Letícia Borges Nedel é professora no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Primeiro tomo um café preto enquanto leio os e-mails e as notícias, depois levo meu filho na escola, saio para caminhar e só então meu dia começa, ou melhor, começa meu expediente. Quando tenho compromisso logo no início da manhã, caminho à tardinha. Em geral gosto de dispor de algum tempo em casa, que é onde trabalho mais e melhor. Para isso acordo cedo, mesmo dormindo tarde.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral trabalho melhor de manhã e depois do meio da tarde, mas tudo depende do tipo de texto, do prazo etc. Na necessidade se trabalha a qualquer hora e não é incomum parar em altas da madrugada, independente do que se tenha para fazer no dia seguinte. Meu único ritual é um chimarrão antes de começar, se bem que mate eu também faço quando não escrevo, então não sei se configura um ritual propriamente. Afora isso, depois de maturar alguma ideia entro num estado de espírito que se apresenta como uma mistura de angústia e excitação mental. É como um trabalho de parto, um prenúncio da produção. Fecundo mas desagradável.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do tipo de escrita. Pratico estilos diferentes, de natureza acadêmica e não acadêmica. Escrevo um pouco todos os dias, mas nem tudo é aproveitável. Tenho um caderno de notas que não é bem um diário, onde registro desde listas bibliográficas até lista de sentimentos. Enfim, são coisas muito diversas. Traduções, pareceres, relatórios, isso eu faço com algum prazer (no caso das traduções) e certa agilidade; já trabalho autoral de cunho acadêmico, só em períodos concentrados. Sei que tem gente que consegue, mas eu não consigo escrever artigo ou capítulo de livro entre uma e outra atividade. Preciso de tempo e silêncio. Lembro de ter lido algo do tipo “conselhos de Virgínia Woolf para quem pretende ser escritor”. Um deles foi: tenha um quarto só seu.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em geral, parto de alguma fonte de arquivo que me pareça tocar próximo do ponto onde quero chegar. Também à medida que percorro a documentação e a bibliografia vou escrevendo pequenas sínteses sobre determinados aspectos do fenômeno ou do problema, e que depois no decorrer do processo vão se concatenar com outros trechos da análise. O começo é a parte mais difícil, mas a certa altura (e não demora muito), o texto começa a ganhar corpo e daí por diante escrever fica cada vez mais absorvente, a ponto de não querer largar o osso, fico naquela refrega oito, dez, doze horas do dia. Nessa fase uma das coisas que me desgasta é ter que interromper o trabalho para fazer comida, por exemplo. Perde-se aí pelo menos duas horas, porque depois da comida vem a louça, depois da louça uma roupinha para pendurar no varal e assim vai. Também sinto culpa por dar menos atenção ao meu filho nesses períodos de imersão. Procuro compensar nos intervalos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para dizer a verdade, não lido lá essas maravilhas. A escrita acadêmica é a que menos satisfação me traz durante o processo. Para mim é como ginástica, a recompensa vem depois. Projetos longos, especialmente, exigem disciplina, e para dar conta deles o melhor é pensar pequeno e ir fazendo, um pouco de cada vez, à moda “só por hoje”. Isso, como toda receita, nem sempre funciona. Às vezes caio na tentação de priorizar tarefas mais rápidas, urgentes ou que pareçam mais fáceis de acomodar à agenda. Com as expectativas sobre o trabalho não me preocupo muito. Tenho a exata consciência de que sou uma na multidão, além de um senso crítico bem aguçado. Então se eu achar que dá para publicar, é provável que dê mesmo. Se não der, alguém vai me dizer e eu vou refazer; é como funciona. De minha parte, o problema diz menos respeito às travas do que às trevas da escrita, ou seja: às condições objetivas que se tem para escrever hoje em dia. Considerando os prejuízos do produtivismo acadêmico sobre a boa prática da pesquisa e, nesse contexto, a concorrência (desleal para a maioria das mulheres) entre as demandas da profissão (que vão muito além da