Leandro Durazzo é antropólogo e tradutor, autor de Gestação de Orfeu (ensaio, 2011), Tripitaka (poesia, 2014), Histórias do Córrego Grande (prosa, 2015), Cantos de Natal (poesia, 2017) e Mar de Viração (prosa, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em condições mais ou menos ideais, levanto às 5h com uma gata miando desesperada e outra voando feito tornado por sobre meus pés. Volta e meia acordo com pés ou mãos, ou pés e mãos arranhados, e até diria não saber por que, mas estaria mentindo. Comida pras gatas, água do altar trocada, louça lavada, passo um café e paro. Daí começo. Nos períodos de maior fluxo, quando a rotina é diligente feito um mosteiro, entre 5h e 6h30 já estou escrevendo. Quando não, não – hoje, por exemplo. Escrevo estas linhas às 6h49. Quase hora do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Daí vareia. As manhãs servem a uma escrita disciplinada, com rotina produtiva e uma tranquilidade que só o mundo recém-nascido tem. Tenho escrito minha tese nesse período. Todo santo dia. Mesmo hoje, por mais que esteja usando esta entrevista como preparação ao meu último capítulo, que já comecei mas vai largado na metade. Obrigado, José! Entre um capítulo e outro – às vezes, entre um trabalho e outro – a gente sempre fica uns dias de ressaca, e eis que falar sobre o trabalho é bom para trabalhar.
Quanto a “trabalhar melhor”, mais abrangente que escrever melhor, é ao longo do dia inteiro. Todo santo dia também. Meus textos acadêmicos, que já são uma porção, costumam ser criados e entendidos pela minha cabeça enquanto meu corpo vai largado no mar, ou enquanto corro na praia. Todo santo dia também. Normalmente, pra discussões teóricas e etnográficas, pra entender que tópico devo concatenar com o que acabei de escrever, paro a escrita por volta da hora do almoço e, antes ou depois dele, dou um mergulho – morar na praia ajuda. Entre uma onda e outra, sem exagero, as ideias vêm também. Chamemos presente das águas.
Faço quase o mesmo quando estou em processos de tradução, outra de minhas ocupações profissionais e semicompetências. Acorda de manhã, traduz de manhã, para pra almoçar, vai pra praia, vai mexer o corpo, sai daqui da frente dessa tela em branco e segue o dia. Todo dia é santo.
Já literatura, meu caro, literatura é bicho solto. Indomável mesmo. Não sou eu que vou a ela, é ela que me vem. E, vindo, vem na hora que chega. Sobretudo o som, sobretudo: lavando a louça, puto com alguma coisa que não saiu como planejado, puto por ter ficado puto, sabendo não servir pra nada nenhum aborrecimento, vem uma frase que pá! Dá-nos na cara. Ou nos ouvidos. Muitas vezes poemas vêm como respostas e complementos a poemas de amigos. Ontem mesmo escrevi um dedicado a Carlos Moreira, irmão de penas que está aqui na cidade onde vivo – na hora que escrevo, não sei dizer se na hora que me leem; o tempo é um negócio… – e é um poema que diz assim:
HAIKARLOS
onde há de a onda andar
senão pelo chão de espelho
que a água faz sob o ar?
Bobinho, né? Mas se vocês vissem a vista que vejo todo dia que acordo, depois de arranhado das gatas, iam pelo menos achar sincero.
Por último, mas não menos importante, está a ideia de trabalho, né? O conceito de trabalho, digo. “Trabalho”. Sei não… Às vezes a gente força que é trabalho algo que poderia ser outra coisa, mais viva, fluida, criativa e diletante. Trabalho, trabalho mesmo, é uma sociologia das brabas. Agora que já escrevi parágrafos sobre como trabalho, acadêmica e editorialmente, fecho com o colega Eduardo Viveiros de Castro, metendo o pau nessa ideia de que viver é produzir, viver é produzir, de que o trabalho é a essência do ser humano: “O trabalho é a essência do homem porra nenhuma. A atividade talvez seja, mas trabalhar, não.”
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando trabalho, todos os dias, normalmente nem tão pouco – sou meio da escola datilógrafa do Kerouac, acho. Saio pra viver, vivo, vejo e ouço o que me chega, mas depois que decanta, rapaz, é uma enxurrada. Enxurrada. Daí que o trabalho de edição é importante. Deus abençoe os editores, porque não deve ser fácil… Agora, na escrita da tese, tendo passado vários meses entre o povo Tuxá de Rodelas, no norte da Bahia, trabalhando com política territorial, ritual e educação indígenas, eu ia escrevendo anotações e prestando atenções e, sabe como é, tentando não ser um completo imbecil – regra de ouro do trabalho etnográfico. Depois que voltei de lá, depois de assentada as coisas em casa, foi só abrir a torneira. Enxurrada, como disse. Claro que escrever todos os dias tem a ver com períodos concentrados também. Não escrevo todo dia todo dia, nem mesmo o dia todo, como fiz questão de ressaltar.
