Leticia Sodré é poeta, contadora de histórias e pesquisadora em educação.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu vario um tanto, depende da fase. Se é um momento mais caótico, meu tempo é guiado pelos compromissos com as outras pessoas e por aquilo que emerge. Então não tem muita rotina. Mas o que gosto mesmo – e que é mais sustentável pra mim – é acordar com o sol, umas 6, ou até antes; despertar o corpo, fazendo os cinco ritos tibetanos em uns 15 minutos; meditar em 20; comer granola com frutas e uns pozinhos (gengibre e guaraná geralmente); e ir passear com a minha cachorra. Daí eu me sento pra trabalhar no computador.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Parece que cada hora do dia é melhor para um tipo de escrita diferente. Logo que acordo é uma enxurrada de insight! Nem abro os olhos direito, já pego o caderninho ao lado da cama e já psicografo tudo o que brota (rs). Mais à tardinha eu acho bom pra ir azeitando o texto, deixando ele gostoso de ler e de falar. De noite eu curto fazer pesquisas sobre conceitos, fenômenos e imagens que quero abordar no texto, para ir enriquecendo e dando mais veracidade a ele.
Acho que o meu maior ritual é respirar com consciência, atenta ao ar entrando e saindo. Eu também vou atrás de outras coisas que me sintonizem com a energia que eu quero pra escrita. Uma música, um cheiro, uma cor, um gosto, uma imagem. Ou mesmo um elemento da natureza: observar o fogo, mexer na terra, tomar um banho, sentir o vento. E fico me relacionando com isso até sentir que estou vibrando na mesma frequência do texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas é em períodos concentrados (quando eu tenho um prazo de entrega, por exemplo) que eu me dedico a dar corpo, conexão e fluidez ao texto. Não tenho uma meta de escrita diária. Realmente me volto a fazer o que está sendo mais demandado de mim a cada momento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ai, é bem aí que a procrastinação mora, né? Essa é a parte mais difícil, com certeza. Mas eu não sei se colocaria dessa forma: da pesquisa para a escrita. Para mim, parece que o caminho da escrita já começa com escrita mesmo. Primeiro é colocar no papel (ou na tela) aquele relâmpago de ideia e emoção, para que se torne externo a você e, portanto, visível. Acredito que só aí a gente é capaz de se relacionar conscientemente com esse conteúdo, de fato conhecê-lo. (Esse momento é um alívio.)
Daí é questão de deixar o material repousando no tempo, até gerar alguma distância e, então, se poder trabalhar sobre ele tal qual um artesão, como um oleiro sobre a argila. É nessa hora que entra a pesquisa, os cortes e substituições de palavras, mudanças de lugar de versos e estrofes, a busca pelo ritmo e sonoridade do texto. E isso pode se repetir um sem número de vezes, num ciclo de primeiro se ausentar um pouco do texto para depois retomá-lo com outros olhos.
A razão de ser desse exercício, que só termina na hora da entrega, é fazer com que a escrita comunique e tenha a possibilidade de fluir por dentro do leitor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha… a procrastinação é, de longe, a pior inimiga. Toda vez que me noto procrastinando e vejo os prazos se aproximando eu baixo a energia e me sinto decepcionada comigo. Venho tentando migrar esse padrão para uma atitude de maior auto-compaixão e auto-consciência, a fim de encontrar um ritmo e foco equilibrados.
Agora, isso de não corresponder às expectativas não é algo que pegue muito para mim, a não ser que se trate das minhas próprias expectativas. Já sei que as expectativas dos outros sobre nós dizem mais respeito às suas próprias dores e necessidades do que à gente. Não vejo sentido em me orientar pelo que o outro espera de algo que ainda não existe, mas sim de levar em consideração o que ele sente a partir de algo que já exista.
Isso de trabalhar em projetos longos também não é algo que me cause ansiedade. Percebo tanto nos projetos relacionados à poesia quanto no meu doutorado muita conexão com meu propósito, com o modo como eu quero servir no mundo, então a longa duração não me assusta. Pelo contrário, me motiva.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tem um número definido de vezes. Até porque a cada revisão eu acabo me atentando para coisas diferentes: se todo o conteúdo está ajudando a comunicar (ou se tem coisa sobrando ou faltando); se as imagens trazidas estão ao mesmo tempo interessantes e passíveis de serem apreendidas; se o ritmo e a sonoridade da leitura estão se relacionando com o conteúdo… A sensação é a de que sempre dá para melhorar. Então, não fossem os prazos, poderia ser um processo infinito.
