Leonardo MAthias, às vezes Ora mutt, é escritor e designer gráfico.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O exercício proposto por um antigo mestre iogue tem me absorvido ao iniciar de meus últimos dias. A sugestão é tentar perceber o momento em que a consciência emerge e nos conta toda essa história. Tem sido divertido e instigante ao passo que reflete uma perseguição sem esforço, localizada dentro da névoa do sono qual o estado da vigília nos presenteia, quase como um aprendizado passivo sobre fluixos possíveis.
Assim que retomo o fio da narrativa corrente tento, por alguns minutos, ficar em silêncio total, numa quietude que vai além do não falar e não agir, inclue o silêncio mental, que é árduo de se alcançar mas quando acontece verte a mente num receptáculo atento para tudo o que transcorre a seguir.
Com a escrita não é diferente, para mim ela resulta de movimentos anteriores ao verbo e tem sua origem precedente à nossa consciência idividual. Como uma cerda ínfima, em formato espriral, que vibra e nos sobrevoa lá de longe, atravessando correntes e pairando suavemente, até pousar sobre nossos ombros. Se atentos, a seguramos carinhosamente entre o polegar e o indicador e a alisamos algumas vezes até que adquirira um formato agradável ou, ao menos, o melhor que podemos lhe dar.
Dentro das rotinas que me compete cumprir, entre compromissos profissionais, sociais e afazeres domésticos, tento deslizar minhas manhãs dando espaço ao inesperado. Hábitos mantidos são apenas os alimentares, embora ler um pouco ao final da manhã, sempre que possível, me ajuda a relaxar.
Creio que minha escrita tem residido no silêncio, restando apenas um momento final de conformação de idéias e execução.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Anteriormente, rotinas de escrita me trouxeram grandes ganhos. A repetição me fez conhecer lugares de recorrente interesse pessoal bem como ajudaram a desconstruir alguns outros.
Atualmente tenho preferido o frescor do espontâneo, tento maturar idéias ao máximo até chegar com algo já coeso na frente do computador, para apenas limpar as aparas em algumas rodadas espaçadas de trabalho.
Para o momento do suor, há um ritual heurístico onde consulto muitas fontes e procuro ramificações e subramificações das informações relacionadas até saturar a mente, para depois entrar no silêncio produtivo.
Nesse momento que precede a produção, o mais inquieto, de pesquisa, procuro me cercar do máximo de conforto físico como bebidas quentes, música gostosa e pausas para pequenas distrações.
Uso também o sistema comum de fazer notações quando sinto vontade mas por vezes não tomo as notas propositalmente por crer que se aquele pensamento tem potência latente perdurará por si, o que de fato tem se confirmado.
No entento acredito na “hora de poder” que aprendi a reconhecer lendo textos de origem xamânica. Diziam alguns povos nativos americanos que todos têm um momento favorável no curso dia e que, de acordo com os acontecimentos mais impactantes em nossas vidas, isso pode sofrer mutações. O pôr do sol e o início da madrugada me impulsionam criativamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No momento atual não cultuo qualquer tipo de padrão de escrita relacionado ao tempo comum, humano. Mas creio que o tempo se manifeste de diferentes formas e que, assim, de alguma maneira espontânea, eu me enquadre em padrões de comportamento de escrita ainda não percebidos por mim. Gosto, dentro das minhas limitações, de acreditar que são aleatórios. Isso aguça meus sensores.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita reside na tentativa de quebra dos padrões executados anteriormente, acredito que procurando traçar novos caminhos, com sorte, esbarre em mundos ou modos inusitados de conhecimento que, mesmo quando não resultam em algo consistente, tornam-se frutíferos pela própria tentativa e aprendizagem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Minha maior libertação foi parar de visar resultados ambiciosos. Nas minhas experiências esse fator só me travou, gerou cobranças e descontentamento.
Entendo o trabalho de escrita, ou qualquer empreendimento artístico, como uma extensão minha que abarca minhas potências e limitações, como um espelho estranho.
Vibro ao perceber desvios nas realizações e, se o caso é acreditar na idéía mas não gostar da realização engaveto, o fluxo dos acontecimentos me dizer o que será.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O trabalho de lapidação, a não ser quando há prazo, acontece na medida em que releio o livro integralmente e percebo um fluxo de leitura gostoso.