publicação, sobrevalorizada) e da vida doméstica e familiar, não admira ver tantos docentes e discentes adoecendo. Com a chegada de uma era temerária, o cenário já cinzento ganhou outras 50 tonalidades transilvânicas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Gosto de mostrar, sim. Geralmente recorro aos amigos mais chegados ou ao meu marido, que desde o tempo de graduação sempre foi um interlocutor privilegiado para mim. Hoje ele é engenheiro, lida com aviões, mas tem formação na área de humanas e um jeito completamente diferente do meu de escrever. Outra maneira bacana de compartilhar a escrita é trabalhando em dupla ou em equipe. Também reviso muitas vezes, é uma verdadeira obsessão, da qual tento me livrar porque chega uma hora em que de tanto mexer você arrisca perder o texto original sem ter um substituto à altura.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É direto no computador. Se tiver que escrever à mão, só sai rabisco desencontrado. Mas o computador também traz seus riscos, porque possibilita ir escrevendo sem saber direito onde o texto vai dar. Quando se trata de literatura pode ser muito bom, mas em se tratando de historiografia, é melhor definir bem o que vai dizer antes de começar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Bom, um hábito indispensável à criatividade é a fruição estética, de qualquer natureza, mas no meu caso especialmente pela via da palavra impressa. Leio muita poesia, desde muito tempo. Uso para viver; guardo várias na cabeça, algumas minhas, que faço para me entender ou para presentear as pessoas que amo. Tenho verdadeiro fascínio pelos fac-símiles de manuscritos literários, amo biografias e textos brutos, como diários, correspondências, narrativas de viagem. No mais, a música, o cotidiano, coisas legais que a gente ouve dos outros, assiste no cinema, na web, as aulas, enfim, acho que tudo nos inspira a pensar, observar… gosto de aprender por experiência alheia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Sou de uma geração que já escrevia antes de existir computador e, de fato, o advento dele e da internet transformou radicalmente o processo. Antes, lia, fichava e depois escrevia de uma só penada, ou quase. Agora vou fazendo tudo junto; trabalho com mil janelas abertas, tenho muito mais opções, muito mais acesso à informação. Isso tende à dispersão, tanto da atenção quanto do texto. Sem falar da minha mania de copidesque, que também é cria do computador. Me parece que no tempo em que o texto era literalmente manuscrito ele se estruturava diferente e mais estável, crescia de forma linear, para baixo, e agora vai inchando, numa dinâmica mais fragmentária de construção que dificulta manter intacta a ideia original. Se pudesse falar comigo ao tempo da minha tese, diria: “menos, Letícia! Menos… é só uma tese, não vá sucumbir logo no início da trajetória autoral”. Isso eu diria, mas não é que eu fosse me dar ouvidos. Como não sucumbi, não me arrependo. Fiz a tese que queria fazer, e que naquele momento me parecia faltar à historiografia. Dizer que hoje eu faria diferente é um pouco de anacronismo, mas como orientadora procuro passar adiante esse aprendizado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Engraçado, nunca pensei dessa forma. Para ser sincera, não concebo um desejo meu de leitura impossível de ser satisfeito. Vou mais na linha do Karl Kraus, que se perguntava como arranjava tempo para não ler tanta coisa. Entre os projetos não começados, um trabalho que eu teria gostado de fazer é sobre a categoria profissional dos chefes-de-gabinete. No momento, tenho dois projetos – um de curto, outro de longo prazo. O de longo prazo talvez nunca veja a luz do dia. É um livro que até já tem nome, existe em estado cru, com textos não acadêmicos que me surpreendeu fazer e que me proporcionaram uma experiência totalmente nova e visceral com a escrita. (Para quem tiver curiosidade, tem um deles disponível em vídeo) O outro projeto, mais imediato, é um artigo a quatro mãos sobre a relação que duas amigas improváveis – Alzira Vargas do Amaral Peixoto e Clarice Lispector – mantiveram entre si, com a escrita e com seus respectivos arquivos.