Leonardo Almeida Filho é escritor, compositor, artista plástico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou nada disciplinado, em nenhuma área de minha vida. Isso não quer dizer que, quando estou mergulhado num projeto, eu fique fazendo corpo mole. Pelo contrário, nessas horas eu sou o típico sujeito obsessivo, chego a passar horas numa página, reescrevendo, refazendo. Minha rotina matinal envolve leituras e, em certos casos, revisão de textos que escrevi na noite anterior. Meu computador vive aberto, com textos em processo de escrita. Leio tudo que me cai nas mãos e vários livros ao mesmo tempo. Ficam espalhados pela casa, em lugares estratégicos, no banheiro, na cozinha, na varanda, no quarto. Em minha escrivaninha sempre tenho uma meia dúzia de livros que estou lendo simultaneamente. Eu não me obrigo a terminar um texto que não me agrade e não sofro se abandono a leitura de algum romance. Tenho uma lista infindável de romances que nunca cheguei a terminar. Alguns deles, mais cedo ou mais tarde, vão cair nas minhas garras novamente e eu, provavelmente, vou conseguir finalizar sua leitura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou um sujeito diurno, gosto de começar a escrever durante o dia, normalmente a tarde e, dependendo do andamento da escrita, invadir a noite. Meus textos, na maioria das vezes, nascem de anotações que faço no aplicativo de notas do meu celular ou no meu caderno de anotações. As ideias têm que ser anotadas. Sempre. Elas se perdem. Aprendi dolorosamente essa verdade. Muitas ideias boas eu as perdi por puro esquecimento. Não perco mais. Vou anotando uma frase, um pequeno enredo, uma notícia que leio e que me inspira uma cena qualquer, um diálogo que escuto na rua, um comentário besta que me desperta para um problema qualquer, enfim, o dia a dia é meu laboratório. Creio que deve ser o de todo escritor. E esse procedimento é válido para a poesia e para a prosa. Quando me sento diante do computador e leio as notinhas que fiz em meus cadernos, começo a escrever, sem crítica alguma. Na preparação para a escrita eu preciso obrigatoriamente de café. Parece besteira, mas é um estimulante fantástico. Antes havia o cigarro, companheiro de meus primeiros textos. Hoje, sobrou-me o café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito da fase em que me encontro no projeto e do gênero em que estou mergulhado no momento. Claro que, no caso de romance, tudo é muito lento no início, há muitas escolhas a serem feitas, percursos a serem planejados. Eu normalmente rascunho pequenas ideias para os capítulos ou fases da história e vou desenvolvendo-as. No meio desse processo, sinto que a narrativa me puxa violentamente e eu me perco nela. Fico horas escrevendo, reescrevendo. Sou muito exagerado nas decisões que tomo no processo de escrita. Já joguei um romance inteiro no lixo e em outros casos, me recuso terminantemente a apagar um parágrafo sequer. Por que? Não tenho ideia, as coisas me vêm de forma muito rápida quando começo a criar. E isso serve para a música (sou compositor), para a poesia, para a pintura (gosto de desenhar e pintar) e, é claro, para a prosa (contos e romances). Quando estou capturado pela história e ela se revela em minha cabeça, minha concentração no texto é absoluta e radical. Posso ficar sem comer enquanto não dou por finalizado um capítulo, um conto, um poema. Não tenho meta diária de escrita. Já tive, já me obriguei a escrever um poema por dia, uma página, mas isso não funcionou. Tentando colocar ordem no meu processo de trabalho, estabeleci metas diárias. Foi perda absoluta de tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Posso citar como exemplo a elaboração de meus romances (todos inéditos). O primeiro deles, “Nessa boca que te beija”, comecei a escrever em 1994. Era um texto glauberiano no sentido de que eu tinha uma ideia na cabeça e uma caneta na mão, mas nenhum roteiro ou anotação. A primeira versão do romance, que até então se intitulava “O grande autor”, ficou horrível, down, paranoica, extremamente pessoal, um horror. Apesar disso, adorava a sua estrutura e sua ideia central, por esse motivo passei a reescrever os capítulos, eliminar cenas e personagens, criar outros, aliviar determinados climas depressivos, iluminar certas áreas absolutamente escuras da narrativa, enfim, gastei nesse processo quase 15 anos. Em 2008 fiz a melhor versão possível do livro e guardei-o na gaveta. Recentemente