Léo Mackellene é escritor, autor de “Como gota de óleo na superfície da água”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como eu começo meu dia?! rs Depende do dia… aliás, depende da noite anterior. Mas gosto de acordar cedo (quando posso ou quando consigo. rsrs). Ponho alguma música numa setlist que montei e a que dei o nome de “Domingo de manhã” ou “Pra acordar” – construí uma categoria que chamo de “Música para se ouvir domingo de manhã”. Se dá pra ouvir domingo de manhã, a música só pode ser boa! rs − e faço o café pra mim e pros meus filhos (tenho dois, João, 15, e Júlia, 10): frutas, tapioca ou cuscuz… – tenho diminuído drasticamente pão − … chá, batata doce, café moído em Reriutaba − cidade a 70 km de onde eu moro, Sobral, segunda capital do Ceará, terra de Belchior e Ciro Gomes −, que um amigo poeta me traz de lá. Enfim… Meu quarto é ao lado da garagem cujo teto natural é de bouganville. Acordo todos os dias olhando pra ele. Vez em quando escuto a visita de um beija-flor. A primeira coisa que vejo quando acordo é essa imagem. Mas não fotografo. Prefiro guardar na memória.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou geminiano com lua e vênus em gêmeos. Tenho 1% de elemento fixo no meu mapa astral/mental (ainda que essas coisas não existam, é bom para um escritor pensar nessas coisas. Elas deixam o mundo mais simbólico, tornam a nossa vida mais épica, dão mais sentido ao mundo e aos acasos, organizam o caos. Pensar já é em si um ritual. Essa característica me deixa mais fluido, no sentido de que meus rituais (o que pressupõe fixidez, repetição) são relativamente fluidos, ou seja, dependem de muitas coisas. Um exemplo: em 2010, morei um ano em Viçosa do Ceará, na serra da Ibiapaba, limite territorial do Ceará com o Piauí. E minha casa ficava mata adentro. A janela da minha biblioteca ficava de frente para a mata, que recebia um alaranjado cremoso, bonito, quando o sol nascia. Era a época do mestrado e eu recebia bolsa, não trabalhava fora, portanto. Acordava todos os dias às 4 da manhã, dentro da neblina (em Viçosa neblina muito) e aos poucos a neblina ia se dissipando, à medida em que o verde-escruto da mata ia cedendo ao amarelo-alaranjado do nascer do sol.
Escrevi Como gota de óleo na superfície da água mais ou menos como um ritual. Eu prefiro escrever à mão. Tenho um conjunto de cadernos de notas que chamo de “Cadernos de rascunhos”, são daquele tipo moleskine – tenho mais de 10 cadernos numerados, todos feitos com aquelas folhinhas amareladas de livro (pólen soft) e com as páginas numeradas. Como gota de óleo… está todo registrado nele, na sequência em que nasceu, não na mesma sequência do livro, capítulo a capítulo, seção por seção.
Acontecia assim: organizei minha semana para não trabalhar às sextas-feiras. Assim, ia deixar meus filhos na escola e, depois de lavar a louça do almoço, colocava um dos meus vinis pra ouvir, abria minha garrafa de vinho e tacava o pau a escrever. Aleatoriamente! Sem pudor… Escrever, de alguma forma, é se permitir escrever, sem pensar em quem vai ler, sem pensar se está escrevendo um best-seller, sem pensar se vai ganhar prêmios ou ser considerado o novo Machado de Assis, o novo Saramago! Isso não existe! Não adianta também escrever com palavras difíceis! Não se trata disso! Escrever bem não é escrever difícil! E a beleza não tem nada a ver com o que chamam, nos manuais de teoria do verso, de “rima rica”, “rima preciosa”… isso é coisa de parnasiano! Do século passado! Não há beleza maior que a beleza da verdade! A verdade é o mais alto estágio de toda a beleza! Como dizia Fernando Pessoa, toda a metafísica cora ante à beleza que uma simples flor tem ao nascer. Mais ou menos assim.
Ando sempre com meu caderno de rascunhos, que hoje − publicado o Como gota de óleo na superfície da água e iniciado um novo projeto, de um novo livro com título ainda flutuante − chamo de “Novos cadernos”. E nele anoto, sempre que me aparece, uma imagem, uma cena, um pensamento, um sentimento. Eu sou um cineasta sem câmera. Um cineasta a quem o dinheiro só deu pra comprar caneta e caderno pro roteiro. Meus livros, todos eles, são roteiros cinematográficos. Então, as imagens me chegam com muita força. Quando falo imagens não são necessariamente coisas visuais. Não sou um autor descritivo como José de Alencar, por exemplo. Minha literatura é fluida; aliás, procuro fazer com que ela seja e, a julgar pelo que tem me chegado de relato dos leitores, tenho conseguido alcançar isso. Carlos Haroldo, um dos meus resenhistas, num texto que ele publicou no jornal local Correio da Semana, disse que pegou meu livro pra folhear entre outras leituras importantes que fazia e só parou pra lá da página 200. rs Há outros relatos. Uma leitora me agradeceu pela experiência nunca antes sentida de ler um livro de uma lenhada só, em seis dias. rs Claro que isso faz cócegas na alma! De quem não faria?! Vaidade?! É, pode ser. Mas tenho aprendido a lidar com meu lado humano! E uma alegria compartilhada dessas, pra mim, vale mais do que um troféu, uma medalha, um título acadêmico… É vida! Respira e pulsa!
