Lau Siqueira é poeta.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Ano passado decidi mudar algumas coisas. Havia me aposentado a mais tempo, mas continuava trabalhando. Resolvi mudar a rotina mudando a vida. A rotina mudou. Parei de trabalhar fora e passei a me dedicar mais aos meus amores na vida. Tenho duas filhas, uma neta e um neto. Outro neto chegando. São cuidados necessários e prazeres urgentes. Nesse tempo a pandemia foi exigindo um olhar atento ao mundo e ao que despejamos sobre ele. Sempre acordei cedo. Então passei a acordar mais cedo, tipo 05:00h. Inicialmente manejo uma leve preguiça, leio por duas ou três horas. Atualmente estou lendo Aulas de Literatura, de Julio Cortázar. Faço meu café, minha tapioca ou cuscuz, como alguma fruta. Bebo água como se estivesse enchendo um açude. Essa rotina vai mudar um pouco porque decidi que nas primeiras horas do dia vou realizar minhas caminhadas para me manter longe da ferrugem. Mas basicamente é isso. Minha vida sempre foi muito simples. Gosto das coisas de casa, das lidas cotidianas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não tenho problemas com horário. Mas não gosto de escrever quando estou cansado. Quando estou cansado só gosto de descansar. Também não tenho qualquer ritual para escrita. Preciso de disponibilidade, apenas. Pode ter uma serralheria funcionando ao lado que não me incomodo. Acho que em qualquer circunstância, disponibilidade é uma questão de planejamento. O que há de rotina, na verdade é muito mais uma certa disciplina pessoal que rotina. Posso mudar tudo se quiser. Agora, por exemplo, escrever se tornou uma tarefa prioritária. Estou experimentando mais a prosa. Atualmente são 8 livros de poemas, várias antologias, mas nenhuma prosa publicada em livro. Exceto o o “Não temos hi-fi, escrito com um amigo e duas amigas, Linaldo Guedes, Letícia Palmeira e Cyelle Carmen e publicado pela Penalux. O livro é um apanhado de textos breves publicados nas redes sociais. Sei que a incursão na prosa vai me exigir um pouco mais de disciplina. Aliás, já está exigindo. Estou preparando um primeiro livro de crônicas e semanalmente escrevo para a revista Crônicas Cariocas. De lá devo extrair algo. Quase com a mesma regularidade, escrevo resenhas na Revista Mallarmargens. Também penso em selecionar alguns textos para uma publicação futura com poetas do Brasil de Portugal, Moçambique, Guiné Bissau. Escrevo para a Mallarmargens enquanto leitor. Mas ritual de preparação propriamente dito, não tenho. Nem quero ter, na verdade. Apenas sento e começo a escrever. Escrever precisa ser uma aventura. Ainda que uma aventura planejada, como dizia Décio Pignatari.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária, mas o exercício com a linguagem é permanente. Assumi o compromisso de publicar uma crônica por semana. Então faço anotações, leio, experimento. Muitas vezes isso se dá direto nas redes sociais de forma bastante despojada até. Para escrever resenhas acabo mergulhando um pouco na teoria literária, lendo duas ou três vezes o mesmo livro de poemas a ser resenhado. São livros que recebo ou mesmo autores e autoras que vou pesquisando na internet. Nas redes, principalmente, obras de autores africanos e portugueses que pretendo abordar em breve de forma mais prioritária. Essa rotina deve acelerar pois ainda pretendo escrever um romance, apesar de não ter nada planejado. Se possível começo este ano. Coloquei esse projeto de romance como meta infinita. Talvez nunca escreva. Talvez me perca na estrada. Sei que estou longe de um bom começo. Para ficar péssimo preciso melhorar muito. Tenho planos de montar um monólogo para teatro, mas aí vai ser mais fácil. Já provoquei um amigo para interpretar. Tudo dentro de um caos que prefiro não dimensionar porque não existe nada mais caótico que o tempo da poesia e não pretendo me desligar da poesia mesmo migrando clandestinamente para a prosa. A poesia permanecerá como eixo e deverá conduzir esse caos para dentro da prosa. A poesia chama a gente pra briga. É diferente. É outro papo. A poesia é felina. Vem quando quer, se encontrar água e alimento. Nessa relação o poeta é apenas a margem do rio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não estabeleci um método. Na verdade, morro de medo de estabelecer um método. Prefiro o caos. Aceitar que se estar perdido ´s sempre a melhor forma de