Leusa Araujo é escritora, jornalista, autora de Senão eu atiro e outras histórias verídicas (Quelônio).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia é dedicado quase que integralmente ao trabalho de encomenda: aquele que paga as contas do final do mês. Nos anos de repórter ou de editora de textos (28 anos), a escrita fazia parte da rotina. Já nos últimos oito anos, mais dedicados à pesquisa de conteúdo para roteiros de teledramaturgia – a escrita se combina com leitura, coleta de informações e pesquisa em arquivos digitais e físicos.
É bem verdade: o trabalho remunerado ocupa quase toda a rotina. E, por isso, a escrita autoral, literária, ou de ensaios de não-ficção, são uma espécie de atividade “clandestina”, ocupando horas extras. Estas horas podem estar espremidas num final de semana, nas férias, no final do expediente, ou como agora (bem ao final do dia) quando ainda há energia de sobra.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito das tardes inteiras.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Cheguei a ter livros escritos no decorrer de dez anos. Se estou sendo remunerada para escrever, então me disciplino totalmente: manhã para rever o que foi feito; tarde para dar continuidade; à noite, correção.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa é tão prazerosa que, muitas vezes, satisfeita com as descobertas, resolvo desistir da execução do que estava em mente. Aprendo com a realidade a derrubar muitos projetos fantasiosos. Então começo a pesquisar outra vez.
Para começar a escrever, o que mais me interessa é encontrar a “voz”. Fico matutando muito tempo antes. Sem a voz da narração (seja oculta, seja presente) não dou um passo. O maior prazer é me sentir “cavalo” dos meus personagens.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em geral, a trava é maior quando se trata de ensaio. A não-ficção cria compromissos de outra ordem. É preciso rigor, compromisso com informações históricas, fontes, etc. Isso acaba gerando ansiedade maior. Minha formação de jornalista e de editora é rígida, segue protocolos antigos de busca da verdade.
Mesmo na ficção, esse comportamento prossegue, buscando coerência dentro do texto. Tenho grande apego à memória, à descrição de fatos, épocas – o que chega a atrapalhar. Só fico feliz quando realmente incorporo o que pesquisei (ou que refleti) sem ter que verificar dados e fontes. E aí encontro uma verdadeira voz.
Quer um exemplo?
Em meu conto “Senão eu atiro”, o personagem é um pintor nos anos 1980. Resolvi pesquisar as tintas, na época, importadas da Europa. Encontrei nomes, marcas, tonalidades. E, de fato, quando estava escrevendo o momento em que o Pintor se depara com hematomas no rosto da sua assistente, que havia sido violentada, percebi que o que ele via só poderia ser: violeta do Egito, violeta azulado, violeta ultramarino.
Ou seja, meu personagem não existe fora das palavras. Ele mora no universo que eu criei. Se duvidarmos de suas falas, de seus gestos, de suas ações, e se virmos nas expressões dele a voz de um só – a do narrador — como ser tocado por ele?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes, mas desejando ardentemente o trabalho profissional do editor, do preparador de texto, do revisor. Santa cadeia do livro! Quase em extinção…
Agora, sempre contei com um leitor muito especial dos meus originais: o Leandro Esteves, que além de escritor, é meu companheiro. Ele sempre lê, comenta, corrige. Às vezes me ofendo, reluto, mas depois – na maior parte das vezes, acato a observação.
Gosto quando algum amigo se dispõe a ler meus textos antes da publicação. Mas isso acontece raramente, coisa que compreendo. Pois, de fato, um texto em word não é um livro! É maçante ler esse trabalho. O leitor crítico tem de ser pago.
