Laura Castro é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Varia bastante. Dependo dos compromissos domésticos, do cuidado com meu filho. Em geral, tomo café da manhã e vou checar e-mails, encaminhar trabalhos e atividades afins. Quando estou no auge da minha disciplina, acordo, faço suco verde, medito e faço ioga pra começar o dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Também varia muito. Há momentos em que meu melhor momento é pela manhã. Sobretudo quando é um texto difícil, aquele não sai e precisa sair. De manhã estou com a cabeça mais livre e fluo melhor. Me afundo no texto e as horas passam sem que se perceba. Até que chega a hora de ir fazer almoço! Desde que meu filho nasceu, minha escrita é o tempo todo mediada e margeada por sua presença e a convocação dele da minha. Em geral gosto de estar mais isolada, em algum canto da casa. Eu trabalho em geral com muita música rolando. Mas quando o texto pede, acontece de precisar de um silêncio total. Nessas horas, às vezes, preciso também falar o texto enquanto escrevo. Digito falando, falo digitando. Um movimento meio performado. Gosto de escrever na madrugada também. Em geral são textos mais apaixonados, mais epifânicos, mais em fluxo. Esses, em geral, sempre passam por um revisão de manhã cedo. Mas às vezes preciso também reduzir a revisão e manter o texto quente, assim, do jeito que veio. Gosto disso também.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não. Nunca tive meta. Às vezes, quando estou fazendo um livro, trabalho com alguns prazos e tenho mais rotina, mas é um momento em que já estou elaborando em cima de um texto mais ou menos pronto. Pra mim primeiro vem o texto, depois o livro materializando esse texto. E quando o livro ganha corpo, esse texto também se estilhaça nas diagramações e disposições diversas da materialidade do livro. A minha produção de escrita está muito associada ao meu ser no mundo. Às vezes estou mais verborrágica, escrevo nos cadernos, nas paredes, na mesa, na agenda… tenho vontade de sair escrevendo pelos muros do país, como aquela música do Belchior, um dos meus poetas preferidos. Em geral quando caminho, me movo de lugar, quando estou ativada pela rua, pelo encontro com outras pessoas, quando estou engajada em processos criativos em diferentes linguagens… tudo isso pulsa na minha escrita, que é minha principal pulsão no mundo. Mas de vez em quando o silêncio me procura e eu dou lugar. Daí gosto de ouvir. Canções, sobretudo, mas procuro também, anarquicamente, abrir livros ao acaso, ler textos,passear por outras vozes, tatear grafias. Em geral gosto de sublinhar livros, curto o grifo como se fosse uma forma de escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As notas são sementes, né? Brotam! Gosto sempre de fazer um “frankstein” da pesquisa: frases, palavras, imagens que me fisgaram, vou criando isso livremente. A partir daí vou sendo mais uma costureira do meu próprio texto. É essa a sensação: ir costurando ideias, ligando retalho com retalho e daí ver brotar caminhos, direções… como se fosse surgindo um jeito de dizer o que quero dizer. Acontece também de descobrir isso depois, na ação mesma da escrita vai se descortinando o que eu verdadeiramente quero comunicar, ali, no texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ás vezes invento umas estratégias para me salvar de mim mesma: da desmotivação, da procrastinação. Às vezes compro cadernos novos, às vezes faço listas com palavras-chave em papéis enormes dispostos pela casa escritos em letras garrafais, mas quase sempre o que dá mais certo é começar. Sabe abrir o documento no word, por exemplo, dar um título, salvar em alguma pasta? Isso vai me dando um alívio. Ás vezes começo uns textos horrorosos, mas começo. E a partir daí, da incessante reescrita, vai aparecendo algo que fico mais satisfeita. Isso vai me dando mais tranquilidade e vou me soltando da paralisa causada pelo medo ou pela própria ansiedade. Geralmente é assim que acontece com textos mais difíceis.