Leonardo Marona é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Infelizmente sim, e não é nada literária. Pelo menos não no primordial, que é a criação literária. Eu acordo, fico um tempo em silêncio, olhando um quadro do Chagall que eu tenho, muito velho, estragado e bonito, com um homem flutuando ao lado da Torre Eiffel, outro homem azul com duas caras e um gato com rosto de homem, então me levanto pensando sempre em como é um enigma esse quadro, acendo um cigarro (maldito vício, mas tão prazeroso!) e me dirijo ao banheiro. No vaso, geralmente leio um pouco e fumo (no último mês e meio tenho lido O Idiota – deixo geralmente os longos romances para o vaso), depois faço a evocação da serenidade, o que é muito importante hoje em dia, geralmente tenho uma rápida conversa mental com o melhor de mim mesmo, ou o que eu espero ser, daí limpo o cocô dos gatos (Bandini e Juno) e, se não estamos numa fase muito romântica, ou se Rita (Isadora Pessoa), minha parceira, estiver muito ocupada – e ela tem estado com seus mapas astrais e jogos de tarô e finalizando a tese de doutoramento e finalizando livros –, sento um pouco ao computador, depois de comer mamão e banana semi-congelados com mel e granola (isso também é importantíssimo hoje!), então escrevo um poema, nos dias bons, ou fico lendo coisas que acho na internet, coisas dos amigos escritores, da vida deles também, porque, nos bons momentos (digo sempre isso porque há os terríveis momentos onde não há regularidade alguma que não seja ser terrível), a vida dos que eu amo me inspira também a viver, de forma criativa, geralmente até mais do que literatura oficial.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Bem, como eu ganho a vida, por assim dizer, como livreiro e trabalho no duro, oito horas quase em pé, subindo e descendo escadas e arrumando a livraria quase o tempo todo, de segunda à sexta, fim de semana sim, fim de semana não, então eu poderia dizer que a escrita para mim é um descanso, mesmo quando é difícil ou quando é doentia, porque estar dentro da minha própria doença ainda é mais confortável que uma coisa imposta de fora, para cuja existência eu sou apenas um detalhe, um pedaço de engrenagem. Escrever para mim é uma alegria apenas comparável aos melhores encontros (amorosos, fraternos). Durante dez anos praticamente foi uma espécie de porre constante, inclusive eu escrevi muitos anos bêbado, depois corrigia semi-alcoolizado, hoje escrevo fumando mais do que devia, mas parei de beber durante o “ritual”, apesar do que também tenho escrito muito pouco ultimamente porque estou fechando um livro de poemas para o fim do ano, e “trabalhar” um livro, usando a palavra que você usou na pergunta, é para mim um sacrilégio e uma ofensa aos deuses da escrita, os deuses que reconhecem a verdadeira entrega e o esforço raro que é escrever, mas é absolutamente necessário, do ponto de vista humano, ir até o detalhe do sentimento que, pela cabeça, formou o poema. Sou mais feliz, adoto um ritual mais firme – sempre pelas manhãs, o mais cedo possível – quando estou escrevendo prosa. A prosa me deixa com hora marcada. Faço também mais exercício físico. É parte do ritual da prosa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não acredito em qualquer formatação de esforço nessa área. É algo tão complicado de se fazer que, fazer demais, em hora marcada, toda uma certa hora, pela maneira como eu sou, como se orienta minha inteligência emocional, seria um absoluto desastre, porque eu preciso ser completamente honesto nesse momento, e para isso eu preciso estar relaxado, sentir-me livre, para deixar que a coisa venha como uma espécie de alívio. Não acredito na escrita ansiosa. Mesmo os grandes mestres, dos grandes romances antigos, é bem fácil imaginá-los com as mãos cruzadas atrás das costas andando cadenciadamente de um lado ao outro do gabinete, com o cenho carregado, mas de olhos fechados, recitando sua obra para alguém passar a limpo no papel. Minha escrita, quando sai boa, vem em jorro. Não dá tempo de maquinar nada. Daí, se a coisa