Léa Silveira é professora de filosofia na Universidade Federal de Lavras.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Uma das primeiras coisas que faço ao despertar é ler notícias, matérias de jornal, posts de amigos no facebook, ainda na cama. É uma forma de acordar. Para mim, faz algum tempo, acordar tornou-se um processo lento, demora que é favorecida pelo fato peculiar de que preciso tomar um medicamento e então esperar meia hora até o café da manhã. Esse fator completamente externo ao registro intelectual passou a estar cotidianamente articulado a ele e, por isso, não podia deixar de fazer parte dessa resposta. O tempinho de leitura ao acordar foi a minha forma de responder à imposição do medicamento. Esse hábito às vezes é bom porque me coloca em conexão com ideias interessantes logo na primeira hora do dia. Ultimamente, todavia, ele tem sido difícil devido ao volume de notícias pesadas que vem caracterizando esse ano de 2019. De toda forma, é um hábito que me coloca no mundo para começar o dia, e isso é algo de que sinto bastante necessidade. Fora isso, as minhas manhãs costumam ser períodos de recuperação. Dou aula à noite. Vivo o processo de dar aula como algo muito exigente no sentido de que a intensidade da fala implica, para mim, um investimento de energia corporal. Então, minhas manhãs costumam ser períodos de reposição dessa energia. Isso envolve descansar um pouco, comer devagar e depois fazer algum exercício físico. As manhãs são também períodos que gosto de reservar para a realização de tarefas domésticas. Mas isso tudo é quebrado se eu estiver escrevendo alguma coisa. Porque, nesse caso, o que faço é tomar um dia em que não seja preciso dar aula e me concentrar, muitas vezes atravessando a noite. Para mim, a escrita tem a sua hora de vir. Essa hora tem que ser alimentada por mim, mas ela também tem uma certa autonomia. Quando isso acontece, detesto parar porque sinto que algo está se movimentando e que quero acompanhar aquilo até o fim. Nessas ocasiões só paro quando as pálpebras caem. (risos) Fica tudo de pernas para o ar. A rotina foi embora, mas o texto saiu. Ou pelo menos parte dele. Aí levo um tempo para restabelecer o ritmo do dia-a-dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Consigo escrever mais a partir do meio da tarde e entrando pela noite. Aqui a rotina retroage sobre a preferência por horários. Porque tive que organizar minha vida de modo a trabalhar mais à noite. Não tenho ritual a não ser sentar-me à mesa do meu escritório com livros espalhados ao lado do teclado e um dos meus gatos no colo. Eles me ajudam bastante! (risos).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como indiquei na primeira resposta, escrevo em períodos concentrados. A meta diária não funciona para mim basicamente por dois motivos, um de ordem subjetiva outro de ordem prática. O motivo de ordem prática é que minha capacidade de trabalho é consumida no dia a dia com diversas outras atividades: preparação de aulas, reuniões e, principalmente, leituras. Então, tem isso: a organização do meu dia de trabalho não é compatível com o estabelecimento de metas diárias de escrita. Imagino que essa seja, em geral, a situação do professor universitário no Brasil. Mas acredito que hoje a meta diária não seria viável para mim mesmo na ausência desse impedimento prático. Isso porque, uma vez visualizado o caminho do argumento e reunidas as condições para a concentração, a escrita exige de mim um investimento do tipo “corredora de fundo”. Preciso me concentrar, ver a coisa se articulando passo a passo e isso exige tempo, intensidade, condensação. Sinto que entro numa espécie de universo paralelo em que palavras, frases e pedaços de argumentos disputam um lugar ao sol. A escrita exige que eu me desconecte bastante da realidade sensível imediata para dar atenção a esse drama invisível. Não tem nada de tranquilo aí. É algo passional. Envolve amor e ódio. E tanto mais porque trabalho temas que me implicam intimamente. Às vezes isso chega a ser exasperante. Tenho que ter cuidado com isso. Como toda paixão, cansa, esgota e desgasta ao mesmo tempo em que exibe intensamente o sentimento de estar viva. Não dá para fazer isso todos os dias, não.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita alterou-se enormemente depois que terminei a tese. Durante a escrita da tese, eu seguia um método muito rigoroso e exaustivo. Como já tinha feito o mestrado e a tese dava continuidade à temática da dissertação, eu sabia de modo aproximado quais os tópicos que deveria abordar para tentar dar conta da proposta e também sabia qual era a bibliografia primária que precisaria percorrer. Foi uma tese sobre Lacan, o que é importante de eu dizer aqui porque Lacan produziu dois tipos de coisas bem distintas entre si: os escritos e os seminários. Os escritos eu fichava minuciosamente; os seminários eu lia buscando os movimentos de raciocínio que me permitiriam enxergar como o pensamento do autor ia se desdobrando sobre cada tópico eleito e sobre a relação deles entre si. Então eu tinha um arquivo doc para cada tópico, que eu enchia de citações e anotações. E tinha um fichamento de cada um dos escritos que precisaria trabalhar (em papel, com canetas coloridas), um fichamento que vinha acompanhado de minhas questões e de tentativas de reapresentar o texto para mim mesma. A tese saiu disso. Conforme esse material foi crescendo, um determinado percurso argumentativo foi se tornando claro. Em alguns momentos recorri a um gravador e foi ótimo também. Acho que funcionou, mas foi algo extremamente obsessivo. Hoje não trabalho mais assim. Ainda faço análises de textos e muitos fichamentos. Acho que isso é a base. Mas me permito mais liberdade para transitar entre coisas e menos subserviência à fantasia obsessiva, que no entanto parece convir a teses de doutorado.