O que eu chamo de imagem é uma construção poética lapidada. Às vezes ela vem pronta. Em 2017, publiquei pela editora Rubra Cartoneira, de Londrina-PR, um livro de ditados pessoais chamado Ínfimus. Acho que ele é um bom exemplo do que estou chamando de “imagem poética”. Nele, há ditados pessoais como “Não se pode apagar a palavra dita” ou “De adianta falar, se não podemos dizer a verdade?”. São ditados pessoais porque são versos que me vieram para orientar a minha própria conduta no mundo, a minha própria forma de ser! E pra que serve a literatura senão pra gente aprender a ser gente, né?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ops!!! Acho que acabei respondendo a essa na pergunta anterior. Mas sobre a meta de escrita… Não. Não tenho isso! Acho que não funciona comigo assim. O que eu escrevo é muito trabalhado, às vezes; lapidado. Opa! Acabei de ver que a próxima pergunta é sobre isso. Pra não colocar o carro diante dos bois, me limito a dizer que, se eu estabelecesse uma meta de escrita pra mim, não funcionaria. Prefiro deixar a meta aberta, e, quando eu atinjo a meta, dobro a meta! Rsrs
Agora, tem um detalhe: além de escritor, sou músico e acadêmico. Minha cabeça gira em torno destes três eixos. Então, às vezes estou mais pra poesia, às vezes mais pra prosa, às vezes pra prosa mais longa, às vezes mais curta, às vezes mais pra música, às vezes pra temas mais teóricos, mais políticos… enfim. Como eu disse, tenho 1% de elemento fixo! rs
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Estou escrevendo um romance histórico na linha de Agosto, de Rubem Fonseca. Nele, estou tentando desenvolver a técnica da polifonia de narradores que exercito no meu romance anterior, onde há quatro narradores, três em 1ª pessoa, narrando perspectivas dos mesmos episódios – e as perspectivas vão se costurando pra formar o cenário final mais completo, e um quarto narrador em 3ª pessoa costurando os outros três. É uma espécie de técnica cubista. Nesse novo romance, a ideia é desenvolver essa técnica. Contudo, não estou limitando a quantidade de narradores. E outra (pra você entender porque estou falando nisso): os narradores estarão em momentos diferentes da história do Brasil. Assim, há um personagem narrando em 1570, por aí; há outro no final do século XIX, 1870, 1889… há um personagem que aparece assistindo à notícia do incêndio no Museu Nacional… e há um personagem que vem do futuro. A ideia é que todos esses personagens, nas escolhas que faz, nas decisões que tomam, mínimas que sejam, acabem interferindo na condição em que outro se encontra. Como se trata de um romance histórico, uso a técnica de misturar personagens fictícios a personagens reais. Numa cena, Rui Barbosa interage com José de Alencar e Brás Cubas, por exemplo. Nesse sentido, pra conseguir escrever uma única página, preciso ler outras mil de pesquisa. É outra forma de escrever. Mais trabalhosa, mas bem mais desafiadora e instigante.
Quanto à questão de se é difícil começar… Não. Porque eu aceito bem o fluxo natural do texto. Ele tem uma vida própria. Não teimo com o texto. Como gota de óleo na superfície da água demorou 5 anos pra ficar pronto. E depois de publicado, quero é que você veja, no meu exemplar de trabalho, o quanto de coisa que já melhorei. rs
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não passei por nenhuma dessas situações ainda. Mesmo quando me faltou inspiração, a própria falta de inspiração foi o motivo da inspiração.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Hahahaha…. infinitas vezes. Tenho 6 versões completas do Como gota de óleo…, meu trabalho mais longo, 332 páginas. Eu tenho um texto em que eu analiso o meu próprio processo de escrita. Meu trabalho de escrita – e acredito que seja assim no geral, pra todo mundo – é muito artesanal. Eu me considero um artesão de rascunhos. Existem alguns interlocutores importantes no meu processo de escrita. Meus filhos também são bons lexicômetros. rs
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão, à mão, como disse anteriormente. Mas esse novo romance estou escrevendo no computador; como exercício de técnica também… poupa o tempo de passar a limpo. Assim, deixei os cadernos de rascunhos para tópicos mais pessoais, quase um diário de reflexões.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que já respondi a essa pergunta numa das respostas anteriores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Na verdade, não sei. Acho que venho cada vez mais enxugando mais o texto, tanto em termos de penduricalhos (orações subordinadas, adjetivos, advérbios…). Sou meio gracilianista, nesse aspecto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Viiiiixe!!! Que pergunta!!! Deixa ver… Existem muitos projetos em aberto aqui nas minhas pastas. Um não é propriamente literário no sentido estrito do termo: quero escrever a história da minha geração de artistas em Fortaleza e no Ceará, quem sabe. Talvez leve isso pro doutorado, pra falar sobre campo da arte a la Bourdieu.