engrena, é preciso imaginar coisas. Então, no caso de uma prosa longa, um romance, uma novela, eu defino escrita em blocos, todos os dias, e numero esses blocos, depois subdivido em mais blocos, com novas ligações e assim vou amalgamando uma estrutura. Geralmente composta em árias, como nas sinfonias. Aliás, sempre escrevi ouvindo música. Música clássica me ajuda muito a escrever. Mahler, sobretudo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que respondi um pouco acima. Mas em poesia é uma coisa, na prosa é totalmente diferente. Fora que, no momento, mesmo na poesia (que é o livro que estou terminando) aconteceu tudo diferente do que foi até aqui, como se fosse uma outra primeira vez. Porque escrevi esse livro novo (Uma baronesa, às quatro da madrugada – Editora Urutau) totalmente sóbrio, então o processo foi outro, e o livro todo gira em torno de um centro comum a todos os 21 poemas. Mas geralmente a ideia do livro vem de um ano de escrita constante, mas meio errática, até que eu me dou conta do tema que me moveu em alguns dos poemas que eu reconheço. E, geralmente, achar o tema me leva a escrever mais em torno dele e me faz resgatar, muitas vezes, coisas antigas perdidas e sem tema até então, que se encaixam. Gosto de pensar que, apesar de todo esforço envolvido, haja algo de mágico envolvido. Na prosa é como eu disse acima. Eu tenho uma ideia, penso numa cena, como num filme. Como nessa notícia sensacional que eu li na internet, de uma mulher que invadia a casa das pessoas para lavar a louça e limpar os cômodos e acabou presa. E eu sei que isso começa alguma coisa. Não sei se é um conto, uma novela, um romance. Quando é um conto dá um tremendo cagaço. É a forma mais difícil. Daí você tem que girar o tema e enfiar uma faca na virada do tema. É como uma tourada, que tem sempre sua dose de náusea. Um romance é um longo respiro, ele engloba a sua vida e se torna parte do seu cotidiano. Daí eu fico o dia todo vendo cenas e pensando nos personagens e inventando personagens no meio do trabalho. Anoto hoje em dia, aliás, mais prosa que poesia nos caderninhos de bolso e nos papéis soltos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu acho que lido muito pior que, digamos, os meus pares, os escritores com quem convivo. Vejo todo mundo muito atento e preocupado até, trabalhando com esmero suas obras, fico até muito orgulhoso de alguns desses trabalhos tão minuciosos de tantos escritores queridos, mas em mim causa um pavor, pânico. Veja bem, o desespero é concreto. Comecei a publicar relativamente tarde para os padrões de hoje. Aos 27 anos publiquei meu primeiro livro, um livro de poemas. Lembro que, nessa época, como muitos com essa idade, eu pensava que devia estar morrendo, e de fato meio que estava, casado com uma atriz 25 anos mais velha e tentando ser um redator na edição de esportes de um jornal popular, morrendo a largas braçadas, como se diz. Isso foi em 2009. E, de lá pra cá, o que eu não tentei fazer senão esgotar todas as formas que tive coragem de experimentar, de forma, hoje penso, às vezes até atabalhoada, pelo único motivo de que aquilo poderia acabar a qualquer momento, sumir, parar de funcionar, como acontece seguidamente, às vezes por longos períodos, alguns meses vazios, mas quando a cisterna ficava cheia e precisava escoar, eu creio que soube permitir, através dos anos, talvez com uma assiduidade mentecapta, dar vazão ao jorro. Mas isso não foi por mérito, método ou por profissionalismo, de forma alguma. Com este que vem, escrevi oito livros em nove anos. Cinco de poesia, um de contos, um romance e uma novela. Meus camaradas escritores acham que sou rápido demais. Mas não me orgulho. Eu vejo como pode ter mais méritos, muitas vezes, um trabalho lento e bem acabado. Vejo meus amigos trabalhando. Fazendo e refazendo. Sou mais ansioso que a maioria deles. Sempre pensando, ou tentando deixar ideias pintarem, muitas vezes com a habilidade de um símio. E por saber quem sou, por puro medo que aquilo acabe um dia, eu acelerei a máquina o quanto pude. Talvez esteja