O começo da escrita é mesmo um momento meio imponderável. O que eu faço e que costuma dar certo é apresentar a questão para mim mesma como se a estivesse apresentando para outra pessoa. Sempre dou essa dica para meus alunos. Claro, pode ser que não valha para todo mundo, que outras pessoas disparem o processo de escrita de outro modo. Mas acho que vale a pena tentar. A partir dessa apresentação inicial, os diversos problemas vão se desdobrando. Pode ser uma formulação bem incipiente, que cumpra apenas a função de começar alguma coisa. Depois ela pode ser reformulada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu insisto. (risos) Para mim, a melhor forma de lidar com a página em branco é escrever. Parece uma bobagem se dito desse modo, mas vou tentar explicar. O que preciso fazer é escrever qualquer coisa à luz do argumento que quero apresentar. Depois, parte disso vai embora no “delete” sem piedade. Mas terá cumprido sua função que foi a de romper aquele momento em que o texto ainda não é texto. Alguma coisa o texto já era porque só passo a escrever se tenho um argumento ou ao menos um esboço dele. Mas esse argumento, diante da tela em branco, manifesta-se como confusão mental. Então preciso colocá-lo à obra, para que ganhe vida comigo e para além de mim. Quero dizer: as palavras têm uma vida própria, não é? Um negócio que a gente tenta capturar para então se responsabilizar por aquilo. Mas não padeço da pretensão de achar que domino ou controlo tudo o que vai acontecendo com as palavras na medida em que escrevo. Para mim, isso é patente. É uma coisa que vejo, apesar dela ser invisível. Essa frase que acabo de redigir é, aliás, um exemplo disso. Ela acabou ficando assim, embora não estivesse claro para mim que a frase teria essa forma antes de efetivamente sair. Veja: estou dizendo coisas esquisitas… Mas está bem. Acho que é assim mesmo! O texto depende de sua autora. Mas essa forma de depender da autora é também uma forma de autonomia. Porque há toda uma dimensão em que somos tomadas pelo vir-a-ser do texto. Assim como há toda uma outra dimensão em que se trata de nos apossarmos disso, lapidar, burilar, tecer caminhos. Então, o que faço para colocar o argumento esboçado em obra? Escrever qualquer coisa que se acomode ao escopo dele e então trabalhar insistentemente com isso, trazendo fragmentos de ideias, citações, roteiros, tópicos. Para mim não vale só a inspiração nem só o trabalho árduo. Tem que ser uma relação entre as duas coisas. Algo que vai se atualizando e se renovando a cada página preenchida.
Na verdade, não tenho muito problema com procrastinação. Acho que é porque sofro de pavor de deadline. Já ouvi muita gente dizer que produz mais quando o prazo se aproxima. Isso não funciona para mim. Fico extremamente ansiosa e entro numa paralisia. E aí não adianta insistir em nada. Como sei disso, evito ao máximo que o prazo se torne assombração. Isso envolve também situações em que preciso recusar convites que gostaria de aceitar. Hoje entendo que isso faz parte do processo todo. Outra coisa que acho que conta aqui pra mim é o fato de que a escrita e tudo em torno dela é um trabalho. Isso é uma coisa óbvia e é o caso para qualquer pesquisador. O que quero dizer é que é um pensamento que tem uma interferência positiva sobre o meu processo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso vezes incontáveis. Se tive que interromper a escrita, quando retorno a ela leio tudo de novo. Releio alguns dias depois, algumas semanas depois e também alguns meses depois. Para mim, é muito importante alhear-me do texto para então retornar a ele após havê-lo “esquecido” por algum tempo. Gosto de voltar a ele como quem volta de uma longa viagem. Naturalmente, não se retorna imune de nenhuma viagem. Os olhos mesmos se alteram. Quando a gente retorna, enxerga as coisas de outro modo. Muitas inconsistências e pontos cegos revelam-se nesse processo. Se alguma coisa é preservada, é porque vale a pena seguir. Uma coisa que acontece com frequência é um rascunho me encaminhar para novas leituras. Vai ficando claro que, para atravessar bem um determinado ponto, preciso ler ainda isso e aquilo. Então, isso se torna uma etapa nova, a partir da qual estendo o texto e procedo a mais revisões do que havia escrito.