MAS – e aqui uso caixa alta porque é importante, cês vão me ver me pegando no próprio pulo – quando das histórias do meu livro mais recente (Mar de Viração, contos novelísticos publicados pela Moinhos agora em 2018), eu escrevi todos os dias E em períodos concentrados, mas de jeitos diferentes. Duas das novelas – O naufrágio do Aqueronte e Santos’agrados – foram novelas seriadas mesmo, que produzi diariamente, ou quase, em um projeto online via página de Facebook, que em 2014 já era horrível mas não esse antro de desespero que viramos. Cada uma foi publicada ao longo de um mês, mais ou menos. Já terra húmyda, novela que recheia o Mar de Viração, foi de maturação lenta – surgiu no mundo e me veio à vista em 2006, quando eu trabalhava no Vale do Ribeira, naquele Projeto Rondon redivivo, cês lembram? – mas só virou texto mesmo em 2013. E aí, rapaz, virou texto num ritmo furioso, num período concentradíssimo. Falei: é agora que escrevo esta desgrama! Numa sexta. Segunda pela manhã, tava lá escrito. Quase como se encontra hoje, publicado em livro.
Micheliny Verunschk, amiga e uma das poetas mais cientes de sua ciência que conheço, na época escreveu uma nota pro Jornal do Commercio, do Recife, dizendo assim: “Acompanhei, recentemente, a escrita vertiginosa da novela “terra húmyda”, de Leandro Durazzo, autor radicado em Santos, SP, e ainda inédito em livro. Sem dúvida, uma das melhores coisas que li nos últimos tempos.”
Vertigem, espero, mas não enjoo.
Ps: Sofia Nestrovski, que é um absoluto arraso na capacidade de traduzir o que lê e vive, preparou uma resenha de Mar de Viração a sair agora em março na Quatro Cinco Um, “a revista dos livros”. Março de 2019, que fique claro. Pode ser futuro, pode ser passado. Aí é contigo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Mar, corpo em movimento, fluxo do texto, música das palavras. Sabem? Música das palavras. São elas que falam – e isso vale igualzinho pra escrita acadêmica, tradução ou criação, porque comunicação é tudo uma coisa só: o contato e a relação. Claro que processos de edição são distintos, e são distintos os registros e formalismos textuais de cada um, mas vamos lá! Ninguém atura dureza da fala, atura? Eu, pelo menos, nunca.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrita é só uma parte do processo. Prestar atenção e ouvir, o processo todo. Ontem mesmo limpei a casa. Me vieram ganchos que não vieram antes, sentado em frente ao teclado. É a vida, não é? A vida é que é lida diária, e não adianta ficar no desespero e desesperança de querer puxar trabalho pela orelha. Se for criativo, respira que encontra. De resto, se for trabalho trabalho, sociológico capitalista, é trabalho: tu concordou em fazer? Assumiu a feitura? Tem prazo? Então senta a bunda na cadeira, vai lá e faça. Diligência e dedicação, como minhas mestras budistas sempre fizeram questão de frisar, entre um esculacho e outro quando de nossas faltas de diligência e dedicação. AGORA – caixa alta pra efeito dramático, não pra me pegar no pulo, dessa vez – que o trabalho capitalista acabe logo, porque ninguém tem saco de viver nessa linha de montagem de nós mesmos. A atividade sim. O trabalho, daí depende.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisões acadêmicas são mais sérias, então reviso conforme faço, releio e ajeito, mando pra uma ou outra pessoa boa interlocutora – tenho algumas, graçasadeus, (um salve a Raquel Hoffmann, um salve a Marcia Heloisa) – e deixo decantar enquanto escrevo a sequência, o próximo capítulo, o outro artigo. Depois, se necessário, releio e re-reviso. Orientadores são dos nossos últimos revisores, nesse aspecto: se os convenceu, vencedor está.
Revisões de literatura, criação própria, digamos assim, é mais ao sabor do tempo. Às vezes um verso bom na hora de ser escrito nem era verso bom quando a gente relê depois. Às vezes uma imagem, uma elaboração narrativa, uma imagem que fecha um conto parecia genial e, anos depois, na leitura, tu pensa: mas que merda, ahn? Não faz nem sentido, isso aqui. Como é que o povo gostou? Daí a gente vai lá e muda. Camadas. Tempo, escrita, todo aprendizado é mais ou menos assim, não é? Tempo sobre tempo sobreposto.
