Leandro Duarte Rust é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso.
Como você começa seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou um sujeito afeito à rotina. Ela quase sempre surte um efeito tranquilizador, pacificador, ancorando os desassossegos e amenizando as inquietações. Efeito que valorizo mais e mais à medida em que o mundo parece crescentemente atormentado pelo instantâneo, assombrado pelo urgente. E diria que esse efeito da rotina me é especialmente valioso pela manhã. Iniciar o dia é um processo, talvez mesmo um pequeno ritual – dificilmente apenas “um momento”, um horário bem demarcado. A razão é simples: sou notívago. Geralmente, minha “manhã” se inicia após as 11h – e por “geralmente” quero dizer quando a rotina da universidade permite, ou seja, tais ocasiões têm decrescido, escasseado. Acordo bem-disposto, energizado, encaro as horas que virão com olhar benfazejo e generoso, mas minha imersão no dia ocorre num tempo próprio, um compasso cadenciado, uma acomodação sem pressa. Como resultado, raramente começo o dia escrevendo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor ou em períodos concentrados? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Embora os compromissos acadêmicos me levem a escrever algo todo dia – além do material para as aulas, há sempre ofícios, pareceres, avaliações, relatórios, enfim, há sempre essa maçada pesada a que chamamos de “trabalho burocrático” – eu reluto em reconhecer esse empenho algo robotizado como “escrita”. É uma resposta um tanto torta, sei disso. Mas dada minha relação com a produção de um texto, esse tipo de conduta tarefeira, formatada, não parece ser da mesma natureza daquilo que conjugo como “escrever”. Então, diria que, assim sendo, eu trabalho – escrevo! – em períodos concentrados. Quanto ao ritual de preparação para escrita, acho que tenho, sim, um: antes de iniciar um texto, passo muito tempo encorpando-o mentalmente. Antes de tracejar as primeiras linhas, costumo tentar reter um pouco mais das ideias que me ocorrem em casa, na rua, nas mais diversas e prosaicas circunstâncias, seja durante a caminhada que faço todos os dias para o trabalho ou enquanto dura o lanche. Costumo andar com um bloco de anotações, no qual deposito os insights, as ideias que costumam cruzar a mente como um relâmpago, os argumentos-chave que posso arriscar mais tarde, as estratégias narrativas que parecem atraentes, as frases de efeito – comumente de um efeito passageiro… (risos) -, enfim, tudo o que me ocorre de maneira espontânea. Pode parecer um exercício pesado e incessante, exaustivo porque ininterrupto, mas não é. Não me cobro tal conduta, não a imponho a mim mesmo, não me forço a esse “engajamento mental” como se assumisse uma condição ou atendesse a uma exigência. Na realidade, ele ocorre de modo muito leve e simples. Talvez “engajamento” não seja a palavra certa. É antes um brainstorm ambulante: tento anotar os pensamentos tal como me chegam, espontaneamente, desarranjados, sem me deter em juízos imediatos sobre utilidade, consistência ou as reações que provocariam, como seriam lidos ou recebidos. Particularmente, gosto muito quando me ocorrem analogias e associações entre o tema sobre o qual estou prestes a escrever e as circunstâncias do cotidiano, as situações prosaicas: me sinto inspirado quando as ideias parecem se ligar ao mundo. Essa preparação mental não é uma espécie de procedimento ou protocolo, mas uma maneira de ficar mais atento à voz interior, mais perceptivo ao olhar sobre o mundo – mais introspectivo, quem sabe?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem alguma meta de escrita?
