Lia Sena é poeta, autora de Na Veia da Palavra, livro vencedor do Prêmio Sosígenes Costa de Poesia 2018.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina. Encaro cada dia da minha vida como único e especial; deixo acontecer com tranquilidade. Como não tenho um emprego formal, não tenho horário para acordar e não me cobro muito quanto à execução de tarefas. Costumo ficar acordada até bem tarde; gosto de aproveitar as madrugadas, o silêncio noturno me faz bem. Sempre tomo um copo de água ao acordar e logo após o café, antes de iniciar qualquer tarefa. Não terceirizo as tarefas domésticas, portanto, cozinho durante as manhãs, verifico notificações na internet quando tenho vontade, dou uma olhada nas notícias e sigo tranquila. Hoje em dia, priorizo qualidade de vida; desacelerei o ritmo e procuro focar em coisas que me dão prazer, como escrita, leitura, trabalhos manuais, música e muita poesia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há um horário em especial; sigo o meu desejo, a vontade de fazer. Pode ser a qualquer momento do dia e acontece sem nenhuma preparação ou ritual. Às vezes, nos momentos mais insólitos, tenho vontade de escrever um poema, deixo tudo e escrevo, mas como falei na resposta anterior, sou noctívaga, adoro a noite e acabo escrevendo mais à noite. Se for um trabalho que exija mais organização, um texto longo, uma revisão, prefiro sentar durante o dia, colocar o notebook numa mesa e executar o trabalho com mais precisão, mas quando se trata de escrever poemas, geralmente estou na cama com o computador no colo e escrevo quando vem uma necessidade que cutuca de forma irremediável ou pelo simples fato de decidir, agora vou escrever um poema, mesmo que não tenha a menor ideia do que vou escrever. A escrita acontece de forma muito fácil para mim; parece arrogante dizer isso, mas tenho que dizer porque é verdade. Geralmente não preciso de nenhum estímulo externo, de ambiente favorável, de emoção forte que me mova. Escrever é muito natural em mim, especialmente na linguagem poética.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De modo geral, escrevo todos os dias, exceto quando estou em viagens, com muitos compromissos, eventos e atividades de lazer. Nesses períodos relaxo e não me cobro a necessidade de escrever. Como tenho o hábito de escrever e publicar imediatamente um poema no Face quase todas as noites, as pessoas sentem falta quando estou viajando e acabo não dando muita atenção à internet, mas como tenho essa gama de leitoras e leitores fiéis, procuro publicar ao menos poemas escritos anteriormente. Como é tudo muito líquido e passageiro nas redes sociais, trazer de volta um poema já publicado é muito positivo, pois além das releituras, há novas pessoas, leitoras e leitores que não haviam lido antes. Quando estou envolvida em algum projeto que exige a escrita de determinado número de poemas inéditos a curto prazo, como aconteceu recentemente, preciso dedicar mais horas à escrita e de forma mais concentrada. Durante o mês de junho, fiquei sabendo de um concurso, após chegar de uma viagem de mais de um mês na qual fiz algumas noites de autógrafos do meu novo livro, De foro íntimo (Editora Penalux), editado esse ano e participei de vários eventos. Queria concorrer ao prêmio, mas não dispunha de poemas inéditos para tal, pois acabara de editar um livro e concorrer a outro prêmio, no qual fui vencedora, com outro livro que sairá em breve, pela Editus (editora da UESC), portanto, dediquei-me a escrever, durante uns quinze dias seguidos, mas sem sofrimento, sem abrir mão de fazer outras coisas, sem forçar os meus limites; sempre dentro do princípio de liberdade que norteia a minha vida e consegui escrever e organizar um livro que me agradou, dentro desse curto espaço de quinze dias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo é muito libertário, muito tranquilo e sem sofrimento. Quando lidava com os trabalhos acadêmicos ou quando ainda hoje tenho que executar um trabalho fora da poesia, nunca tive e nem tenho dificuldade para começar, pois sempre tenho um entendimento rápido dos textos que leio; assimilo com facilidade as matérias e consigo desenvolver com facilidade os temas que domino. Quando se trata de poesia, mais fácil ainda; às vezes escrevo um poema em dois minutos e publico imediatamente. Na prosa, não gosto de me arriscar muito, para não ficar prolixa; geralmente muitas ideias avolumam-se na minha cabeça e, se não tiver bom senso, posso perder o fio da meada. Mas gosto desse exercício de escrever textos. Creio que transito facilmente nesse território da escrita, desde que haja conhecimento prévio, embasamento e segurança sobre o que estou escrevendo e, para isso, óbvio que a pesquisa é importante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é algo que me incomoda; não gosto da sensação de deixar para depois algo que precisa ser feito; não fico bem, não consigo relaxar sabendo que há algo a fazer e que não fiz; gosto do ócio com a sensação de tarefas cumpridas, por isso não adio; gosto de antecipar e ficar livre, pois prezo muito a minha liberdade, o meu direito a não fazer nada se não quero, mas sou extremamente responsável e cumpridora da minha palavra, portanto prefiro me antecipar a procrastinar! Quanto às expectativas, não alimento muito essa necessidade de corresponder à expectativa do outro/outra. Procuro corresponder às minhas expectativas, estar bem comigo mesma e satisfeita com o que produzo; o que vier, será lucro e virá sempre, se for um trabalho honesto, responsável, feito com amor e verdade.
