Lia Scorsi é doutora em Educação pela Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou uma pessoa que acredita que a vida é rara e tem de ser bem vivida em toda sua duração. Todo dia é sempre o presente descortinando-se à nossa frente com suas novidades e espantos ou simplesmente com o ordinário dos dias.
A vida me ensinou que as coisas não são permanentes, mas algumas permanências ocorrem rotineiramente desde que as circunstâncias permitam. Após ter feito as tarefas de hábitos rotineiros, banho, café, arrumação da cama, cuidado com o cão companheiro…, saio para caminhar. Essa é a forma de arejar o olhar para o dia que começa. Gosto de caminhar, olhar, fotografar cenas que contém um certo ineditismo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Feitas minhas tarefas matutinas, sento-me em meu escritório. Um espaço claro, arejado, em meio a meus livros, anotações, objetos dispostos de acordo com meu gosto. Na parede, tenho três pinturas produzidas por meu querido orientador de Doutorado que já não está mais conosco – MILTON JOSÉ DE ALMEIDA – a quem faço esta homenagem. Duas pinturas Óleo sobre Tela e uma Monotipia. As três representam corpos humanos em movimentos variados, dramáticos, profundos.
Posso dizer que estou preparada para o que o intelecto quiser produzir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estava atuante na vida acadêmica cumpria metas, sim. Eram artigos a serem escritos, palestras, pareceres, bancas de teses, capas de revistas, congressos, reuniões, reuniões… e outras atividades. A vida acadêmica assemelha-se ao trabalho doméstico, não tem fim.
Hoje, aposentada, vivendo a fase de “inutilidade criativa”, dou-me a liberdade de fruir e fluir à vontade.
Criação e Liberdade, para mim, são indissociáveis. Assim, cumpro um ritual de me colocar à disposição. Posso ouvir músicas, ler, desenhar algumas formas… até que a ideia apareça ou não.
Uma coisa é certa, temos de andar com leveza ao redor dos dias. As ideias são, mas é preciso abrir a casa para que cheguem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O ato de escrever é doente, anormal, obsessivo. Para onde se vai, carrega-se no embornal a nuvem imaginativa da possibilidade de criação.
Gosto muito de um parágrafo escrito por Rodrigo S.M., o narrador de A Hora da Estrela (Clarice Lispector):”Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.”
Meu tema de escrita, hoje, é o texto poético, prosa ou verso. “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” escreve Glauber Rocha. Digo que um lápis na mão ou um teclado à sua frente e muitas ideias fervilhando na cabeça é o início de todo o texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No passado, havia aquele suor das mãos constante, a garganta seca, o estômago embolado. O profissionalismo vem à frente e medos, travas, ansiedade, todos esses companheiros indesejados da viagem cedem à vontade de produzir. Água, um cafezinho, um abraço, boa conversa com companheiros da jornada são elementos indispensáveis da jornada. Saber lidar com o fracasso também, sobretudo quando não saímos vitoriosos de algum evento. Aprender a lidar com a complexidade de sentimentos e sensações é parte do sobreviver.
Hoje, ajo como uma daquelas personagens de Chagall que sobrevoam os cenários. Envelhecer é uma experiência riquíssima e prazerosa desde que decifremos esse enigma.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Às vezes, os textos vêm rápido como se já estivessem prontos dentro de mim e esperassem para ser transcritos. Outras, o processo é longo, demorado, fica ali esquentando, amadurecendo, dias, meses… Há sempre arquivos de textos iniciados que em algum momento são retomados ou não. Se a ideia permanece viva e deseja tornar-se matéria, o texto nasce. Nem sempre é assim… Algumas vezes, ao retomar, percebo que não vale a pena continuar, continuar seria o mesmo que forçar o nascimento de algo que está morto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso todos os recursos. Caderno e lápis, gosto do lápis e borracha. Uso o laptop. Uso o iphone. Tenho boa familiaridade com a tecnologia o que facilita a vida e muito. Sou entusiasta das sofisticadas tecnologias, das mídias, das redes. Só estou escrevendo esta entrevista porque participo das redes… Sou do tempo em que o editor de texto era o ChiWriter (1986), complicado, comandos tinham de ser decorados, perdia-se muito texto. Tempos heroicos de utilização da tecnologia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ideias vêm de todo e qualquer lugar e circunstância, por mais ordinária que seja. Se um acontecimento me toca, começo o trabalho de transfiguração do mesmo. Porque escrever é transfigurar. Figurar, imaginar, criar imagens, boas, fortes, belas o suficiente para que possam materializar-se na escrita. A linguagem é o nosso instrumento. Ler muito, observar muito, conversar muito… são hábitos de extremo poder para que possa criar. Quando digo “conversar” quero dizer ouvir muito atentamente o outro também. Nossos companheiros de jornada são coautores de nossas produções. Nada se cria do nada, tudo se restaura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A maturidade nos traz segurança, poder de decisão, clareza… Meus primeiros textos eram muito mais difíceis de serem produzidos. Muito lápis, muita borracha. A máquina de escrever já existia, mas só a usava depois de considerar pronto o texto na folha de papel sobre a mesa. A ansiedade e frustração eram tantas que me obrigavam a abandonar o texto por algum tempo. E… voltar com humildade.
Como diz Drummond: “penetra surdamente no reino das palavras”, exercício que se faz a vida inteira. E cada vez mais, vai-se conseguindo penetrar no reino, óbvio, tendo suas margens como limites. É uma relação amorosa com a palavra. Viver e sentir uma palavra nova. Pronunciá-la, distingui-la, penetrar em seus significados, pensar em conjugá-la com outras… Esse é o trabalho encantado da escrita para o qual estou disponível diariamente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto é viver e escrever no presente de minha existência. O presente é meu tempo. O passado é o presente vivido e o futuro o instante seguinte. Já que estou fora da vida oficial e oficiosa, as demandas surgem dos acontecimentos diários, rotineiros. Viajar é sempre uma porta para que novas ideias apareçam com as novidades vistas e vividas para aquele que sai de sua aldeia.
Releio muito. Há pouco tempo reli toda a obra em prosa de Machado de Assis. Que sei de sua literatura? Pouquíssimo. É preciso ler setenta vezes sete. Clarice Lispector é uma grande paixão sempre retomada. Romancista e Poetas são tantos e tão brilhantes. Fico com o que existe.