Conclusão: é de ficar de joelhos quando um amigo aceita ler um texto inacabado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Comecei a escrever à mão, quando criança –até me deparar com uma Olivetti Lettera 32 aos 9 anos. Fiz datilografia e passei a bater meus textos à máquina; A IBM elétrica esférica foi um verdadeiro objeto do desejo no início dos anos 1980. Mas custava caro, nunca tive a minha – usava “no serviço”. Assim, quando surgiu o PC, eu já estava pronta e me senti ao piano…
Porém, ao mesmo tempo em que uso direto o computador, necessito do apoio de cadernos sem pauta, ou quadriculados, encapados e bonitos. E vou adicionando notas, fotos, textos e recortes durante a escrita dos meus livros. Tenho álbuns do “Ordem Sem Lugar Sem Rir Sem Falar” (ficção com memórias da ditadura de 1968-1972); do Tatuagem, Piercing e Outras Mensagens do Corpoe do Livro do Cabelo– estes dois últimos de não-ficção. E um álbum digital do “Convivendo em Grupo” (no Pinterest), livro paradidático que me rendeu um segundo lugar no Jabuti de 2016.
Também dedico espaço nas estantes para os livros que estou lendo relacionados ao tema ou ao livro a ser escrito; enfio montes de coisas (xerox de textos, ilustras, excertos) em “sacolas de pano” para andar com o material ligado ao livro de casa para o trabalho, ou em viagens.
Em resumo: há muito material “concreto” na preparação dos meus livros: blocos de papel, de notação e também locomoção: idas e vindas à biblioteca, viagens, e visitas às exposições de artes plásticas com caderninhos de notas… O contato com as artes plásticas é muito importante para a minha produção. É quando a palavra sai de cena.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tive grande identificação com meu amigo, o poeta Donizete Galvão, quando dizia ser um poeta “pouco imaginativo”, muito preso ao chão. Quase sempre, minhas ideias surgem do observatório da realidade, ou da minha memória – quando desafiada. Principalmente quando me desmentem! E, neste caso, a pesquisa que precede a escrita tem enorme valor para mim.
Na literatura, muito se falou sobre o excesso de escrúpulo de Flaubert com a pesquisa para seus textos. Um exemplo em Educação Sentimentalé a ida de Fréderic à casa da Senhora Arnoux – cujo marido era dono de uma fábrica de louças. Flaubert escreve à sobrinha “Acho me perdido nas fábricas de louças… de regresso à casa, leio tratado sobre faianças. Não fui ao bairro das Tulherias nem ao da Municipalidade; os potes absorvem-me demais.” Escreve ao amigo Boilhet: “Não posso continuar a escrever antes de ter visto uma fábrica de louças.”
É como me senti, muitas vezes, já que concentrei meu trabalho de contista em histórias reais nestes últimos anos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Vivemos um tempo em que é possível ter acesso imediato a livros, músicas, informações, memórias…. E também temos uma possibilidade infinita de observação passiva, seja no restaurante ou numa praça olhando os passantes, seja nas redes sociais. Balzac chamava esse método de “gastronomia dos olhos”. No Brasil, podemos acrescentar a “gastronomia dos ouvidos”, porque falamos ao celular em público e de coisas íntimas. Basta se posicionar num lugar público, como nos aeroportos por exemplo, para ouvir histórias sem ser visto.
Essa Gastronomia (que adoro) também pode resultar em “comilança” – como muito bem expressou o escritor Raduan Nassar. É preciso saber parar e começar a escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou há um bocado de tempo arquitetando o novo livro de contos: “Trecho sujeito a neblina”. Fui parar numa história longa e familiar, do período em que minha avó viveu em Bragança Paulista, de 1904 a 1916 (?) e não consegui sair de lá ainda…. Escrevi esse mote principal, mas não segui adiante.
O impacto que a leitura de autoras negras contemporâneas me provoca, a consciência do aprofundamento do apartheid racial e da violência no Brasil, somados à opressão diária desde o Golpe de 2016, me empurram para um sentimento de absoluta urgência. Sinto falta de uma literatura política.
Sendo assim, o livro que eu queria ter em mãos é o Dicionário de Personagens que levaram o País para o Ralo, com o Supremo, com tudo. De preferência ilustrado, com fotos e o verbete de cada momento pós Golpe de 2016.