Meta de escrita, sem dúvida! Ela varia conforme o projeto em que estou envolvido: pode ser 15 páginas por mês ou 70. Porém, ela nunca ou raramente é diária: minha medida de trabalho costuma ser mensal ou, quando não posso planejar livremente, semanal. Metas diárias me atingem de maneira terrivelmente opressora: realidade que impõe um ritmo de trabalho uniforme, repetitivo, contínuo, algo que passo a sentir como uma pressão onipresente, como uma ansiedade teimosamente alojada no peito. Costumo trabalhar de forma muito intensa, mas num ritmo diário irregular, oscilante de um dia para o outro. Geralmente a coragem para tentar vencer a página em branco surge à noite, quase sempre quando a rotina dos compromissos diários já está vencida. Minhas jornadas de escrita costumam ocorrer entre 22h e 4h. Por vezes, me vejo singrando 10h ou mesmo 12h de empenho contínuo. Mas, se no dia seguinte não escrevo nada, se sequer me sento em frente ao computador, costumo encarar essa variação com naturalidade.
Como é seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É um processo irregular, como eu disse a pouco. Não é difícil começar. Mas, passada a fase da preparação, a continuidade da escrita demanda muito empenho. Consigo manter esse empenho e até mesmo intensificá-lo por semanas a fio, desde que uma característica muito pessoal não seja desfeita: minha relação estética com a escrita. “Estética”, aqui, não é nenhuma forma de autoelogio. Não quer dizer nenhum juízo de qualidade sobre o que faço ou que considero meus textos “belos”, “sublimes” de algum modo. Nada disso. Tampouco quer dizer que me julgue um autor de talento. Aliás, uma das poucas certezas que carrego atrás da testa é que não sou um autor de talento: sou um autor muito esforçado e diligente. Consigo ser muito disciplinado e determinado. Vivencio a escrita como um voto de perseverança. Tudo que faço é resultado de seguir escrevendo e reescrevendo continuamente. Chego a passar horas ruminando um único parágrafo ou uma mesma frase. Faço, refaço, desfaço, recomeço: um modus operandi que outros olhos julgariam um desperdício de tempo – e talvez tivessem razão. Mas se ajo assim é por dois motivos. Em primeiro lugar, eu erro muito. Há sempre muitos equívocos, resíduos de digitação, frases um tanto secas e duras, além de lacunas e algumas “gralhas” voando pelo texto. Preciso revisar constantemente. Em segundo lugar, porque a escrita não me sacia quando explica, apresenta, ilustra, analisa, demonstra. Necessito de mais. Para me reter, ela precisa mobilizar minha imaginação. A tal “relação estética” quer dizer isto: tenho na escrita uma prática de percepção, um exercício de sensibilização e configuração das coisas. É assim que me movo da pesquisa para a escrita: imaginando. Articulando, por um lado, análises, parâmetros historiográficos e exigências do campo científico com, por outro, a projeção de perfil de personagens, tramas de conflitos, volteios descritivos, episódios intrigantes, detalhes capazes de emprestar cores vivas e, acima de tudo, com apelos visuais e figurativos (uma grande parte do pensamento parece ganhar desenvoltura como analogias, metáforas e outras figuras de linguagem). Com isso, escrevo tentando perceber “informações”, “dados” e “aporias” como movimentos, cadência, ritmo, fluidez. Passo muito tempo empenhado em tentar criar meandros narrativos, sobretudo como temporalidades: começo o texto com a narrativa de tempo linear? Onde interrompê-la, onde “quebrá-la”? Farei movimentos narrativos circulares? Será que alternar diferentes tempos num mesmo texto pode instigar o leitor? Será que pode criar expectativa ou mesmo um suspense convidativo? Me faço essas perguntas o tempo todo enquanto escrevo. Ao invés de me saturarem, de sobrecarregarem a mente, elas me estimulam, me provocam, me instigam.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa é uma pergunta e tanto! Talvez a mais íntima de todas!