Mostro meus textos para várias pessoas: colegas, amigos, alunos, marido, irmãs. Perturbo muita gente. Para uma pesquisadora, a interlocução é uma coisa preciosa, vital, que a gente tem que cultivar e agradecer por todas as ocasiões em que ela se torna verdadeiramente possível.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho escrito no computador. Todos os rascunhos e também a versão final. Acho incrível poder enviar cada rascunho para o e-mail e ter aquilo disponível ali. Mas gosto muito de papel e caneta para fazer fichamentos e anotações.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Hoje minhas ideias vêm sobretudo de conversas com outras pessoas. Sou muito dependente disso intelectualmente. E, para tanto, conto com amigos bastante generosos, pessoas que admiro. Gozo também de certos privilégios familiares. Tenho uma interlocução intensa com meu marido, o João, que também é professor de filosofia. Essa troca é uma parte importante do nosso relacionamento. Minhas irmãs também têm um papel especial aqui. A Lia é psicanalista e a Fillipa também é professora de filosofia. Regozijo-me bastante desse sintoma de ser a irmã do meio que trabalha exatamente com filosofia da psicanálise. (risos) Faz parte do nosso romance familiar. Todas as trocas intelectuais que atravessam essas relações são favorecidas pela intimidade e pelo sentimento de estar muito à vontade para explorar milhares de aspectos de um mesmo assunto.
A leitura é também, naturalmente, uma fonte constante de ideias. Aqui é onde mais preciso me forçar a ter disciplina. Porque minha tendência é juntar uma pilha de livros e ficar passando de um para outro de um modo meio frenético. Preciso exigir de mim mesma foco com isso.
Algumas vezes, tive a oportunidade de testar argumentos em sala de aula. É raro encontrar a ocasião em que o contexto permite fazer isso: levar para a aula exatamente o assunto sobre o qual estou escrevendo. Mas quando isso acontece o processo é riquíssimo porque aí os alunos me ajudam também.
Grupos de estudo e participação em eventos acadêmicos também são fundamentais para atiçar a construção de novos argumentos. Procuro me organizar para investir nisso o mais que posso.
Outra coisa que tem funcionado pra mim é ler textos de alguém que pense de maneira bem diferente da minha e, de preferência, que pense de maneira contrária. Essa foi uma dica de um grande mestre, o Prof. Bento Prado Jr. Apropriei-me um bocado disso. No momento, por exemplo, estou lendo (até onde dá!) Camille Paglia exatamente porque ela se desloca em um terreno contrário a tudo o que quero pensar. Creio que as tentativas de contra-argumentar são um excelente recurso para deixar o próprio pensamento mais claro e melhor construído.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Um pouco disso, acho que já respondi nas questões anteriores. Mas acrescento o seguinte. Quero crer que hoje me permito desenvolvimentos mais ensaísticos e que meu amadurecimento no processo de escrita tenha passado por aí. É claro que aquilo que a gente chama de “trabalho de formiguinha” é indispensável. Ler mais de uma vez, anotar, fazer fichamentos, isso tudo faz parte de uma espécie de matéria bruta do trabalho. Tornar isso algo que se construa como uma argumentação e que se insinue como movimentos de pensamento, exige, no entanto, dar passos para além das análises meticulosas dos textos com os quais trabalhamos. Ocorre que esses passos a gente só dá com as análises meticulosas. Bom, pelo menos é o que penso que vale para mim. Algo assim: com elas, para além delas.
Com relação aos primeiros textos, gosto de pensar que fiz o que tinha de fazer: ler, estudar, discutir com amigos, escrever com eles. No entanto, com relação à escrita da dissertação e da tese, eu certamente diria: “Léa, isso não precisa ser tão solitário!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever sobre uma interlocução possível entre os destinos do argumento do sonho na história da filosofia (especialmente Descartes e Wittgenstein) e as teses que Freud elabora na “Interpretação dos sonhos”. Seria algo como: o que acontece com o argumento do sonho diante da hipótese do inconsciente? Acho que dá jogo, mas não consegui ainda enxergar qual é o jogo que dá. Na verdade, escrevi alguma coisa sobre isso há mais de dez anos. Mas foi muito incipiente, tateante. Tão tateante que sequer considero começado. Por algum motivo que não está claro para mim, não voltei a esse projeto ainda.
Gostaria de ler um livro que providenciasse uma leitura da psicanálise que não implicasse o estabelecimento de uma equivalência entre cultura e masculinidade. Há muitas obras que tecem questionamentos em torno disso, mas todas elas – ao menos aquelas que conheço – acabam reiterando a equivalência. Fazem isso com mais ou com menos malabarismos retóricos e teóricos, mas reproduzem a famigerada equivalência que considero ser preciso recusar. Essa equivalência está profundamente enraizada nos aspectos patriarcais do pensamento de Freud e sua expressão mais contundente é a obra “Totem e tabu”, publicada em 1913. Tenho me perguntado bastante se a psicanálise é possível sem isso. Tendo a pensar que sim. Inclusive porque Freud mesmo foi alguém capaz de pensar também contra o seu próprio patriarcalismo. É uma questão com a qual tenho tentado trabalhar.