Tradução segue uma mistura dos dois estilos acima: lê e relê feito um condenado enquanto faz a pesquisa entre dicionários, mas não relê tanto a ponto de atravancar – nunca atravanque, minha gente; quem empaca é burro, e mesmo assim ele só empaca quando tem um humano desnecessário puxando o coitado – e vai seguindo, e ouvindo o texto original, achando vozes possíveis ao texto traduzido. Depois manda pra editora, e eles lá que re-re-revisem. Às vezes a revisão de lá vem bater de novo aqui e fala “ei, e esse verso, que tal se fosse aquele?”, aí a gente: mas rapaz, não é que é muito melhor mesmo? Outros olhos e ouvidos sempre veem coisas que não ouvimos sempre.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Computador, direto. Rascunho é só pra anotação, ideia/verso/valsa que venha assim no vento, sabe? Se bem que, hoje, com celular no bolso e isso tudo, dá pra anotar digitalmente que já facilita um bocado. Em campo, por exemplo, na aldeia, muita anotação foi feita escondidamente, mandando um email pra mim mesmo enquanto conversava com um ancião do povo, ou com o pajé, e não ia sempre sacar um bloco de papel e pôr-me a grafar-lhes as sábias palavras para meu compêndio de alvissareiras descobertas científicas, sabe? A gente tem que lidar com gente como lida com a gente mesmo, sem tratar como fosse experimento. Vale pra pesquisa que se faça na intenção da literatura, também. Vida é tudo vida.
Agora, não posso deixar de notar a curiosidade da pergunta: a escrita é tecnologia! Papel é, o lápis ou a caneta com os quais daria pra escrever a mão, é tudo cultura, é tudo tecnologia. Até o pensamento, elaborativo, argumentativo, indo e reindo nas continuidades e rupturas da tradição, é tudo uma tecnologia só. Ou magia. Depende do teu entendimento de como aquilo funciona. Lembram das palavras de poder, palavras mágicas? Tudo tecnologia, técnica, ciência de lidar com o mundo. Mas me alongo…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Pé em Deus e fé na tábua, ou pé na estrada e samba no pé. Ou… E…
Lembra daquela carta poemática do Leminski pro pentelho do Bonvicino? Em que o Leminski diz:
“pare de se lamentar
como uma velha carpideira siciliana
esse teu medo de ter secado tua fonte de poesia
é apenas para nos deixar preocupados
eu já te disse
PARA SER POETA
TEM QUE SER MAIS QUE POETA
v. tem que ser um monte de outras coisas mais
senão daonde?
v. vai acabar fazendo literatura de literatura
v. tem que esculhambar mais
pintar mais por fora das molduras
EXISTENCIALMENTE
esculhambe-se vire-se altere dê alteração
considere a possibilidade de ir pro japão
rejeite o projeto de felicidade
q a sociedade te propõe
eu sei
v. é paulista
mas ser paulista não é tudo”
Lembra? Pois devia. Lembrar todo santo dia, porque é bem isso: ser paulista não é tudo – e, veja bem, sou paulista também, o que não necessariamente é motivo de orgulho, mas pode ser. Vai pro Japão, seja a terra do sol nascente ou a padaria que tem no bairro dos meus sogros, ali em Natal-RN. Tanto faz. A verdade está lá fora, já dizia o FBI.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria: Erre tudo de novo. Passe por essa fase kerouaquiana, escreve tudo assim como se fosse mesmo uma viagem de jazz e cansaço na boleia de um descapotável desde são francisco até o oregão e vai seguindo mesmo que te pareça necessário num momento ou outro a ajuda do dicionário ou de uma pontuação ponto e vírgula ponto final não que final só na morte e mesmo assim mesmo assim tem epitáfio. Passe por isso, pegue carona, escreva, leia leia leia, aprenda a meditar em mosteiros chineses, medite, desmedite, estude, desestude, descanse, canse-se feito um desgraçado, vai preparando a vida com o lastro que a vida te permitir. E, em dado momento, quebre. Não intencionalmente, não, mas permita-se cair feito uma jaca. Espatife e preste atenção, a partir de toda a vida que viveu até ali, naquela queda e naquele chão. A vida e a quebra vão acompanhar o entendimento do mundo, dali em diante, o processo de escrita, a criatividade, a sensibilidade, a impaciência com o desnecessário, vão te ensinar a importância da disciplina, da dedicação, de ter intenção e o coração contrito em Deus, como diriam meus amigos índios Tuxá, da beirada do São Francisco… E digo isso como budista, ateu que sou: leve o coração contrito, acalme, aprenda a acalmar, perca as estribeiras mas não taque fogo nelas. O que muda ao longo dos anos é isso, acho: olhamos pra trás e enxergamos estribeiras largadas, e lamentamos um pouquinho os momentos em que as queimamos no passado.
Erre tudo de novo. Mesmo que erre diferente. Não tem nada nesse mundo que façamos melhor que errar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos, mas aqui vai um que responde às duas perguntas: uma coleção antológica de literatura/arte verbal/contação de história/poética-e-narrativa indígena do Nordeste, região em que vivo há muitos anos, e onde estão os povos indígenas com quem tenho me envolvido diretamente, tanto pela tese quanto pelas amizades que se constroem ao longo da construção. É projeto que anda na beirada de acontecer, e eu gostaria de poder lê-lo, e dá-lo a ler. Lereô. Salve.