Leonardo Chioda é escritor, autor de Tempestardes (Patuá, 2013) e POTNIΛ (Selo Demônio Negro, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tudo começa com um bom café. O fato de acordar para um jardim é um privilégio. E é vendo o dia nascendo aos poucos que o meu dia começa a se organizar. Geralmente a minha rotina se mantém entre a meditação, a academia e o trabalho. Meu escritório é meu computador, então vários pontos da casa acabam sendo propícios para responder e-mails, preparar textos, escrever e ler poemas. Sou leitor o tempo todo. Vale também alguma música leve, porque pela manhã o mundo parece em ordem, novo em folha. Debussy é um favorito nessas horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há um período específico em que trabalho melhor senão qualquer período em que me fecho no silêncio das pessoas e me abro ao ruído possível: se fico com os pássaros e com o barulho das árvores, já ajuda. O pleno silêncio, quebrado apenas pelo miado ou pelo banho dos meus gatos, é auspicioso. A escrita vem, mesmo havendo prazos e transpirações. E com isso não exalto qualquer ideia de inspiração – que existe e se curva aos mais despertos e indignados –, mas a escrita vem. Assim como ela é uma necessidade para mim e para todos que de fato escrevem, a escrita pede o escritor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias – poemas, textos, artigos ou ensaios. É sempre longo o caminho. Trabalho com símbolos, literalmente: as pesquisas sobre iconografia e esoterismo também tomam bastante do meu tempo. A poesia, que é o ouro da escrita, é uma subida mais escarpada do trajeto. Não obedece a qualquer meta. Nem eu acredito em metas, embora respeite quem as tenha.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
São vários blocos de notas. Ostento uma quantidade estranha de cadernos que julgo pela capa. Mal os preencho, mas tento usá-los bem. Mas um texto em arquivo Word, por exemplo, é um castelo em potencial. De tijolo em tijolo se reina. E quando se fala na escrita, sempre é difícil. Tem de ser difícil. Não sentido de complicado, como se quem escrevesse fossem os poucos e bons. Mas é um ofício. Arrisco dizer que é uma missão. E toda missão se empenha em colocar à frente os fantasmas, as delícias, e as desgraças.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se eu pudesse falar de forma um tanto cifrada, como fazem os verdadeiros místicos, talvez diria que travas não existem. A escrita é fluxo, é puro movimento. Não conhece bloqueios nem os impõe a quem escreve. O que existe é o silêncio necessário para que as palavras certas se combinem. Daí a ourivesaria, o magno trabalho de trabalhar a palavra como quem toma os minérios. Tudo o que sei é que não sou um poeta escrevendo sobre a cena de um minuto vivida em uma padaria. Mas o guardanapo do bar, em meio à cerveja, pode desencadear um longo poema sobre a imensidão íntima e negra dos caranguejos. É um exemplo.
Lapidar é preciso. E a procrastinação, como sempre, é só a condição para que – ainda comungando com os místicos – a escrita amadureça na medida em que é viva por dentro. Na medida em que acende o poeta. E como pesquisador acadêmico, o medo é necessário. O medo é que movimenta as teclas e a caneta preta pelo papel. Sem medo não se escreve. Mas quando se escreve, a vida é sem medo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A maior crueldade que um escritor pode cometer é o da revisão incessante de sua obra. É cruel porque a perfeição tende a ser perseguida, então nada vai parecer suficiente ao que se passa para a página branca. O papel não perdoa. E é por isso que o tempo de maturação de um poema, de um ensaio ou de um artigo deve ser respeitado sempre que possível. E atentamente. Um poema chega a me corroer por dois dias inteiros a ponto de conversar com mais de dois amigos do ramo [amigos que escrevem – mas não necessariamente do meio] ou amigos que não escrevem mas vivem e sangram, porque são esses os que me interessam. Só os amigos implacáveis é que podem adentrar um texto ainda cru, porque são eles os melhores críticos. Os implacáveis, os que não se agradam facilmente. Publicar é o último passo, se é que ou quando necessário. Tudo o que se pretende descolar do escritor e ganhar o mundo deve receber o maior dos cuidados. Um livro tido como pronto para ser impresso é como um parto de risco: deve ser devidamente assistido ou então desistido. Publicar é o ultimato.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo à mão para não me esquecer de que se começa escrevendo assim. De que a vida é cursiva, é curva, é falha e garrancho e risco. Deve ser um exercício constante para não se perder a própria letra. A letra aberta é a raiz da própria escrita. Enquanto eu crescia acompanhei a evolução dos computadores e o desaparecimento das máquinas de escrever. Mas os cadernos, ah, sempre os cadernos. A paixão pelo papel é genuína. São rascunhos em agendas, folhas mal impressas, pequenas agendas. Mas o computador ganha.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm do que vejo, sinto e leio. Há esses hábitos de ver através das palavras e trabalhar em cima das imagens. Trabalhar com imagens. Poderia ser essa a descrição de um poeta. Embora pareça fácil, essas ideias são como pedras que precisam de técnica e paciência para serem lapidadas. As ideias talvez venham de uma fonte que brota por debaixo das coisas e das pessoas. São sempre ideias profundas e por vezes profusas – o sangue, a água, as emoções, as lembranças, os desejos. São poucas as referências que definem as minhas linhas. Não me espelho nos grandes, ainda que os leia e os admire. Sou simples, no fundo. E aceito a condição de descobrir meu próprio ouro. Está aí a minha criatividade. Uma ideia, por isso, pode vir de uma conversa, de um tema insistente ou do silêncio. E quando vem, ela deve ser posta à prova: ela tem coração? Caso tenha, a essa ideia asseguro o direito de maturação, o processo necessário para vir a ser o que deve ser: pedaço de aço de algum valor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevo desde pequeno. Sempre foi um dos prazeres, senão o maior, com o disfarce de trabalho elegido por quem não se deixa levar por tristezas nem por alegrias. Escrever tem mudado como mudam as expectativas. Cada vez mais secas, menores. Mas incumbidas de beleza, da busca pelo que há de grandioso no mais ínfimo. Bem por isso, portanto, encarar a palavra como o artesão encara a matéria bruta que o mundo coloca. Mas como todo artesão que se esmera em devolver ao mundo algo relevante de sua passagem, diria a mim mesmo que tivesse a devida paciência desde o início. A pressa intimida o poema. A tese, como qualquer instância acadêmica, também merece o milagre da atenção. E diria mais: em vez de publicar, ler mais. Ler mais em voz alta. Assim como se fosse a descoberta da própria língua. Diria ainda: resista à tentação de querer reescrever cada livro e cada texto. Vale saber que não se nada duas vezes no mesmo rio. Não impunemente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Os projetos que ainda não comecei podem vir no tempo certo. É o acordo possível com a existência: deixar que as coisas certas apareçam no momento errado. Este é um tempo político e os poemas devem, até certo ponto de profundidade, serem políticos também. Ainda não comecei o meu romance, mas já estão a vir as personagens.
Dentre os tantos livros que gostaria de ler e que não existe talvez esteja o de Veneza, a cidade que escolhi para escrever e morrer, narrando sua história em primeira pessoa: cada rio e cada beco detalhando suas histórias de mistério, amor e sangue. Talvez ele exista, e só não apareça devido ao tempo que o coloca atrás de outros projetos.