E sim! Eu super mostro os trabalhos para as pessoas antes de publicá-los. Acho essencial. Primeiro porque, se é para publicar, tem que pensar no outro, no que os olhos do outro enxergam a partir daquilo, se aquilo o afeta de alguma forma, e como.
Segundo porque outros olhares são outras leituras, que podem expandir a percepção do próprio autor sobre aquele texto, dando a chance dele enxergar o que já não via mais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou super da tecnologia. Praticamente minha vida pertence ao Google (rs): coloco todos os compromissos no Google Agenda, as notas e listas no Google Keep, quaisquer textos no Google Docs e apresentações no Google Slides, fora o Gmail. Maaas, pra depositar aquele feto de ideia, aquele pensamento que veio de assalto, é no caderninho. Gosto de ter um caderno para cada coisa: trabalho, pesquisa acadêmica, cotidiano e poesia / piras poéticas. Esse último eu sempre escolho com muito carinho, porque pra mim é importante que, além da capa inspirar poesia, as folhas tenham uma textura gostosa, que receba bem o grafite; que elas tenham uma cor mais pra amarelada, para dar conforto aos olhos; e que sejam sem pauta, para dar liberdade na exploração do espaço. Eu também dedico uma lapiseira específica para esse caderno (ó só as manias) – já foi azul, agora é dourada – com grafite 0.7 – 4B.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A maior parte das ideias vêm da observação do cotidiano – as coisas pequenas – e das sensações que esses acontecimentos irrelevantes geram em mim.
Muito da minha busca na escrita é pela tradução do meu mundo interno. O modo que encontrei para isso é fazendo comparações entre o que sinto e os fenômenos materiais, observáveis. Pra mim, quanto mais simples esses fenômenos (o fluir de um rio, uma fruta pronta pra cair do pé), melhor. É um instrumento tanto para eu mesma compreender o que se passa dentro quanto para eu conseguir comunicar isso pro outro.
Tem também ideias que vêm de pequenas histórias que vivi ou que amigos me relataram, uma frase pescada no meio de uma conversa, um título de uma matéria, uma fotografia numa exposição. Fragmentos expansíveis.
Não sei se isso chega a ser um hábito, mas quando estou à serviço da poesia, gosto de ir assistir uma aula, uma palestra, de estar no meio de um salão de dança de ideias. Mesmo que eu não esteja acompanhando exatamente o que está sendo dito (ou talvez principalmente em função disso), essa atmosfera me excita a escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, acho que o que mais mudou foi a percepção de que haverá um leitor. Quando me dei conta disso com mais clareza, entendi que, se quero afetar de algum modo as pessoas, eu preciso minimamente levar em consideração como elas irão receber aquele texto. Como eu, se não fosse eu, me sentiria mais atingida por aquela escrita? Daí passei a adicionar camadas de revisão com a intenção de que as palavras e as imagens criadas por elas pudessem entrar melhor pelos poros. Que elas tivessem algo de universal, algo que fosse caro a todo ser humano, e, se não a todo humano, a toda mulher. Acredito que minha escrita é tão menos interessante quanto mais ela disser respeito somente a mim.
Acho que, se eu pudesse voltar, não diria nada a mim mesma. Primeiro porque não há nada que eu seria capaz de entender só de ouvir, sem experienciar. Depois porque todas as cabeçadas que eu dei até agora é que geraram a compreensão que tenho hoje. Não gostaria de perder essas chances de testar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ave, tantos! Corpo e cabeça estão pulsantes de ideias. Como fui contadora de histórias para crianças pequenas por alguns anos e estudei no mestrado o desenvolvimento das leituras de mundo a partir da contação de histórias da tradição oral, eu tenho alguns projetos para o público infantil e de pais/educadores-brincantes. Minha vontade é de fazer publicações multimídia, misturando história escrita, música, narração oral e ilustração.
Eu gostaria de ler um livro cuja história fosse a combinação da história de todos os seres humanos que existem e já existiram. Algo como o que o Joseph Campbell fez a partir do estudo dos mitos de todas as civilizações, no livro “O herói de mil faces”, mas no lugar do herói arquetípico, gente como eu, você, e pessoas completamente diferentes de nós.