Letícia Mei é professora, tradutora e doutoranda em Letras na Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Café puro. Forte. Assim começo meu dia. Vício recente, não muito aconselhável, mas que se tornou uma convenção do início de meu trabalho, mais pelo caráter ritualístico do preparo da bebida, do que propriamente por amor a seu sabor. Sou muito volátil, volúvel, mas obcecada por rotina e organização. Para mim, é muito importante começar bem o dia, ou seja, já ter uma perspectiva (positiva) do que farei ao longo dele. Se meu ritmo matinal é rompido – pelas consequências de uma noite mal dormida, por exemplo -, tenho grande dificuldade para restabelecer o prumo. Fruto de um perfeccionismo que venho tentando matizar nos últimos anos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou de natureza notívaga, se pudesse começaria a trabalhar às 18h e iria madrugada adentro. À hora do crepúsculo parece que o dia se aninha no colo da noite e algo se agita dentro de mim. Fico mais desperta, mais disposta. Porém, como isso atrapalharia muito a rotina da família, acabei me adaptando à “normalidade”. Atualmente procuro concentrar minha produtividade de manhã, quando estou sozinha em casa. Antes de começar, elaboro um cronograma das atividades do dia que envolvem não apenas a escrita, mas traduções, estudo da língua russa, cotejo e preparo de aulas. Com tantas tarefas, inclusive as domésticas, a lista é fundamental para que eu não me perca… e adoro a satisfação de “riscar” no papel cada trabalho concluído.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu deveria escrever diariamente. A escrita e a leitura como exercício podem e devem se sedimentar como um hábito, tornando-se, assim, mais orgânicos e integrados à nossa rotina, mas acho que a escrita não se desenvolve sempre da mesma forma. Como exercício (necessário) ela pode ser mecânica. Às vezes dá-se o encontro feliz do dever e do prazer, quando mãos e dedos, extensão dos pensamentos, sabem por si só o caminho a percorrer. Não tenho meta diária de escrita, já tentei estabelecê-la, mas, ao contrário da leitura, a escrita, arredia e rebelde, não se submete a “quantificações” na minha rotina. Minha relação com ela é de gestação e de parto. Paradoxal, é grilhão e liberdade. Grilhão no período de gestação, quando sinto a angústia do texto que deveria ser parido perfeito. Como se o turbilhão de ideias quisesse se libertar, mas eu não conseguisse conceber de que forma. Talvez mais um entrave do perfeccionismo. Uma cara amiga e mestra, a professora Cristina Pietraroia, aconselha seus alunos da pós-graduação em Letras Francesas a ter sempre por perto um caderno para registrar as inspirações e percalços da vida acadêmica. Desde que adotei a prática, sinto que se suavizou minha relação com a escrita e que redescobri o prazer de escrever à mão, com minha caneta favorita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É doloroso, sim, como um parto. Meus períodos de pesquisa são extensos e ainda sou adepta aos resumos e fichamentos para manter um registro das leituras, o que exige muito tempo. Quando sinto que “apreendi” um bloco temático, passo a escrever no computador. Ele me dá mais mobilidade e fluidez na lapidação das ideias, mas o caderno é o esboço necessário, o alicerce. Antes, quando começava diretamente no editor de texto, o cursor piscando na página em branco me deixava mais ansiosa. Agora, com o caderno servindo de suporte anterior, escrevo com muito menos sofrimento.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação, medo, ansiedade, expectativas. Sentimentos terríveis e que advêm da submissão ao olhar do outro. Se a escrita não está fluindo, como qualquer outra atividade que eu esteja realizando, prefiro interrompê-la. Alterno com outras tarefas profissionais, como a leitura ou a tradução, ou faço uma pausa para descansar a mente, lendo algo de temática diferente do universo do meu trabalho. Adoro astronomia, história, física nuclear, aromatologia e cristalografia, por exemplo. Projetos longos são perigosos, pois criam a ilusão de tempo em excesso. A chave para não se perder é o planejamento prévio e a distinção de ideias claras, pois é fácil se dispersar na abundância de informações. A procrastinação pode ser apenas o seu corpo pedindo uma mudança de atividade. Atenda-o, costuma ser eficiente. Pode ser também o temor de não corresponder à expectativa que projetamos nos outros. A terapia e a meditação têm me ajudado a lidar com o medo e a ansiedade, exercitam a consciência de viver no momento presente e me ajudam a valorizar a dedicação que imprimo no meu trabalho. Eu me preocupo em fazer o melhor possível, me colocar inteira na tarefa, contribuir de algum modo com a produção de conhecimento ou com a divulgação da literatura. Atender às expectativas dos leitores ou não, já é algo fora do meu controle, portanto tento não me concentrar nisso. Medo e ansiedade nos paralisam, alimentam a procrastinação e são muito nocivos, mental e fisicamente. São sentimentos que procuro acolher, questionar e resolver sempre que me assaltam.