resolvi fazer uma ultima revisão e dar a forma final ao texto, escolhendo inclusive seu título. O segundo romance, “Pretextos para matar júlias”, foi escrito em tempo recorde para meus padrões “Caymmi” de escritura. Queria escrever a história de um assassinato e sua investigação. Fiz anotações para a história, desenvolvendo com cuidado cada personagem. A vítima, uma garota de programa. O investigador, um policial civil amante de poesia. Os suspeitos, um grande empresário, um pastor evangélico, políticos e autoridades que contratavam os “serviços” da vítima. Para cada um desses personagens, fui criando seus afluentes, outros pequenos personagens. O romance é estruturado na forma primitiva da sonata, em três partes. Daí seu título definitivo: “Sonata das pequenas crueldades”. É uma história que se passa em Brasília e tem um final surpreendente. O terceiro romance me consumiu horas intermináveis de pesquisa na Biblioteca Nacional, na leitura de livros de história do Brasil e de Portugal, manuais de navegação, de estudo do falar português, de história da formação da cidade do Rio de Janeiro, história contemporânea brasileira, história da literatura brasileira, enfim, passei um ano apenas estudando, fazendo anotações, escrevendo roteiros e registrando ideias. Quando terminei a pesquisa, comecei a escrever o que se tornou o meu “Grande Mar Oceano”, um romance histórico que tem seu início em Lisboa, em 1750 e seu término no Rio de Janeiro em 1981. Dos três romances, este foi sem sombra de dúvidas o que mais me consumiu tempo de pesquisa, o que facilitou a sua escritura, pois, embora pura ficção, os personagens atravessam períodos da história e isso dá verossimilhança às suas vidas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como lhe disse, não sou disciplinado, logo, não me deixo abater por “travas”. Elas existem sim, são muito comuns, mas não deixo que sejam motivos de desânimo. Já pensei algumas vezes no velho clichê “O poço secou”, é inevitável, mas o tempo me mostrou que o poço sempre dá água. Se me deparo com um bloqueio qualquer, abandono momentaneamente o projeto e parto para outro. A experiência tem me mostrado que uma hora as ideias aparecem e tudo volta a fluir. Claro que há uma certa vaidade no processo de escrita. Freud escreveu que todo escritor almeja o sucesso e o amor das mulheres (ou algo bem próximo disso). Eu já fui muito susceptível à crítica, mas o tempo trabalhou bem nos meus defeitos e esse já quase não me incomoda. Quando escrevo não penso num leitor ideal, não projeto esse leitor, logo não alimento expectativas ou ansiedade. Estaria mentindo se lhe dissesse que isso ocorre sempre. Não. As vezes fico tão empolgado com um texto, um poema, que fico na expectativa de que o leitor consiga ter o mesmo prazer que tive ao escrevê-lo. As coisas não funcionam assim, não é?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu nunca paro de revisar meus textos. Não é frase de efeito não, eu realmente sou obsessivo com a revisão do texto, seja ortográfica, gramatical, de estilo, enfim, para mim, um texto nunca está pronto. Mesmo depois de impresso, publicado, divulgado, eu sempre enxergo uma maneira nova de escrever o mesmo texto. É muito doloroso esse procedimento, pois a cada leitura que faço de um texto meu, eu sinto a incompletude da obra e me dá um desespero enorme, uma vontade de mexer em tudo, de alterar tudo. O meu primeiro livro, publicado em 1998, “O livro de Loraine” sofre em minhas mãos até hoje. Se algum dia reeditá-lo, com certeza será outro livro. Revisões gramaticais, ortográficas, são coisas de pouca monta. O que me incomoda muito é a revisão estilística do texto, a reescritura de um parágrafo, de um capítulo inteiro. A necessidade de cortar e cortar e cortar, como o velho Graciliano Ramos, meu mestre. Me incomodam repetições, clichês, frases mal escritas, truncadas, confusas, e por isso leio e releio o que escrevo e sempre reviso e reviso e reviso. Eu sinto necessidade de mostrar o que escrevo a outras pessoas, geralmente amigos ligados à literatura, às artes de uma forma geral. Sempre encaminho por e-mail o poema, o conto, a crônica, o romance, enfim, tudo que eu escrevo e que considero de razoável qualidade literária aos amigos mais próximos. Em determinados casos, e aqui estou me referindo aos romances, também encaminho a um profissional para que revise e opine criticamente. O olhar do autor está sempre contaminado pela