Laryssa Frezze e Silva é escritora formada em Letras pela USP, autora de “Bertalui”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia apressada, o que é algo que quero mudar. As coisas precisam ser feitas com bastante eficiência de manhã, de modo que eu consiga conferir o material de trabalho, ou ainda organizá-lo, caso já não o tenha feito na noite anterior. Também preparo meu café da manhã e saio para trabalhar. Sou professora de linguagens em dois colégios da grande São Paulo e, normalmente, minhas aulas são as primeiras da manhã. Grande parte do meu tempo e energia são voltados para esse trabalho com a educação, que procuro fazer muito bem feito e com responsabilidade. Nesses dias, a escrita me vem em momentos de reflexão: no ônibus, ou enquanto tomo um café. E, normalmente, vem também quando estou sozinha, o que valorizo bastante.
Veja só que curioso: eu digo que “a escrita me vem”, como se fosse uma espécie de entidade. E acho que é isso mesmo, ela chegando de repente. Preciso ter sempre papel e caneta na bolsa e, se os esqueço, saio anotando as coisas em lugares aleatórios, o que é engraçado, porque às vezes vou encontrar essas anotações meses depois, ao folhear uma agenda de trabalho, ou um livro que estava lendo etc.
Nos outros dias, os que não trabalho da escola, mas de casa, tenho um pouco mais de cuidado comigo mesma, no sentido de que me permito acordar um pouco mais tarde, estudo música – que é algo que organiza minha vida – corrijo provas, lições, sei lá. Não costumo sentar para escrever, no sentido metódico da coisa, a não ser que eu tenha já um projeto em andamento, sobre o qual me debruço com tanta disciplina quanto posso, ou que me venha algo muito forte e que precisa de atenção imediata – e isso normalmente tem acontecido às terças feiras, pois é o dia de minha análise (há de se ver que há algum método nas coisas, apesar de tudo). Acho, portanto, que minha relação com a escrita tem algo a ver com o inconsciente – e eu respeito isso. Respeitaria qualquer que fosse sua característica de origem. Em minha experiência, a escrita-entidade é aquilo a que me associo, numa simbiose cheia de respeito e cuidado mútuo, para a gente poder se manifestar juntas. Ela é livre para ir e vir como quiser. Eu também.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando eu era adolescente, trabalhava melhor à noite. Esperava o silêncio e os mistérios da madrugada e escrevia. Também acho que isso acontecia, porque à noite eu tinha mais paz, no sentido de não precisar cumprir tarefas. Eram bons tempos, os de demandas específicas, poucas, passíveis de se manejar no tempo, sem atropelos. As coisas já não são mais assim, o mundo adulto, da forma como o concebemos é um tanto cruel, no sentido que nos permite muito pouco tempo para dar cabo às nossas próprias demandas, a não ser que para isso se crie uma estrutura material específica – e isso é algo que leva tempo. Não é possível, contudo, abrir mão da escrita e esperar as condições certas de temperatura e pressão, em modos de dizer, vá. O tempo é o que a gente tem e o que fazemos dele. Se não a quantidade ideal, a quantidade possível, ao menos.
Acho que, enquanto tiver uns instantes de consciência repentina, eu os dedicarei para isso, de forma que, hoje em dia, trabalho melhor na hora que tenho disponível para trabalhar. E faço o melhor dela. Não tenho um ritual específico para escrever, mas procuro me colocar num estado de espírito de abertura consciente e atenção plena, calma.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias, mas acho mais produtivo que faça isso de uma maneira não disciplinada. Com o tempo, esse livre-escrever vai se acumulando e aí acontece de eu sentir que preciso parar tudo e me dedicar só à escrita. Aí sim, são esses os momentos em que “sento para escrever”. Acho que também poderia dizer que “sinto para escrever”, pois é mesmo um sentimento, uma intuição de que aquilo precisa ser feito naquele momento. Às vezes há tempo suficiente para sair e sentar em uma cafeteria. E às vezes esse senso de urgência não resulta em nada de fôlego, mas nuns aforismos que depois vão florescer em outras coisas. Tento guardar todos os escritos não-terminados em uma caixa, mas a verdade é que eles se espalham por todos os cadernos que tenho em casa. Se tenho um projeto maior em andamento, como um romance, estabeleço metas, como “preciso dar conta desse capítulo hoje”. Nunca as cumpro no sentido de que a escrita do capítulo termina naquele momento, mas qualquer fim ao qual chego é já um progresso, pois delineia (← acho que nunca conjuguei esse verbo antes!) melhor a estória e permite o avanço.
Agora, algo que toma bastante tempo são os processos de edição. Às vezes a edição e as reescritas são mais complexas do que a escrita primeira. Por isso que digo que, mesmo que dê cabo do capítulo no momento a que me proponho a fazer isso, ainda assim, isso não é garantia de que ele esteja pronto – e via de regra não está. Reescrevo as coisas muitas vezes antes de as ter terminadas. E, quando de fato as finalizo, é porque já não há o que reescrever, achei a forma através da qual quero contar aquilo.