Jackson Pollock, ao ser perguntado por uma jornalista como sabia haver terminado uma obra abstrata respondeu dizendo que da mesma maneira que se sabe quando uma relação sexual chegou ao fim.
Acho que é por aí se no prisma do artista realizador mas sempre tento me posicionar como leitor e perceber se há pontas soltas ou se o trabalho está minimamente coeso. Isso é sempre uma ponderação pautada no leitor imáginário, aquele que existe e não existe, ao mesmo tempo. Tento fazer dessa ponderação uma autocrítica prazerosa, quase que como o exercício de sair do corpo, habitar outras perspectivas imaginadas, o que é, prara mim, um dos grandes fascínios de realizar ou assistir a qualquer expressão artística.
Para, de fato, ter uma resposta de fora com a qual trabalhar, seleciono pessoas para enviar o que produzi. Geralmente gosto de selecionar grupos de pessoas que aprecio pessoalmente mas que divirjam bastante em seus prismas críticos habituais, pra “testar o texto”, expressão que adoro!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de todas as mídias: anoto em papéis aleatórios, uso blocos e cadernos, uso o bloco de notas do celular, ou computador. Tudo é válido quando explodem pontos luminosos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas idéias vem de encontros interessantes entre elementos ocultos e desvelados. É uma procura passiva ou uma espera atenta. Meu segredo para namorar a criatividade é igual ao da busca para ser uma pessoa melhor: tentar manter-me aberto, me desconstruir, desopilar vias, me despersonalizar, desatar nós, soltar a mão, aprender a desaprender, tentar conhecer melhor as coisas…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou fui eu, assim mudou tudo, bem aos poucos, e ainda é o mesmo também.
Só a vivência desses processos trazem a mutação da escrita, por isso sinto esse prazer do caminho bem traçado, sensação de estar no lugar que devia, com todas as inconsistências que são importantes para o aprendizado.
Se eu voltasse acho que calaria, pois tudo o que aprendi a evitar só aprendi porque fiz.
Das coisas que olho pra trás e acho sofríveis, aprendi a dar risada e ainda aprendo no que diz respeito a diminuir meu senso autoimportância egóica a cada dia. Confio que sou o que fui e também o que serei então tá tudo em casa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de ler o que ainda não li, que é tudo.
Existe um projeto engavetado ha tempos que ainda está em meu radar, deixo aqui o argumento:
“O autor escreve um livro.
Neste livro a protagonista tenta construir um personagem. Ao perceber sua incapacidade de realizar de forma cabível essa tarefa apenas por elaboração racional a protagonista decide construir corporeamente esse personagem por meio de vivencias, rituais, etc, estranhos a ela até então. Desconstruindo assim seu próprio corpo, afinal um de seus problemas era mesmo obter um ponto de partida.
Então, com um caderno de notas para registrar o processo, ela executa esses “novos costumes”, colhidos a partir de observações das outras pessoas. Costumes quais não deixam de ser sugestões do autor do livro para execução pelo leitor final.
A protagonista também vai tomando nota das reações e resultados gerados por suas novas posturas, durante um período de tempo determinado para o experimento. Esse período de tempo passa a ser o começo, o meio e o fim do livro.
Para não controlar demais e “perder mão” do fluxo natural do processo, o autor decide que esse período será vivido em tempo real por ele, e que também executará os rituais propostos para vivenciar o enredo de seu livro, assim podendo ficcionalizá-lo com informações coerentes ao seu leitor final.
O leitor final, em sua leitura, também vivenciará, mais ou menos intensamente, essa experiência e, quem sabe, até escreverá notas nos cantos das páginas sobre suas próprias experiências e os reflexos delas.
No momento em que o autor inicia o registro da história, percebe que um texto linear não é o bastante e que, assim como a protagonista desconstruiu seu corpo para gerar um trabalho razoável de composição de personagem, ele deve desconstruir o corpo do livro tradicional, para que produza um livro mais adequado a sua proposta.
O autor escreve um livro.
A personagem vivencia a construção de um personagem. O leitor vivencia a construção de um personagem. O autor vivencia a construção de um personagem.
Uma vez o ciclo completo, quem seria o autor? quem seria o personagem e quem o leitor? Quem seria o livro?”