Os projetos longos me deixam ansiosa se não estiverem correndo de forma satisfatória; tenho a mania de carregar o mundo nas costas e quero resolver todas as pendências, contornar os possíveis problemas e rola muito desgaste, mas se dá tudo certo no final, é gratificante! Tive uma experiência desse tipo no ano passado, pois fui uma das organizadoras, revisora e também participei como poeta, da Antologia do Mulherio das Letras da Bahia e não foi muito fácil lidar de forma prática e tranquila com um projeto que durou meses e envolvia 37 mulheres. Lógico que alguns momentos de estresse, discordâncias, dificuldades, ocorrem, mas se o resultado acontece de uma forma bonita, que até supera as expectativas, é muito bom. Foi o que aconteceu com a nossa antologia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, pois apesar de escrever sem grandes erros, muita coisa escapa ao olho viciado e cansado, principalmente no computador. Se o seu ofício, em especial, é a escrita, acredito que é irresponsável publicar de qualquer jeito. O artista de qualquer área é um formador de opinião; há pessoas que o acompanham, inspiram-se em seus trabalhos e merecem que haja esse cuidado.
Não costumo mostrar para ninguém o que vou publicar; acho que raramente fiz isso! Quando se trata de um livro, passa pela leitura e apreciação do editor, mas com relação a poemas e textos que publico diariamente, não mostro para ninguém antes. Sou muito crítica acerca do meu trabalho e, se me agrada, já me sinto segura para publicar, mas em determinados momentos é bom ouvir a opinião de outras pessoas. No caso de escolher um poema para colocar num concurso, por exemplo, acho importante ouvir a opinião de outras pessoas antes, pois nesses casos de escolha, sou muito indecisa e acho terrível ter que optar por um.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma boa relação com a tecnologia; escrevo tudo no computador. Não tenho o hábito de escrever rascunhos e acabei me acostumando tanto a escrever diretamente no computador que sinto um certo bloqueio se preciso escrever algo no papel. Não gosto de escrever no celular; acho o corretor irritante e, como sou distraída, às vezes saem umas barbaridades que não reparo antes de publicar e aí tenho que recorrer à edição. Por isso evito ao máximo usar o celular para escrever qualquer coisa mais importante, mas considero o computador uma excelente ferramenta. As ideias fluem com mais facilidade se estou digitando.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Costumo falar sempre que a minha relação é com a palavra; a minha motivação é a palavra. Às vezes uma única palavra surge e eu gosto dela e eu construo um poema em torno dessa palavra. Às vezes estou no computador, fazendo outras coisas e decido escrever um poema; não preciso de nenhuma epifania, nenhum enlevo, nenhuma emoção profunda, simplesmente decido e vou tecendo as palavras até que elas me satisfaçam. Também não acredito nessa história de que poesia é transpiração, é trabalho duro. Não, o meu processo criativo é prazeroso, é suave, não é fruto de suor, de sofrimento ou de influências externas. Lógico que o processo da escrita, passa por nossas emoções, por memórias, acontecimentos, dores, contentamentos, mas no meu caso, deixo bem claro que minha poesia não é autobiográfica, não é diário, não é a descrição de minhas sensações ou emoções do momento.
Não sou nada metódica, detesto regras e não costumo desenvolver hábitos para criar. Gosto muito de criar; estou o tempo todo criando, seja num trabalho artesanal, numa fala, na escrita de um poema; o ato de criar me satisfaz e enleva; sinto um enorme prazer ao criar e ver o resultado pronto. Graças a Deus, não preciso de muitos estímulos para isso, no máximo gosto de escrever ouvindo música, de preferência música instrumental, pois as músicas com letra acabam interferindo no meu processo de escrita, então escrevo muito ouvindo música clássica, jazz, rock suave…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, mudou muita coisa! Creio que houve amadurecimento e evolução, tendo em vista que o objetivo é melhorar constantemente; aprender, fruir antropofagicamente, outras escritas, ler constantemente outras pessoas; não se acomodar, achando que já é o máximo; enfim, acredito que hoje escrevo bem melhor do que fazia há alguns anos. Apostei cada vez mais na liberdade de formas e temas, na amplidão que a poesia nos permite, na desconstrução do previsto, na perspectiva de agradar antes de tudo, a mim mesma com o que escrevo; ser a minha primeira leitora e crítica e gostar do resultado. E esse é um processo dinâmico; ninguém pode considerar que já é bom o suficiente; que está apto o suficiente; é preciso ter a humildade de considerar-se um eterno aprendiz.
Se eu pudesse voltar no tempo, não teria publicado, em livro, algumas coisas que publiquei; esperaria amadurecer mais; teria mais disciplina na escolha, mas é natural que isso aconteça e é saudável, pois estamos em constante evolução.
Vejo que há pessoas que publicam um livro atrás do outro, participam de vários projetos ao mesmo tempo, de muitas antologias; não gosto disso! Acho que cada livro, cada projeto, merece ter o seu tempo de ser trabalhado, de ser reverenciado, por isso gosto desse tempo de cuidar e priorizar a qualidade ao invés de quantidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pensei em escrever um livro de contos, mas já mudei de ideia e acho que será um romance. Já comecei, mas ainda é um projeto engatinhando. Não tenho pressa, creio que tudo tem seu tempo e estou me dedicando com muita cautela e calma a esse novo desejo. Se resultar em algo bom que eu leia e sinta que vale a pena, irei publicar.
Tenho muita vontade de escrever um livro baseado na vida do meu pai; esse não comecei ainda e acredito que será a empreitada mais difícil, pois terei que adentrar emoções profundas, memórias delicadas e acho que ainda não estou pronta. Escrevi uma canção em homenagem a ele; letra e melodia e as pessoas gostaram muito. Talvez um dia, o livro aconteça!
Não consigo pensar em um livro que não exista e que eu queira ler, mas sei que existem muitos livros que eu ainda gostaria de ler e não sei se terei tempo. Escrever está muito atrelado ao ato da leitura e isso nos mobiliza e impulsiona. Que haja tempo e espaço para muitas leituras e que a escrita continue em minha vida!