não se perder. Morro de medo das coisas absolutas. Acho que a escrita acadêmica precisa sim de um método. Precisamos de um método para estudar, por exemplo. Mas a escrita literária é algo que nos vira do avesso. Muitas vezes quando achamos que encontramos um método, a desconstrução do método encontrado predomina e nem percebemos. Em mim a poesia predomina naturalmente. Isso requer atenção ao cerco natural do silêncio. Olhar atento para as coisas invisíveis. Pé firme na realidade. Cabeça rodopiando na ventania. Esse processo passa pela leitura até mesmo de poetas com os quais não me identifico. Não sou um leitor apenas das coisas que gosto. Releituras necessárias, a exemplo de João Cabral de Melo Neto, Drummond, Maiakovski, são permanentes. Leio muita poesia contemporânea. Leio com atenção gente jovem e talentosa. Estou muito atento às pautas identitárias que são legítimas e se tornaram uma urgência. Só vejo a literatura contemporânea dentro de uma diversidade nunca vista antes. Muiats questões em pauta. A linguagem neutra, por exemplo. Quero ler tudo e às vezes quando sobra tempo, me faltam olhos. Poesia é uma experimentação permanente e um excelente método para destruir a prosa. Essa transição a ual me refiro, requer cuidados. Escrever e apagar. Imprimir e rasgar. Escrever longos poemas e aproveitar poucos versos. Se isso é um método, vai me conduzir na prosa também.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Simplesmente não lido. Não tenho o menor medo de não corresponder às expectativas porque não escrevo para corresponder expectativa alguma. Na política literária, optei pela clandestinidade e pela luta amada e pelo foda-se. Acho que essa rebeldia faz parte de mim. As travas, na verdade, são pausas necessárias. Tenho 63 anos, acho que na literatura fiz muito menos que muita gente de 30. Todavia não me preocupo com isso. Muitas vezes cuidar da vida foi o melhor que pude e o que mais me deu prazer. As pessoas valem mais que uma carreira literária. Especialmente as pessoas que amamos. A correria pela sobrevivência me preocupa mais que a literatura. A vida passa rápido. Me preocupa não ter tempo para minhas filhas, meus amigos e amigas, meus netos e neta. Isso sim. Eles são fontes fermentadoras da minha própria vida e sem vida, não tem literatura. Não trocaria jamais uma brincadeira com meus netos, ver um filme com minha neta e filhas, pela disciplina de escrever um romance, um ensaio. Aí entra o foda-se. O tempo de viver é que é fundamental. Escrever é no tempo que sobra. Se sobrar. Se não sobrar, paciência. O tempo da vida é intransferível e o da literatura, não.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acho que um texto nunca está pronto. Ou mudamos o texto ou leitores e leitoras fazem isso por nós. Melhor não ter muito controle sobre isso. Muitas vezes, na invenção, somos salvos exatamente pelo erro. Na poesia, por exemplo, nada mais exato que a inexatidão. Mesmo um texto ou poema publicado e consagrado pela crítica e pelo público, ainda está em processo. Tem um poema meu que é bem conhecido, “Aos predadores da utopia.” Muitas vezes foi desconstruído de forma bárbara, teve o título decepado, recebeu costuras de pontuação e foi apresentado nas redes sociais como frase de Clarice Lispector. Isso rolou até em Portugal. Eu já ri muito disso. A única coisa que lamento é que as pessoas que fazem isso, provavelmente não leram Clarice. Ou leram mal. Tenho sentimento de autor que vê o leitor como um parceiro. Não sou proprietário do texto. Não acho que exista poema meu, artigo ou crônica minha. São garrafas jogadas ao mar e o conteúdo vale mais do que o rótulo. Já cometi a indecência de submeter poemas ao voto de amigos e amigas para publicar um livro. Uma democracia literária bufa. Infelizmente fui fiel. Acabei publicando coisas que hoje não publicaria e rasgando poemas que poderiam ser melhor apresentados. Acho que o autor deve assumir suas culpas. A leitura e especialmente a leitura crítica que se vire para definir as indefinições. Acho esse papo de transpiração na escrita algo um tanto arrogante. Ninguém deve ostentar lágrimas e suor. Como se estivéssemos disputando uma São Silvestre do texto. Não cabe podium na literatura.