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu releio até achar que está perfeito, dentro do que posso considerar perfeição em dado momento, ou seja, esgotei tudo o que preparei nas pesquisas e não consigo melhorar mais nada. Depois, tento não reler mais, pois cada releitura para mim é um impulso para a mudança. Há que se ter maturidade, humildade e uma pitada de autoindulgência para saber que, a partir de certo ponto, não estamos mais melhorando um texto. Eu costumo compartilhá-los com pessoas próximas e de confiança quando há tempo e quando o trabalho tem um “peso maior”, como a dissertação, a tese ou um livro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Amor e ódio. O prazer sensual da escrita me vem pelas mãos – uma boa caneta, a promessa da primeira folha de um caderno em branco -, mas sei que não é mais possível me restringir a essa forma. O computador apresenta inúmeras vantagens, sobretudo na etapa final, quando a organização se faz de modo mais ágil. Caderno e computador convivem lado a lado na minha escrivaninha, empregados em etapas distintas: a mão é primordial, é a relação visceral com o processo de concepção e de gestação da palavra. A tecnologia vem como etapa intermediária e final, proporcionando um outro tipo de liberdade, o da reconstrução e organização do texto. Se o papel me faz sentir ilimitada, o Word reproduz o caos e me permite organizá-lo em constelações inteligíveis.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A leitura é minha fonte primária, em seguida, a própria atividade de escrita me ajuda a formular as ideias. Além da literatura variada sempre presente na minha rotina, costumo fazer pausas para pintar aquarelas, desenhar com carvão vegetal ou lápis grafite ou brincar de criar novos padrões de letras com caneta pincel. Tais técnicas, sobretudo a aquarela, me ajudam a compreender o tempo da arte e a imprevisibilidade do resultado. Com a escrita é um pouco assim também: as ideias surgem e se transformam ao longo do processo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Depende de qual escrita estamos falando. Há várias escritas na minha vida: a acadêmica, a criativa (poemas, textos em prosa poética e contos que servem como exercício da tradução poética), diários de leitura, anotações do cotidiano. Elas não extraem de mim os mesmos sentimentos. A escrita acadêmica é a única que envolve sofrimento para mim, que ainda ecoa as tais expectativas do outro que procuro resolver, ou ao menos transformar em aliadas e não carrascas. Ela certamente amadureceu muito ao longo dos anos, hoje tenho uma consciência maior da responsabilidade no emprego das palavras, uma objetividade, um olhar e uma mão mais treinados. Como uma “cientista das letras” tento ser responsável com as minhas ferramentas. Na escrita criativa, obviamente, as leis são outras, o prazer é maior. Então, se eu pudesse dar um conselho retroativo à jovem acadêmica que fui um dia, ele seria: planeje bem seu objeto, identifique seu material, estabeleça a metodologia e, sobretudo, não tenha a pretensão de abarcar tudo. Mesmo assim, mantenha-se aberta: as melhores descobertas fazem-se ao longo do percurso. Por fim, releia com atenção cada termo, evite o uso desnecessário de adjetivos e de advérbios e as palavras pernósticas. Nesse sentido, sigo o preceito da economia na arte, tão caro a meu poeta-companheiro Maiakóvski. Quanto à escrita criativa, sugiro cultivar uma saudável alimentação cultural: ler muito e de tudo, abrir bem os olhos e os ouvidos, não sufocar os pensamentos e ideias desconfortáveis, recobrar o ócio-tédio-melancolia que tanto evitamos. Silencie seu celular, seja comedido nas redes sociais, tudo isso suga nosso tempo e criatividade e, como retorno, pagam apenas com estéril ansiedade. Se você estiver bem alimentado, a escrita será uma necessidade natural.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos na cabeça e na gaveta… Gostaria de criar e/ou participar de um grupo de tradução de poesia russa com meus/minhas colegas talentoso/as, assim como um grupo de discussão de textos teóricos e de redação de artigos acadêmicos. Quem disse que a vida na universidade precisa ser tão solitária e competitiva? Pretendo traduzir mais escritoras mulheres e mais literatura voltada para o público infanto-juvenil, sobretudo para os adolescentes. Ora… quem sabe escrever um livro para os adolescentes? Quero organizar cursos de literatura para o público fora da universidade. Talvez um dia, quando tiver coragem ou ousadia, organizar um livro com meus poemas e prosa poética que, por enquanto, sussurram apenas entre as quatro paredes de madeira da minha gaveta… São tantos projetos! Se me ocorresse a ideia de um livro que ainda não existe, eu mesma o escreveria. Provavelmente seria algo muito contaminado por Maiakóvski e pelas vanguardas, com experiências linguísticas e investimentos sonoros. O desafio seria justamente me descolar de tantas correntes que já fluem em mim. Como ser original? Aliás, o que é ser original? Essa discussão ainda tem sentido hoje em dia? Não sei.