escritura e isso cria uma cegueira lógica e inevitável. É preciso que outro olho se debruce sobre o texto e que o autor tenha a humildade de aceitar esse outro olhar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho um caderninho de anotações onde registro ideias, parágrafos completos, sugestões. Tem a mesma função o aplicativo de notas de meu celular, que vive cheio de pequenas anotações, sugestões para letras de música, poemas, contos, enfim, tudo que me chega como ideia nos momentos mais inesperados. Mas para escrever mesmo, sento diante do meu laptop e começo a trabalhar no texto. Uso o editor de texto Word, mas não posso dizer que sou um expert na ferramenta. Utilizo o básico do básico para construir meu universo diegético. Gosto de escrever ouvindo música e sempre tenho uma playlist interessante rolando em meu celular. Apesar de adorar música popular, rock, blues, mpb, normalmente são os clássicos que me inspiram ao escrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm do meu contato com o mundo, com as coisas reais (como canta o Belchior). Uma notícia de jornal é suficiente para que eu pense num conto ou poema. A história real de um amigo, devidamente retrabalhada, pode me servir de base para um personagem. Vou te contar um exemplo engraçado. Um amigo me contou, há anos, que uma ex-namorada lhe pediu como presente de despedida que ele a deixasse morder sua (dele) bunda. Cada um com seu pedido, não é mesmo? Essa história que me foi contada por ele, me serviu de alimento para um personagem que, como meu amigo, tinha uma namorada com desejos muito ecléticos. Claro que meus personagens eram muito diversos, muito diferentes desse meu amigo. Ao ler o conto, ele manifestou-se imediatamente dizendo que o personagem era ele. Mas não era, pois a única coisa que os unia era uma bunda mordida por uma namorada. Minha vida me serve de base ficcional, a vida alheia me serve de base ficcional, o mundo inteiro me serve de base ficcional. O hábito que me mantem criativo é a leitura e o trabalho na escrita. Embora não sendo uma pessoa disciplinada, como já afirmei, faz parte de mim escrever diariamente. Não por que planejo disciplinadamente, mas por que sinto necessidade disso. É como tomar o café da manhã, já está automatizado. Nisso, é claro que muita coisa não passa de lixo, de tentativas frustrada de um poema, mas muito do que produzi até hoje surgiu exatamente dessa maneira, dessa minha obsessão em escrever a qualquer custo. As leituras dos grandes escritores nos trazem sempre ideias de como escrever ou evitar escrever um texto qualquer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A paciência e o perfeccionismo. Isso o tempo me trouxe a duras penas. Meus primeiros textos pecam pela pressa, por um desespero em terminar um texto e divulga-lo, também pelo despreparo e a falta de compromisso com a literatura. Acho que isso é bem típico do autor iniciante, esse fogo sem controle, esse deslumbre sem compromisso. Hoje eu escrevo com muito mais paciência e preocupação com a escrita. Não me dou por satisfeito muito facilmente, como o fazia há muitos anos. Se eu pudesse voltar no tempo, com a experiencia de hoje, tenho certeza que a maioria de meus textos estaria muito diferente. A maturidade nos traz uma preocupação maior com a qualidade do trabalho, um respeito maior pela arte da escrita, uma visão diferente do porquê da literatura em nossas vidas. Se eu pudesse falar com o Leonardo de 1990 eu certamente diria: Cara, leia mais e jogue grande parte do que escreveu fora. Não tenha preguiça de reescrever um capítulo inteiro. Corte esse excesso de adjetivos. Elimine o lugar comum. Mas o principal: leve muito a sério a sua escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Alimento há alguns anos a ideia de escrever um drama teatral, musical, baseado na biografia de Fernão de Magalhães, escrita por Stefan Zweig. É um texto belíssimo e que tem todos os ingredientes para uma grande obra: aventura, tragédia, grandiosidade, heroísmo, enfim, tenho feito minhas anotações no caderninho…quem sabe um dia? Gostaria de escrever um grande romance sobre o a formação do Brasil contemporâneo a partir da saga de minha família, nordestinos que, seguindo a previsão trágica de “Vidas secas”, desceram para o sul. Esse romance eu ainda vou escrever. Sobre que livre eu gostaria de ler e que ainda não existe eu confesso que adoraria ler a minha biografia não autorizada (risos).