cansado, ou mesmo esgotado, aos 36, e nem saiba disso ainda. Talvez os 36 não tenham tempo de saber o que eu saberei se sobreviver aos 60. Ainda tenho muito medo. Sinto que agora as coisas vão seguir outro ritmo e me assusto. Terei boa vontade de me adaptar às novidades? Queria muito que pudesse continuar a escrever e publicar até o fim dos meus dias. Para mim isso seria uma vida valorosa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu costumo reler muitas vezes, vezes sem conta. Corrijo muito o português, deixo o mais limpo possível. Com prosa dá mais trabalho, tudo dá mais trabalho, mas tem mais de mecânico, de exercício físico, acordar, sentar, escrever, acumular, jogar fora, reescrever, então eu releio vinte vezes, por aí. A poesia, ela vem em geral de forma mais orgânica, às vezes até como prosa, e que depois pode voltar ao verso livre, virar um soneto métrico, gosto desse mistério inaugural. De todo modo, vendo os livros hoje, sempre acho erros etc… Mostro sempre aos amigos escritores mais chegados, umas três pessoas, agora mostro também pra Rita e, desde que fiz um livro com eles, mostro pra Juliana Travassos, editora da Garupa, que faz um lindo trabalho independente aqui no Rio. Mas, em todas as editoras com que publiquei, sempre tive bons revisores, pessoas atentas e sensíveis aos detalhes que, às vezes, me escapam completamente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Estou escrevendo para você de um Word versão 1997. Isso já diz tudo. Comecei de forma bastante romântica, enchendo caderninhos, tenho dezenas deles guardados, com longos contos, principalmente, alguma poesia, anotações sobre filmes, sonhos, nomes de quadros ou nomes de livros, pessoas bonitas, citações de livros, descrições físicas de pessoas que eu via nos ônibus etc… Depois eu passava, desde o começo, tudo para o computador e normalmente ficava muito diferente do que vinha nas anotações iniciais. Mas tudo o que eu precisava era um Word. Desde lá, quando comecei, na época da faculdade, portanto início dos anos 2000, a escrever contos sobretudo, depois poemas, eu uso o mesmo Word. O novo eu acho muito complicado. Esse é melhor, você não acha? Minha namorada diz que eu preciso me atualizar. Meu celular também está velho. Ela diz que é algo estranho para um aquariano como eu. De todo modo a velocidade do mundo passou do ponto da utilidade e se tornou um pouco constrangedora. No mundo em que vivemos, nada é mais elegante do que alguém que faz as coisas devagar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Para ser totalmente honesto com você eu passei minha vida, digamos, adulta, até dois anos atrás, fazendo tudo que eu fazia consumindo muita droga, sobretudo álcool. Isso começou muito cedo como um estimulante da percepção e logo, sem que eu percebesse muito bem, se tornou um dissolvente da mesma energia vital. Mas por muito tempo foi um hábito extremamente ligado à criação literária para mim. Agora estou sóbrio há quase onze meses. Não chega a ser um ano, mas é um recorde absoluto. Escrevi meu último livro sóbrio, como eu disse, mas ainda muito doído do esforço em parar. A tendência é que, com o tempo e com novos hábitos, eu tenha também um outro jeito de pensar e me relacionar com isso. Acho que as coisas ficarão menos aceleradas. Mais elegantes. (risos) Torço para que seja possível criar algo digno diante de alguma paz de espírito. Exercício físico, no meu caso corridas regulares de oito km (três vezes por semana, pelo menos) me ajudam muito a organizar as ideias. Correr me faz pensar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que eu segui uma trajetória que eu mesmo posso enxergar como coerente, vindo da estrutura familiar e afetiva de onde eu vim. Minha escrita sempre foi um pedaço de mim, o “eu” escritor era uma espécie de irmão mais velho do “eu” filho de um pai ausente e órfão de mãe. Eu nunca soube fazer rodeios filosóficos (apesar de tê-los feito muitas vezes sem querer) ou passeios estéticos enquanto escrevia. Eu escrevia para sobreviver aos meus traumas e transformá-los