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Me tornei dependente químico. Não vivo sem essa droga digital. Não sei mais escrever sem que seja num laptop. Desaprendi a pegar numa caneta e olha que ainda sou do tempo em que ter uma caneta recarregável era uma questão de status. Um tinteiro era uma ostentação. Meu primeiro livro foi para a gráfica datilografado por mim. Eu fiz o famoso curso de datilografia. Lembro da primeira lição: A, S, D, F, G. Mas hoje, raramente faço alguma anotação manual. Aliás, penso que precisamos aprofundar essa transformação. Infelizmente escritor tem alma de pergaminho. Estamos ainda demasiadamente presos ao livro físico. Os músicos emburacaram nas plataformas digitais e nós ainda estamos engatinhando na orelha de Van Gogh do e-book. Escritor é viciado em ácaro. Uma praga. Tem dependência de lançar livro. Alguns até com coquetéis que valem uma segunda edição. Fala-se na necessidade de chegar aos jovens, mas os jovens estão é com um baita de um tablet, com um smartphone na mão e não com um livro. Acho que precisamos conversar mais sobre isso antes de reclamar que os leitores desapareceram. Nós é que desaparecemos. Vivo cercado de livros. Minha casa parece um mausoléu de palavras. E olha que vivo fazendo doações. O pior de tudo é que penso que não existe móvel mais útil que uma estante e tecnologia mais perene que um livro físico, bem editado e bem escrito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias chegam através das minhas vivências e leituras, através dos meus olhares sobre o mundo. Das imagens que vejo. Gosto de fotografia. Fotografo e escrevo sobre a foto. Geralmente nem imagino de onde chegam as ideias. Talvez da ancestralidade. Um hábito fundamental para a criação literária, sem dúvida, é a memória. A memória é o motor de arranque da imaginação. Procuro manter viva essa ideia de que ler é mais importante que escrever. Até porque a leitura sempre me dá mais prazer porque escolho o que ler. Já em relação ao texto escrito, não posso dizer o mesmo. Escrevo apenas o que consigo escrever e não o que gostaria de escrever. Mas ler é fundamental e não falo apenas dos livros. Sem boas leituras do mundo não há boa escrita. Um bom texto é droga injetada na veia, estimula. Faz o cara salivar. Mas é muito mais através da vida que conseguimos apontar para uma identidade literária, para a construção de alguma singularidade. Caso contrário seremos meros repetidores da beleza que nos atropela.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu comecei a escrever ainda menino. Não tinha consciência, sequer tinha noção de que seria um escritor. Na verdade, nunca tive pretensões com isso. Ainda hoje escrever é muito mais um exercício de vida. Um respiradouro. Para mim, ter publicado livros é um permanente espanto. Aconteceu simplesmente. Não foi fruto de um sonho, de uma vontade, de uma ambição. Eu comecei escrevendo ainda menino e continuo escrevendo e envelhecendo. Em alguns pontos mudou tudo em outros nada. Escrever poemas prolongou minha infância. Tornou-a infinita. Logicamente que o que mudou de verdade foi o fato de que o meu processo de escrita foi se incorporado na minha vida como algo permanente e foi amadurecendo naturalmente. Ainda que eu entenda que está longe, muito longe do que eu poderia considerar razoável. O texto ideal não existe. O ideal seria a morte e eu prefiro viver, apesar de tudo que a vida expele e que não me agrada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há tempos eu tinha muita vontade de publicar um livro com minha filha que é ilustradora e tinha muita vontade de fazer um livro para as primeiras leituras. Esses dois sonhos estão caminhando para a concretização. Estou preparando um livro para crianças com ilustrações da Mariana Siqueira e a Editora Casa Verde que hoje tem a posse de quase que a totalidade da minha poesia publicada, topou publicar. Assim como topou publicar meu primeiro livro de crônicas. O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, na verdade deveria ser uma surpresa como foi a leitura de Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar, Sinfonia Pastoral, do Gide e outros. Um livro que fosse me pegando de jeito e ficando na memória, muito mais pelo manejo narrativo do autor que propriamente pela história. Mas, repito, eu adoraria escrever um romance e ainda não comecei, não sei por onde começar e talvez nunca comece. Todavia, sonhar é bom. Mesmo que Belchior tenha dito que “viver é melhor que sonhar”. Sonhar abastece a vida e ajuda a caminhar.