Com os contos chego a essa tal forma mais rápido, embora muita reescrita também esteja envolvida no processo, igualmente.
No fundo, minha meta é não perder nada do que me chega como inspiração, quer sejam poucas linhas, quer um texto inteiro. Se pude dar conta de registrar todos esses momentos no papel, então – digamos – cumpri minha meta diária. A edição é algo que será feito a seu tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Vejamos, é um processo muito cuidadoso. Às vezes falo de coisas difíceis, mas jamais quero abrir feridas e deixá-las escancaradas, numa espécie sádica de provocar o prazer das pessoas em estarem seguros em meio à ruína, porque não são eles que as vivem e, sim, os personagens. Não acho boa essa idéia de que fecha-se o livro e os personagens cessam de existir na realidade imediata das coisas. Não quero também pregar que todos os finais devem ser felizes, para evitar desconfortos, nem quero que sejam ferramentas que alcancem seus objetivos a partir de uma perturbação irresponsável. Acho que até para perturbar alguém é preciso fazer isso com responsabilidade.
Muitas vezes, digamos, não sou eu exatamente que conto as estórias, mas os personagens caminham para elas e através delas, a partir de suas ações e das consequências das mesmas. É seguro dizer, portanto, que evito ser leviana; procuro pensar muito na construção do estado de espírito que advirá da leitura de meus textos. E, no começo isso é mais difícil, porque não tenho clareza de quem os personagens são, nem se é que têm qualquer propósito que não seja a própria existência. Não os conheço.Acho que tateio um pouco antes da coisa deslanchar.
Às vezes, portanto, é difícil começar, sim. Mas o começo é algo inevitável e também completamente modificável, de modo que o melhor é sempre começar, mesmo que não se tenha certeza. Em minha experiência, pesquisa e escrita não ocorrem de maneira completamente separada, mas sim concomitantemente. Via de regra (estou agora pensando sobre isso) escolho poucas fontes de pesquisa e vou lendo (imagens, textos escritos, textos sonoros, filmes) e registrando impressões, ideias. Vou fazendo isso enquanto leio e, quando acabo de experienciar aquelas fontes, não busco outras, se não achar que devo. Dou-me essa liberdade, afinal, não se trata de um trabalho científico, em que as fontes precisam ser esgotadas. Tento criar algo com aquilo que já está ali. Se outras fontes pertinentes me surgirem pelo caminho, eu as acolho, ou não. Depende do que acho que surgirá desse possível acolhimento. Contudo, caso as acolha, ajo da mesma forma: eu as leio e as experiencio até o fim. E me dou por satisfeita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que de todas essas, a minha maior trava é a procrastinação. Sinto que sou demasiado atarefada e isso significa que, às vezes, priorizo outras atividades. Tenho por objetivo mudar isso. Enquanto não mudo, contudo, funciono à base de ultimatos. Assim: esse sábado será dedicado à escrita e ponto. Mas, como também sei que não funciono a base de ordens, nem as que eu dou para mim mesma, vou me preparando, vai, desde quarta-feira para a tarefa. E, agindo dessa forma, a coisa realmente funciona.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, por hora, ao menos (e queiram as divindades todas que assim seja sempre), não tenho atrás de mim nenhuma expectativa que não as minhas, mesmo. E procuro ser amorosa comigo, entendendo meus percursos, mas exigente também, porque jamais faço algo aquém do melhor possível. E, trabalhando nesse tom, não é fácil receber críticas. Porém, tive a sorte de, primeiramente, ter me convencido de que posso fazer isso (escrever), mas de uma tal maneira, que não permito que me digam o contrário. E, depois, de ter recebido críticas muito boas, respeitosas e construtivas ao longo do tempo, a partir das quais pude crescer, verdadeiramente. E, dessa forma, é mais fácil receber críticas agora, quando sei que não me questionam a mim, nem à minha obra propriamente dita, apenas propõem novos caminhos, os quais eu aceito, se achar prudente e não aceito, se não achar. E só.
