Penso que não podemos restringir nossa vida a apenas um aspecto. Acho que o que me mantém inspirada, e produtiva, é saber (ou pelo menos tentar) dosar minhas várias facetas: mulher, esposa, mãe, médica, pesquisadora, professora, malhadora, bailarina, música (fiz formação em órgão litúrgico, e pratico com certa regularidade). Aprendi com a minha mãe, desde muito pequena, o prazer pela leitura e devoro vorazmente tudo o que me cai às mãos, de jornais e revistas semanais a clássicos da literatura, passando por romances, tratados de estratégia de guerra, compêndios de história da arte e da medicina, ficção científica, literatura infanto-juvenil e para young adults. Sou eclética e leio desde grandes escritores a anônimos que escrevem fanfics em sites como o Arquives of Our Own e o Fanfiction.net. Sou adepta das mídias sociais e acompanho vários blogs do Tumblr sobre assuntos diversos da medicina, como arte, literatura e moda. Distrai, estimula e rejuvenesce a mente. Vivo da curiosidade de descobrir, de pesquisar, da realização que é publicar o resultado da pesquisa, mas também sou amante da boa mesa, adoro viajar a turismo, conhecer novas pessoas e lugares. Somos sistemas complexos e interligados, e creio que é essa vontade de aproveitar cada momento da vida em plenitude que nos mantém vivos, e ativos. Se pudesse, me multiplicaria em vários clones, para poder fazer cada vez mais coisas: todas as atividades me completam e me dão prazer, e mantém minha mente criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu basicamente não mudei meu processo de escrita ao longo dos anos. Sempre fui direta e objetiva. Mas creio que aprendi com o tempo a priorizar assuntos, e, principalmente, selecionar os periódicos para publicação. Se pudesse voltar no tempo, teria direcionado alguns dos meus artigos iniciais para periódicos de maior fator de impacto. Mas não acho que as experiências antigas tenham sido inválidas ou oportunidades desperdiçadas. Pelo contrário, foi com os erros que cresci e aprendi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto pessoal que preciso abraçar é o de aprender a cozinhar. Gosto de comer bem, mas eu e o fogão nunca nos demos bem…
Gostaria de ler o livro: Manual para mães (muito) ocupadas – como conseguir comparecer às reuniões que a escola marca (sempre) no seu horário de trabalho e “Vira-tempo – um guia prático para tele-transporte”.
Acho que ainda vou precisar esperar um tempinho…