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, exceto quando o texto vem e eu já acho ele pronto, quando acho um crime mexer. Acho corajosa também a não revisão quando estou escrevendo literatura. No entanto, gosto muito da reescrita. Gosto de ir ruminando o texto. Cada vez que releio parece que vou me aproximando do que quero pra ele. Reescrevo bastante, em geral. Não costumo mostrar pra ninguém pessoalmente, exceto quando publico nas redes sociais. Mas tenho uma mãe revisora ortográfica, então, muitas vezes ela é a primeira a me ler; o que é um privilégio. Mas temos sempre várias discordâncias nas modificações das revisões ortográficas, pois ela é bem da norma e às vezes questiona os meus desvios. É bacana mesmo assim, aprendemos juntas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O nascedouro da minha escrita são os cadernos. Digo sempre que sou uma escritora de bloquinhos. Nos diários, nas cartas, nos cadernos criei uma relação afetiva com a escrita que me acompanha até aqui. Uma coisa meio “penso logo registro”, de grafar a vida ali, no aqui e agora, no texto que me acontece. Algo como ser procurada pelas palavras, como o Manoel de Barros. Mas há mais de dez anos que tenho uma relação muito intensa com a escrita no computador. Desde 2005 escrevo em blogs e dois dos meus romances foram publicados primeiramente na rede. Como sou do diário, gosto do blog que, pra mim, é uma espécie de diário virtual, um espaço onde vai abrigando escritas aparentemente desconexas, mas que ali ganham um guarda-chuva comum. Gosto de seguir na incerteza dessa escrita que se faz a cada dia, de ir tricotando assim, sobretudo em projetos mais longos, como o romance, um pouco de cada vez e sobrevoando essa produção que se avoluma com o tempo e que na própria rede se organiza, me permitindo entrada (como as tags) além de, por outro lado, embaralhar direções, possibilitar links, etc. Antigamente fazia mais rascunhos. Hoje no computador mesmo faço eles. Uso bastante o bloco de notas do computador e do celular. Tenho vontade de usar mais o gravador, mas faço menos isso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei ao certo de onde surgem. Mas sinto, em geral, que a minha escrita surge da minha experiência, do que eu vivo e tudo eu penso a partir disso. Não tenho hábito específico para me manter criativa. Na lucidez, no desatino… o existir é o que move. Nos últimos anos tenho trabalho muito em parceria, numa rede coletiva de criação. Acho que integrar um coletivo de artistas, de certa forma, me convoca a estar pulsando mais. Os encontros, as ideias, as conversas… acho que isso contribui para a ativação do pensamento e do desejo de realizar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que tenho escrito mais no computador. Não sei o que eu diria… eu sempre fui muito envergonhada de mostrar meus textos. Sempre fui da gaveta, do armário, então eu acho que eu daria um salve pra mim mesma e diria: vai, mulher! escreve! publica! põe pra fora! não tenha medo de ser lida!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um diário guardado do meu avô, que foi um literato em uma cidade no interior da Bahia, em Ilhéus, mas que nunca publicou nenhum livro em vida. Meu avô tinha um gabinete/biblioteca, dois quartos apinhados de livro, onde muitas vezes eu e meus primos brincavam. Tenho muita lembrança de escrever na máquina de escrever dele e de usar seu papel timbrado. Esse diário, todo datilografado, é sem dúvida a maior herança que recebi até hoje. Tem muito tempo que tenho vontade de escrever algo a partir dele e cada vez mais sinto que é meu próximo projeto. Mas fica ali, guardado. Acredito muito que tem um tempo da gaveta, do armário e que um dia o que tem que vir, vem. Por isso, não costumo me desesperar muito com os guardados. Do livro que gostaria de ler e ainda não existe… Gostaria de ler os livros do meu filho. Gostaria de ler o que meu filho um dia, talvez, escreverá. Tenho muita curiosidade de assisti-lo desde a escrita, suas reflexões, seu descarrilhar pelas letras. Ele ainda está se alfabetizando e gosta mais de ler, que escrever. Não precisava ser um livro, um caderninho já valia!