A escrita de um romance foi realmente um grande desafio, principalmente porque eu não fazia ideia (embora fizesse também, ao mesmo tempo) de onde a estória estava indo, o que me deixava verdadeiramente ansiosa – principalmente se é que conseguiria dar conta daquilo a quê me havia proposto fazer. A única saída, no entanto, foi continuar e ver no que ia dar. Não me arrependo dessa abordagem. Aprendi, mesmo, que é melhor não parar, mesmo quando se quer parar e até, o seguinte: é melhor não parar, mesmo quando se está parado (risos).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei responder isso, porque nunca contei, mas eu passo meses revisando, lendo mais de dez vezes por dia um texto. E às vezes me enche o saco e eu preciso ficar um tempo sem fazer nada disso e aí eu volto e começo tudo de novo. Aí, enfim, acho que estão prontos. Nesse momento, mostro o trabalho para outras pessoas, as quais considero sensíveis e capazes de fazerem boas críticas – e, talvez, que tenham a paciência também para ouvir minhas defesas (risos). A partir do que falam, é capaz que eu volte e passe mais uns meses no mesmo processo. Levei seis anos para escrever um romance de 80 páginas. A revisão é parte fundamental, a sintaxe e a pontuação são as principais ferramentas que possuo para que as palavras cheguem às pessoas da maneira mais adequada possível. Levo isso muito a sério.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Normalmente escrevo primeiro à mão, porque minha cabeça funciona melhor tendo a caneta entre os dedos e podendo desenhar as letras no papel, rabiscar, puxar setas para o lado etc. Em algum momento digito tudo e começo a editar as coisas pelo computador. Acho que isso ocorre, principalmente, quando quero mexer na pontuação, porque isso é algo que fica verdadeiramente confuso em meus manuscritos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei de onde vêm com certeza, penso que são, em parte, coisas inconscientes que encontram maneiras de vir à tona através da escrita. Às vezes, contudo, trata-se também de coisas conscientes, de modo que penso que essa é uma maneira de criar o lugar em que quero viver, como se estivesse a construir uma casa feita de textos. Sim, há um conjunto de hábitos que cultivo: frequento muito sessões de cinema, procuro ler o quanto posso – e coisas diversas, ouço músicas de diferentes gêneros e sempre procuro por artistas novos, frequento museus e tento estabelecer pontes de significado com cada obra artística que cruza meu caminho, quer porque goste dela, quer porque não goste. Por que gosto do que gosto e não gosto do resto, afinal? De onde vem essas preferências? – são perguntas que me faço a todo o momento.
Também me inspiro em certas figuras, cujas obras são pontos importantes de referência, em vários aspectos. São eles a Tove Jansson e o Tolkien, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa (especialmente o Caeiro), Clarice Lispector e o Guimarães Rosa. Volto frequentemente a textos escritos por eles, embora não conheça – absolutamente – tudo o que fizeram ao longo de suas carreiras. Procuro conviver com pessoas legais e que sejam apaixonadas pelo que fazem, qualquer que seja aquilo que fazem. Convivo também com plantas e, se estou em Friburgo, faço o possível para subir uma montanha, numa caminhada silenciosa de cinco horas ou mais, às vezes. Também me faz bem frequentar cachoeiras. Gosto de viajar e me manter saudável, de modo que o yoga é parte importante desses hábitos cultivados.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho… Deixa eu ver. Acho que fui achando novos caminhos, caminhos mais sofisticados para dizer as coisas. A escrita é um treino e, conforme ela é posta em pratica, vai se refinando – e nós com ela. É um processo alquímico. Eu também me refinei com os anos, cresci e isso se refletiu na escrita.
Além disso, passei por uma graduação excelente em Letras, e isso me deu uma base de análise literária que é muito valiosa, pois ampliou meu repertório, tornando-o mais próximo da realidade das coisas, ou assim me parece. É quase como se, através das visões de mundo veiculadas por cada obra lida, fosse possível aumentar a “superfície de contato” com o mundo, mesmo, ou ao menos com a forma como é representado através das letras. Isso é muito bonito. As leituras que fiz me marcaram profundamente. Sou uma pessoa diferente depois das leituras, e isso se reflete em minha escrita.
E há muito o que mudar ainda, certamente.
Se pudesse voltar e dizer algo a mim mesma anos atrás seria apenas: continue.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A investigação da feminilidade é um tema que muito me interessa. Meu próximo projeto, o qual apenas estou começando a conhecer, provavelmente tratará sobre isso. Estou ainda em fase de pesquisa e confabulações, rascunhos e ideias que precisam achar encaixe. É preciso construir uma estrutura, espécie de fundação, antes de dar cabo à construção das coisas: palavra por palavra, acertadas no texto meticulosamente, como tijolos.
Quero ler um livro que aborde a sexualidade de forma cuidadosa, não como um impulso incontrolável e animalesco, nem como algo pecaminoso e que precisa ser controlado pelo medo. Quero ver padrões na forma como a natureza se manifesta e copula e a nossa forma de viver, também.
Acho que precisamos voltar a construir esse mundo como uma casa nossa, que nos acolhe, e não um lugar no qual somos alienígenas, que não conhecem ventos, plantas ou as cores do Céu.
Me parece presunçoso, contudo, dizer que não existam livros que tratem já sobre isso. Existem. Sempre que os encontro é uma alegria!
Mas estão espaçados. Quero que haja mais deles – e que conversem.