… (risos). Permita-me um passo de cada vez. Quanto à procrastinação, tento estabelecer um limite: não fujo dela, nem ela me persegue; quando nos encontramos, tentamos nos entender. Não se pode deixar cair inteiramente nas garras dela. Afinal, há sempre o torniquete do calendário em volta do espírito: prazos, compromissos, limites, obrigações. Contudo, por outro lado, não penso que se pode transformá-la em falha vergonhosa, em erro repugnante. Sem meias palavras: sim, faço concessões à procrastinação. E acho que essa concessão é já o primeiro passo para superá-la. Me parece que um componente fundamental é não ver a procrastinação como a mancha de uma culpa, uma prova de descompromisso ou de irresponsabilidade. Acontece. Por vezes a mente e o corpo precisam prometer algo para amanhã, precisam delegar a responsabilidade para o futuro. Entretanto, quase sempre é a culpa que transforma esse mesmo futuro em um peso-pesado sabotador. Para lidar com a procrastinação, tento exercitar certa disciplina mental, inspirada em autoconhecimento, mas penso que procrastinar é um problema grave quando vivemos o tempo como algoz, como carrasco. Talvez, me ajude nesta relação delicada o fato de que projetos longos não me incomodam ou angustiam: ao contrário! Gosto de trabalhar na latitude dos anos, me agrada uma espera que pode se tornar paciente, comedida, vagarosa. Fico com a sensação de poder respirar, de que não preciso me colocar na posição perturbadora e quixotesca de tentar deixar a vida em suspenso para escrever, como se tivesse que desligar todo o resto para ligar a capacidade de pensar um texto. Projetos a longo prazo me dão a sensação de uma jornada arejada. Por fim, vamos ao medo de não corresponder às expectativas. Bom, antes de mais nada, admito: isso já me aterrorizou bastante. E a maneira com que eu lidava com ele era aquela para a qual a academia tanto nos treina, aquela saída para a qual a universidade mais nos capacita: despersonalizando minha escrita. Eu exorcizava esse medo escudando-me atrás de uma linhagem com perfil formalista, frio e distanciado; da narrativa de um observador distante e bem estribado com notas de rodapé robustas; apinhado de citações plenas em autoridade historiográfica e um fraseado preferencialmente multilíngue: o cânone institucional da escrita da história padroniza nossos textos e, com isso, cria uma previsibilidade conformada, uma receptividade domada, enfim, uma “zona de leitura segura”: onde passamos a esperar menos ruído, menos estranhamento, já que somos todos mais similares, uniformizados, invariáveis, intercambiáveis. A escrita institucionalizada adestra nossas expectativas como público: e quando já estamos domesticados como leitores nos tornamos escritores menos autorais, mais previsíveis e constantes, já que menos expostos ao inesperado, ao diversificado, ao heterogêneo. Durante muito tempo combati esse medo desta maneira: tentando me colocar o mais longe possível das expectativas, negando-as ao me adequar ao máximo ao “lugar institucional” da escrita, a esse tipo de texto para iniciados, cifrado por convenções e regras do ofício, comprometido mais com a técnica do que o leitor. Nos últimos anos tenho tentado me dar mais voz, assumir-me plenamente ao escrever, ser mais fiel a mim mesmo, a minhas potencialidades e a meus nem-um-pouco-desprezíveis riscos e erros. Sem dúvida, as chances de não corresponder às expectativas aumentaram muito. Mas o medo retrocedeu. Ao menos se tornou parte de mim: não um vulto maior do que eu.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sinceramente não sei quantas vezes reviso meus textos. Especialmente os livros, que costumo passar meses lendo e relendo. Como estou ciente de que sou um autor empenhado, ou antes, de que me torno autor através do empenho, nunca subestimo o quanto meus textos dependem desse traço: eu preciso ver e rever inúmeras vezes para corrigir erros, amenizar passagens, explicitar pressupostos, ampliar o caráter compreensivo das frases, desfazer trechos confusos e, sobretudo, cortar. Para mim, a principal atividade de revisão é subtrair, diminuir: é extrair passagens, remover páginas inteiras, retirar seções supérfluas para o argumento ou que povoam o texto como algo que diga mais respeito a mim do