Lena Fuão é escritora, autora de “Entra que tá chovendo” (2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo. Não me lembro de quando consegui permanecer na cama depois das onze da manhã. Meu dia começa com mate e silêncio. Leio alguma coisa. Não escrevo, ou, raramente. Aqueço minhas cordas vocais e pensamento dessa forma. É na solidão e quietude que gosto de estar até o café, que normalmente acontece horas depois desse ritual. A escrita pode até nesse momento aí, mas somente quando ela se impõe.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Estranho muito essa coisa de ter rotina de escrita. Näo tenho. Não sei se conseguiria trabalhar um poema, por exemplo, com hora marcada. Ele me acontece e, normalmente, nas horas menos esperadas. Talvez isso seja possível na produção de uma obra em prosa, mais técnica talvez. Pra mim, a escrita comanda. Me domina. Posso ter uma ideia pra um poema no meio de uma conversa, no meio do trânsito ou enquanto lavo uma louça, por exemplo. Quando isso se dá, na medida do possível, largo tudo e rabisco alguma coisa que mais tarde eu apronto melhor, mexo, refaço, acrescento, excluo. Muito comum de acontecerem ideias no meio de uma insônia. A madrugada é absolutamente grávida de poesia. Já houve vezes em que dois textos se apresentaram ao mesmo tempo, juntos, disputando minha escrita. Nessas ocasiões, que não são tão comuns assim, normalmente um dos dois vinga. O outro vai pro lixo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como já falei anteriormente, raras são as vezes em que me sinto obrigada a escrever. Acontece quando estou prestes a lançar um livro. Daí sim, reviso, refaço e adoro esse processo. Caso contrário nunca me obrigo, talvez porque não viva financeiramente dela (poesia). Mas me satisfaz esse descompromisso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Difícil começar, não. Normalmente o desenvolvimento, o meio mesmo do texto, é o processo mais complicado até porque quando começo já me surge umaideia pro final. É muito curioso isso. No ínício da escrita eu já tenho ideia de onde ela vai chegar, mas o meio é sempre doloroso. É um sentimento de não estar fazendo certo, legal, bacana. É como andar no escuro.Vou tateando as palavras. O miolo é a pior parte sem sombra de dúvida.
Quanto à pesquisa, se trabalhasse mais com narrativa ou texto científico, talvez necessitasse dessa coisa de buscar fora. A poesia é muito empírica, muito num processo de extravasamento da minha própria subjetividade ainda que esteja falando sobre algo que é alheio a mim. Então, se há algo para buscar, é mais no interior das minhas cavernas mesmo. Acho que é assim que funciona com os poetas. Quase sempre, independente do tema que pode ser mais autobiográfico ou não, a poesia atravessa nossa subjetividade de uma maneira mais profunda ou mais superficial, mas atravessa. Exemplo, posso fazer um poema que fale de algo que não tenha vivido de fato, mas em alguma instância a minha experiência passou por ali, há algum sentimento que me liga aquilo. Acho que a gente não consegue escrever sobre algo com o qual não se tenha o mínimo de intimidade porque isso vai estar fadado ao fracasso, fica suerficial, sem potência. Pelo menos é assim que eu penso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, isso é inevitável. Há épocas tremendamente férteis pra mim e outras extremamente secas. Tô aprendendo a lidar com isso. Sei que funciona dessa forma e não posso mudar. Nos momentos mais tensos, brota naturalmente; nos momentos mais “tranquilos”, a escrita sai pela porta dos fundos. Só vejo o vulto. Daí é só resta aguardar seu retorno. Mas confesso que já pirei achando que nunca mais iria escrever. Costumo dizer que me sinto sempre em conflito com a escrita¨. Se tenho muitas ideias, parece que não vou dar conta. Se elas não surgem, fico preocupada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus escritos muitas vezes, mas nunca o suficiente pra me sentir segura e muito menos pra não me arriscar a um retoque no texto depois. Sempre que leio um poema meu penso que está faltando algo, que poderia melhorá-lo. E pouco mostro meus textos pra alguém antes da publicação. Quando acho que tá na hora, ou guardo pra um livro futuro, ou posto nas redes mesmo, aí não tem jeito, quando me dou conta, já foi lido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já passei por 3 fases diferentes. No início, quando me permiti escrever, anotava em caderninhos, agendinhas que guardo até hoje. Vou contar um segredo: trabalho a 60km de onde moro e mantinha uma caderneta no banco do carona. Como tinha muitas ideias enquanto dirigia (hoje o trabalho é remoto), com uma mão eu manejava o volante e com a outra eu escrevia sem olhar, só no tato com a folha. Até lembrei que já fiz isso no escuro da madrugada também. Quando acordava com um poema, escrevia no escuro e muitas vezes só olhava dias depois. Cansei de voltar aos textos e me perguntar: de onde tirei isso? fui eu que escrevi?
Depois abandonei o cadernos pelo note e hoje lanço a ideia e apronto o texto no bloco de notas do celular. E vou confessar que tá bem difícil de escrever de outra forma porque me habituei assim. O celular está sempre à mão, facilita muito quando a vontade vem e a gente não tem uma caneta ou um note por perto. Pra mim facilitou muito esse instrumento. Se o texto é muito longo, o que não é muito comum na minha escrita, transfiro depois do celular pro notebook pra então terminar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu acho que a leitura de outros poetas me inspira muito, letras de músicas, filmes, fotografia, ou pode ser algo que alguém me fala que acaba me despertando o processo criativo. Outras vezes, sem nenhum motivo surge a ideia na minha cabeça, um verso, às vezes até um poema quase pronto.
Mas tem algo curioso que me aconteceu no meio dessa situação de pandemia: conversando com amigos que me contavam determinados episódios e lembrando de algumas outras histórias, passei a desenvolver alguns contos os quais compilei num livro que está na editora nesse momento. São mini contos baseados em fatos reais. Foi um período de uns oito, dez meses em que mergulhei na escrita de ficção e amei. Mas acho que foi só uma fase que passou. Ainda assim resolvi editar esse momento num livro que sai em breve.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Poxa, difícil pergunta, mas acho que hoje acho meus versos mais trabalhados, mais dizentes, um pouco mais profundos. Pode ser que quem me leia não concorde, mas vejo os meus poemas um pouco mais densos hoje. Acho que nunca é igual. A gente amadurece no trabalho, no exercício, e com a palavra não é diferente. No início eu sentia uma urgência, pensava que tinha que fazer poemas sobre tudo, como se eu devesse algo pra alguém, não sei. Hoje não escrevo mais tanto por impulso, mas por necessidade mesmo. Às vezes me pergunto: vai mesmo escrever sobre isso? E se eu me pergunto, é que já tem algo errado aí.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como gosto muito de fotografia, tenho vontade de fazer foto poesia, mas pra isso teria que me aprimorar mais na técnica das fotos e adquirir material de melhor qualidade também, sem falar no custo que é um livro que contém fotos, em virtude da impressão, da folha, do colorido, essas coisas. Mas não descarto isso, não, quem sabe uma parceria com um fotógrafo massa, quem sabe. Mas vou contar, tenho lido tanta coisa boa e contemporãnea que, ou me dá uma pontinha de inveja (por que eu não escrevi isso?), ou me acho uma farsa (o que que eu tô fazendo escrevendo?), ou as duas coisas junto. Tem muito poeta genial por aí precisando de mais divulgação e recepção.