numa realidade palpável, organizada por mim. Ainda estou tentando achar um modo de dominar um pouco essa realidade. A escrita foi até aqui, nesses últimos dez anos, tudo em minha vida. Todo o meu afeto e todos os encontros humanos que tive foram, de um modo ou de outro, permeados pela literatura. Isso foi até aqui, eu precisei passar por tudo isso. Por toda ansiedade, toda dor de cabeça, toda impossibilidade, as baixas espirituais, tantas vezes prestes a me entregar, a desistir, a jogar para o alto, a me matar, tudo sempre por um fio. Então foram anos alucinados de muita vivência e criação. Mas me sinto muito cansado, enrouquecido e um pouco gasto de tudo isso. Ter parado de beber, ter feito essa segunda escolha na minha vida (a primeira foi escrever), vem para inaugurar um novo ciclo na minha vida, inclusive como escritor. Ou quem sabe isso também não pode terminar assim? Sinceramente não sei. Tenho tentado ser otimista. Mas me pego toda hora pensando que outra coisa eu poderia fazer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu sonho era ter uma banda. Onde pudesse escrever as letras e dizê-las num palco num formato de música. Onde tivesse parceiros da vida toda e uma casa para ensaiarmos e passarmos tempo juntos. Parece engraçado, talvez, ridículo, eu penso, afinal, já tenho 36 anos, não sei se posso chamar isso de projeto, aliás, eu montei com amigos uma banda no inverno de 2016, a Dibuk Motel (uma banda, como dizer, judaico-punk), mas ela durou dois discos (mando o link no bandcamp para provar que é verdade!), algumas apresentações, depois o Luke, guitarrista, teve um filho com a Paula, o Valentim, daí foi engolido pelas fraldas e novidades diárias muito mais impactantes que uma banda, além do que a Jhou, nossa baixista sensacional, passou a tocar em duas outras bandas com assiduidade (Lovejoy e Blastfemme) e isso facilitou, é claro, nosso afastamento, no sentido de grupo reunido pela música, o Alex saiu logo no primeiro ano, acho que não gostou do som que terminamos fazendo juntos, e sobramos Cassiano e eu, ainda com esse sonho de fazer músicas juntos (temos tentado, lentamente, outro dia mandamos uma versão pro Luís Capucho – esse gênio – trabalhar em cima, vamos ver se ele consegue tirar leite de pedra), temos bolado planos feito dois adolescentes, modelo de banda, guitarra-violoncelo-voz, baixo-maracas-sintetizador, ficamos viajando quando nos vemos (e nos vemos assiduamente ainda) e sendo duas crianças felizes nessas horas. Lembrei outro sonho! Dois sonhos então. Uma banda e ser ator. Minha grande frustração na vida é não ter tido coragem de estudar teatro, mergulhar mesmo, conhecer meu corpo, as técnicas vocais, as peças clássicas, os Grandes Gregos, Ibsen, Shakespeare etc… Tenho tantos amigos atores e, quando minto ou invento uma história, sempre me dizem que eu daria um bom ator, então eu fico pensando… E o mais próximo que cheguei do palco foi numa tradução de Otelo que eu fiz pro Diogo Vilela encenar em 2008. Será se dá tempo? Não responda. Quanto às coisas mais palpáveis, tenho dois livros na cabeça. O primeiro eu nunca vi igual e seria uma mesma pessoa que sonha. E um sonho vai emendando no outro por dentro de um caldo de detalhes que vão os aproximando. Ela pode ser muitas pessoas, aliás, está primeira pessoa, porque nos sonhos tudo é possível. Uma página, uma página e meia de Word com sonhos que entram um no outro, situações às vezes banais, às vezes incríveis, às vezes apenas estranhas, mas que no final constituíssem um todo homogêneo. Tenho quatro sonhos emendados por enquanto. E, obviamente, não sou Borges, então isso pode ser tornar algo um tanto pretensioso para se jogar fora. E, mais pretensioso ainda (e para isso talvez eu leve décadas), quero escrever um romance geracional, ou seja, um romance que tenha a minha geração, de poetas, agitadores, malucos de todo tipo no centro da cena, como um Detetives Selvagens tupiniquim. Ainda não sei o quão longe devo ir para isso. Mas uma coisa é certa. Existem personagens em abundância. É preciso coragem apenas.