Leonardo Boff (1938) é teólogo, filósofo e escritor, residindo em Petrópolis (RJ).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia ainda sentado na cama com uma pequena meditação como quem abre a cabeça para a iluminação da Luz transcendente, como escrevi no meu livro Meditação da Luz. Coisa de uns três minutos. Depois olho o jornal do dia e leio as principais notícias. Enquanto minha companheira não acorda, pelas 8 horas, eu vejo os e-mails que entraram. Depois tomo café. Logo após, quando estou em casa, trabalho algum tema no computador, até ao meio-dia. Costumo fazer uma sesta de uns 20-30 minutos. Em seguida volto ao computador. Pelas 16 horas tomo um café com algumas bolachas. E volto ao trabalho até o noticiário nacional. Depois disso retomo o trabalho ao computador e vou até à meia-noite ou uma da madrugada. Como escrevo bastante, artigos e livros, sempre estou atrasado. Daí o tempo prolongado ao computador.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu posso trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite. Não tenho uma hora especial. A fase melhor da produção é a pesquisa sobre o tema. Pois aí se aprende muita coisa para além do tema que estou abordando.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever é meu trabalho. Considero-me um trabalhador como qualquer outro, ferreiro, marceneiro ou pedreiro. Apenas uso 26 pequenas letras com as quais ouso reconstruir o mundo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Agora que já estou com 87 anos, a escrita se torna cada vez mais fácil, pois a acumulação de toda uma vida facilita começar a escrever. Mas antes distribuo o material em capítulos a serem escritos. Mas isso não funciona muito bem. Na medida em que vou escrevendo, surgem perspectivas ou sinto a necessidade de introduzir um novo capítulo e deixar para trás um outro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho esse tipo de ansiedade. O que mais me custa e realmente é penoso o dar-se conta de que tem pela frente ainda 10 capítulos do livro para elaborar depois de ter escrito quatro ou cinco. Essa fase é estafante. A alegria só vem quando tudo terminou.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu costumo fazer uma única redação. Escrevo diretamente o texto. Depois o releio para ver não há repetição da mesma palavra na mesma frase ou nas próximas. Mas sinto que só consigo mesmo ler o texto quando o imprimo. O texto do computador é enganoso pois não lhe permite a visão de conjunto, devido às interrupções que tenho que fazer por causa de uma viagem, ou depois da sesta ou quando paro por qualquer outro motivo. Não costumo entregar a ninguém meu texto. Mas sempre que minha esposa o lê, o texto fica melhor, porque ela é muito exigente nas palavras e mostra as partes que não ficaram claras e devem ser reescritas. Mas nem sempre faço isso. E deveria fazê-lo, se ela tivesse mais tempo e seguisse o seu conselho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu faço um pequeno esquema do capítulo com os títulos e subtítulos correspondentes à mão numa página. E depois me ponho a escrever diretamente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu desde os 8-10 anos venho estudando. Não fiz outra coisa a vida inteira, dividida em três momentos: dar aulas (sempre escrevo a aula, no estilo dos professores alemães que devem ler para os ouvintes o texto escrito); outro momento são as palestras e cursos que dou aqui no Brasil e no exterior; por fim dedico o restante do tempo a escrever seja artigos, prefácios ou livros. Já atingi a cifra de 102 livros, com diferentes tamanhos, alguns de 70-80 páginas e outros de até 500 ou 600 páginas. Quando vejo os livros na estante sinto que se fosse recomeçar não teria a energia e o entusiasmo necessário para empreender tamanha tarefa. Permito-me dar um conselho: esteja sempre aberto à imaginação e às ideias que lhe vêm à mente. Escreva-as logo e não deixe para depois. Caso contrário tudo se dilui em uma imagem sem contornos. Ao escrevê-la no momento, irrompe a palavra adequada e a tudo guarda a vivacidade do insight.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Dou-me conta de que quanto mais regrido e olho para os primeiros textos, vejo que escrevia muito melhor do que atualmente. Creio que em parte porque se escrevia à máquina e não se podia errar muito, pois havia um processo difícil de apagar, seja a página e ainda as cópias. Tudo tinha que ser pensado anteriormente. Com o computador tudo ficou fácil demais, pois pode-se cortar textos, transportá-los de um lugar para o outro. Isso nos leva a descuidar do estilo. Na verdade, depois que comecei a escrever semanalmente um artigo para os jornais, principalmente para o Jornal do Brasil, já por 16 anos, aí tive que aperfeiçoar minha escrita e concentrar o tema escolhido em algumas ideias básicas. A gente é obrigado a ater-se às 90 e no máximo 95 linhas e nada mais. Contrariamente ao livro, você pode discorrer mais sem preocupação pelo tamanho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quando regressei de meus estudos na Alemanha, tinha uma agenda de temas que queria abordar. Não abordei nenhum. Você não escolhe o tema. A situação o provoca ou o diálogo e o confronto com o auditório lhe sugere os temas. O meu canto de cisne que coloquei como desafio para mim mesmo foi retraduzir do latim medieval a Imitação de Cristo do ano de 1441 do Venerável Tomás de Kémpis, o livro mais lido pela cristandade depois da Bíblia. O autor é um exímio conhecedor da alma humana que inspirou Sigmund Freud e também o filósofo Martin Heidegger. Não só retraduzi mas também tentei, à luz da teologia oficial saída do Concílio Vaticano II (1962-1965), portanto, não de uma teologia particular mas oficial, remover as arestas do texto original caracterizado por forte dualismo, separando Deus e mundo, prazeres terrestres e prazeres celestes, a alma e o corpo. Tentei, mantendo o sentido originário, elaborar um discurso inclusivo ao reformular, por exemplo esta frase: ”despreze os bens terrestre e se fixe nos celestes”; reescrevi desta forma: ”ame os bens terrestres sem contudo esquecer os principais que são os bens celestes”. Por fim, ousei acrescentar mais uma parte, a quinta, que trata do Seguimento de Jesus. Este é um tema da moderna teologia ecumênica, especialmente da Igreja latino-americana, que coloca um especial acento na vida e na gesta do Jesus histórico, difamado, perseguido e, por fim, executado na crua e não apenas no Cristo da fé, cuja realidade está totalmente tomada pela divindade, como o faz a Imitação de Cristo. Aqui usei a visão da moderna cosmologia que fala do universo em evolução e de como Deus e seu Espírito tudo conduzem para uma culminância, no surgimento do ser humano e na irrupção de Deus pela encarnação de seu Filho Jesus de Nazaré. Quanto mais avanço em idade, mais volto aos clássicos da tradição filosófica e teológica. Na verdade, o que mais gosto e aprecio sobremaneira é a poesia. Daria toda minha obra teológica por uns versos de Fernando Pessoa, de Castro Alves e de Drumond de Andrade. De resto minha atitude fundamental é aquela do salmista: “contemplo os dias passados e tenho os olhos voltados para a eternidade”.