que ao que estou dizendo. Geralmente, as 20 páginas publicadas como um artigo eram, na primeira versão completa, 30 ou mesmo 35. Outro exemplo. No livro que acabo de escrever, “Bispos Guerreiros”, as 274 páginas enviadas para a editora são o resultado de uma revisão – que se alongou por meses – e que diminuiu a primeira versão da obra, que contava 370 páginas. Nesse processo, a opinião de outras pessoas é fundamental: sempre peço a leitura de outros. Para ser mais exato, de um grupo de pessoas. Tento formar o grupo mais heterogêneo possível. Mas todos a quem peço a ajuda gentil e crucial, são escolhidos com base num critério em tudo decisivo: recorro somente àqueles de quem espero uma crítica franca e limpa, honesta e explícita, sem “subtextos” ou interesses de outra natureza. Em suma, confiança é o critério que norteia o pedido de leituras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador: exceto o material que acumulo durante a fase de preparação, as anotações. Mas o processo de escrita, em si, transcorre todo em frente à tela brilhante e em meio ao som das pequenas marteladas dos dedos sobre o teclado – efeito de quem aprendeu a digitar tarde, com 17 anos, sem naturalidade alguma. Descontadas a falta de traquejo que amiúde surge entre pessoas que, como eu, pertencem à última geração que cresceu sem internet e redes sociais, acredito que minha relação com a tecnologia pode ser considerada bem-sucedida… (risos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Dependo muito de alguns hábitos criativos. Além daquele que já mencionei, sobre o brainstorm que precede cada escrita, outro me é muito importante: manter uma rotina mínima de leituras diversas. Poucas coisas afetam mais minha capacidade de escrever ou de começar um texto do que me ver tomado exclusivamente por leituras monotemáticas. Embora eu trabalhe – e seja muito feliz trabalhando – com história medieval, poucas ocasiões me são tão sentidas e angustiantes, chegando a me abater tanto como aquelas semanas em que me vejo às voltas tão somente com autores e livros sobre o medievo. É uma sensação de ter a mente envelopada por alguma forma de “corporativismo intelectual”. Isto acinzenta meu humor. Quando se trata da escrita, eu tenho tanto mais alma quanto sou capaz de ler sobre temas que parecem – e são! – muito distantes de meus objetos de pesquisa ou dos temas das aulas. Esse é um hábito imprescindível: café e leituras diversas, desconectadas, soltas, desobrigadas umas em relação às outras. Ontem uma obra sobre consumo de drogas no Terceiro Reich, hoje um livro de etologia, amanhã… quem sabe? Sou inteiramente dependente dessas pequenas injeções de liberdade intelectual.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita da sua tese?
Sem sombra de dúvida, a principal mudança ao longo dos últimos anos foi assumir minha relação estética com o texto. Isso faz me sentir mais autoral; as palavras me parecem mais próximas, mais pessoais, mais amigáveis, menos “adversárias”: a escrita se tornou um elo que construo com o mundo, deixando de me provocar aquela sensação que tantas vezes sentimos ao escrever um trabalho, um artigo ou mesmo a dissertação e a tese: a de que escrever é um comando que nos atinge de fora. Tento escrever textos que não apenas façam sentido, mas que façam sentido como meu olhar sobre o mundo, simultaneamente como perspectiva e paisagem, como minha percepção e como um cuidado com outro; como compromisso com a seriedade e como tentativa de cativar; como a voz que se torna ainda mais minha na medida em que é ouvida e ouvida com disposição. Quanto ao Leandro que há dez anos mergulhava na escrita da tese, eu diria: “rapaz, beba menos Coca-Cola e seu estômago agradecerá!” (risos). Não teria o que dizer a mim mesmo naquelas circunstâncias: tudo o que fiz, exatamente como fiz, foi um aprendizado válido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Olha, simplesmente não tenho resposta para a segunda pergunta. Já a respeito da primeira, a palavra está estalando na minha garganta: biografia! Um dia – oxalá! – vou me arriscar a escrever uma.