Leandro Rodrigues é poeta e professor de literatura, autor de Aprendizagem Cinza (2016) e Faz Sol Mas Eu Grito (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como um vampiro sem graça, sinto o peso das manhãs como correntes de arame farpado. Carrego livros e sangro em lousas quebradas, aspirando pó de giz com dores nos ombros de tanto escrever poemas de Drummond. No mais rascunho versos nos minutos que posso olhar as frestas entre as grades. O Aprendizagem Cinza, meu 1º livro, lançado pela ed. Patuá em 2016, foi quase inteiramente feito nesses momentos. O poema final As Feras, que está na contracapa, retrata bem essa rotina. O cárcere do pensamento de uma engrenagem enferrujada, autômata e podre. Nisso tudo, fazer literatura é um grito. Talvez o único grito possível. (Dou aulas de literatura para sobreviver e sustentar a poesia que é um vício não remunerado).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho ritual. À noite, quando esposa, filho e a casa já estão dormindo, leio e escrevo um pouco mais. De forma sempre desconexa, caótica, meio anárquica; leio vários autores, fragmentos, poemas, notícias… Deixo a televisão sem volume e fico olhando a imagem. Partidas de futebol, lutas de boxe, filmes. Daí podem surgir idéias, rascunhos, versos. É o trabalho inicial. Por exemplo, assistindo aquela cena de Lacombe Lucien de Louis Malle em que o jovem atira nas lebres, decepa a cabeça da galinha num golpe, me veio um poema pronto, não precisei mudar quase nada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende. A meta é sempre o livro. Tenho um conceito estabelecido do que quero dizer, a temática etc. Direciono os versos, busco estruturá-los. Quando estabeleço um projeto, escrevo alucinadamente e não sossego enquanto não finalizo esse projeto/livro. Por exemplo, o Faz Sol Mas Eu Grito veio de diversas leituras. Estava lendo entre outros Os Que Bebem Como Os Cães do Assis Brasil e ao mesmo tempo o Faz Escuro Mas Eu Canto, do poeta Thiago de Mello e vários outros poemas do Cacaso, do Torquato Neto, da Hilda Hilst. Todos foram influência para a construção desse meu 2º livro: a liberdade do homem frente à opressão social. Isso tudo foi o embrião, a gestação do livro. Mas nem sempre é assim. Há muitos momentos em que não quero saber de literatura. Semanas de ausência necessária, uma espécie de desintoxicação do projeto concluído. O vazio da morte antes do nascimento, do novo, que como bem disse Belchior: “sempre vem”. O importante para mim é não confundir uma poesia crítica-ácida com poesia meramente panfletária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é tão difícil começar. O mais difícil é a montagem final. A sequência dos poemas, quais devem ser cortados etc. Não sou sistemático quanto a pesquisas e notas. Uso uma espécie de memória de leituras e deixo as imagens fluírem um tanto livres, depois apuro o que pode ou não fazer sentido para aquele verso, para aquele poema, aquele capítulo, aquele livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A ansiedade e o medo fazem parte de tudo, ainda mais no Brasil. Num poema chamado Autópsia do meu 2º livro publicado o Faz Sol Mas Eu Grito (ed. Patuá, 2018) pergunto: – Com quantos fracassos se faz um poeta? É claro que inúmeros… (risos) Ou seja, de cara tento desmistificar a genialidade, a soberba do “ser” poeta. Normalmente lido bem com esses períodos de ausência da poesia, são essenciais para o grito que virá. Gosto mais de ler do que escrever, então a ausência da escrita é normal, natural.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do poema. Alguns estão prontos de saída. Chegam sorrateiros em qualquer hora ou lugar. Outros é preciso afiar mais a lâmina. É um trabalho insano e quase sem qualquer recompensa ou reconhecimento. Costumo postar um ou outro em sites de literatura e mesmo no facebook, agora sem muita constância. Deixo muitos poemas por meses ou anos aguardando uma nova leitura, alguns sobrevivem, outros não.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é boa, sem traumas. Criei em 2012 um blog chamado nauseaconcreta onde posto alguns poemas. Também participo de diversos sites de literatura. Atualmente escrevo diretamente no computador. Edito, monto os poemas, capítulos, o próprio livro. Para quem viveu antes disso tudo, sabe o quanto a internet ajuda na divulgação e no trabalho em si.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem de um certo inconformismo que sempre me acompanhou. A desigualdade social, a opressão, o preconceito… Por exemplo, abro a janela de casa e vejo uma rodovia chamada Castelo Branco, já é um tapa na cara: o 1º ditador militar ainda homenageado. Por baixo passa um rio morto, que não é mais rio, é um esgoto a céu aberto. Fétido, podre. E ninguém se importa. Ninguém dá a mínima. Num poema do meu novo livro que vai sair em breve chamado aRaMe FaRPaDo No uMBiGo Do MuNDo, digo num verso “estamos todos mortos/ mortos nas reticências”. Daí seguem as leituras que me impulsionam a escrever. Tenho lido: Sam Shepard, Henry Miller, John Fante, Piva, Hilst, Jorge de Lima… O ambiente dos poemas que faço é a metrópole cinza, mórbida e corrosiva, que torna o ser humano um inseto de asa quebrada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muito. Da imitação no início dos poetas ditos “canônicos” a uma linguagem, um estilo que considero cáustico, ácido, sem tantas amarras. Se tivesse que dar um conselho para aquele jovem poeta ainda cabeludo seria: “desiste, desiste enquanto é tempo”. (risos)
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Concluí recentemente o 3º livro: aRaMe FaRPaDo…, é um belo projeto. Será um livro que fechará essa espécie de trilogia. Depois de um tempo de alguns meses, retomei o processo de escrita e um 4º livro está em seu início, ainda sem título. Todos os livros já foram escritos, muitos já disseram isso. Frequento Sebos e tenho a impressão que os livros é que nos escolhem. Quando estava no processo embrionário do Faz Sol…, vi numa prateleira de um bazar beneficente, entre milhares de livros espíritas e de autoajuda, Os Que Bebem Como Os Cães, pronto: fui escolhido. Por ignorância, não conhecia ainda o autor Assis Brasil. Depois consegui os 4 livros do chamado Ciclo do Terror (livros escritos na década de 70) que são ótimos, extremamente ácidos e poéticos. Consegui uma bela epígrafe. Penso, quantos outros livros estão me esperando?