Larissa Drigo é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tomo café, fumo um cigarro e começo a escrever. (Às vezes, fumo mais de um cigarro). O período da manhã é sempre o que mais rende. À tarde, o tédio diante das horas é mais violento. Mas nem sempre funciona assim. Minha maneira de escrever e minha escrita mudaram muito, principalmente nos últimos anos, depois que terminei o doutorado (2015). Eu fiz dois mestrados, o primeiro foi muito rápido, tive que escrever em três meses uma dissertação. Isso só foi possível porque tinha feito iniciação científica no mesmo autor, Mallarmé. Eu sempre escrevi bastante, mas isso não significava qualidade, e principalmente, não tinha nada a ver com alegria. Acho que o que fica desses anos é o esforço, (isso não faltou), esforço para compreender esse grande mistério, a poesia.
Minha relação com a escrita foi muito marcada pelo Mallarmé, o poeta que se tornou caricatura da impotência, o poeta angustiado diante da página em branco. Escrever era mostrar que ele não era esse poeta e também curar as minhas travas. Demorou. Afinal, como pode alguém querer compreender a poesia escrevendo outra coisa. Comecei a tentar compreender sabendo que não poderia terminar. Essa é a ironia de escrever sobre escrever.
A poesia do Mallarmé, e o que aprendi sobre poesia com ele, não é descritiva, não se trata de narrar um evento, como um jornal. Não se trata de falar sobre ou definir algo. Essa poesia, que descreve e narra, que quer explicar, esse tipo de poesia, em que o que lemos é o que “pensou” “quem escreveu”, não me agrada em nada, não me diz nada. Essa poesia que parece transmitir pensamentos, ideias, sentimentos. Isso é fazer terapia talvez, mas não é escrever. Fazer pensar é muito mais interessante e muito mais difícil. Podemos expor “ideias” em mestrados e doutorados, em artigos de jornal, nas redes sociais, etc. Literatura supõe uma forma consistente, um dizer que passa pela forma e que se diz nela, não no significado das palavras, mas por uma construção que leva o sentido além do já conhecido, produzir essa consistência é o mais difícil.
Por isso, a escrita sempre foi uma questão pra mim, e se saí (por um momento, jamais completamente) das letras para estudar filosofia é porque achava que precisava escrever com rigor e a filosofia para mim era sinônimo de rigor. Eu achava que ela é que ia me explicar o que estava em questão na escrita e na literatura, eu achava que essas questões eram de ordem filosófica. Talvez seja a força de um mito que circula por um certo departamento francês de ultramar. Escrever bem é fazer um comentário à la française. Fui pra França então, para ver se aprendia. A verdade é que adoeci, de hegelianismo e de mallarmeanismo crônico durante mais de uma década. Minha vida acadêmica foi a experiência dessa disciplina, que é uma força castradora muito forte. A escrita foi então uma espécie de dressage, um adestramento do corpo, uma domesticação. Um esforço para compreender e explicar, que contribui muito para quem se forma para ser professor, como é o meu caso.
Veja você, muitos anos depois de trabalhar sobre a Ciência da lógicade Hegel, ao me apresentar em uma reunião na clínica de La borde, eu ouvi um pensionário dizer, “nossa, pós-doutorado, que loooongo”, a observação provocou um riso generalizado, meu inclusive, porque naquele momento (2017) eu também achava que tinha passado muito tempo buscando um rigor que não me deu tantas alegrias ao escrever. Só uma ligeira satisfação, ser capaz de apresentar certos problemas. A ironia é que passei mais de uma década pensando sobre um poeta que afirmava que escrever era como um lance de dados que não pode abolir o acaso, e que a poesia não era feita de ideias, mas sim de palavras. Então, depois de tudo isso, acho que chegou a hora de tentar uma última loucura, ˗ ou talvez isso seja prova maior de que consegui manter alguma sanidade ˗, e me dizer poeta, a crítica que me julgue, caso lhe interesse.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso depende do que estou escrevendo e do momento do processo. Durante alguns momentos da minha tese eu escrevia diariamente, às vezes manhã, tarde e noite. Acordava cada dia mais cedo e a escrita se estendia até a madrugada. Mas isso só é possível depois de muita pesquisa, muita leitura, depois de muito tempo convivendo com os textos a serem analisados. No começo da minha dissertação sobre o Hegel, eu passava horas na mesma página, sem compreender absolutamente nada. (Vai ver porque o texto em questão tratava justamente do Nada.) Eu passei muito tempo pensando nessas coisas e tentando escrever e tentando explicar. Até hoje não sei se entendi o que ele chama de devir, mas tenho certeza de que ele passou longe do que realmente interessa.
Uma dissertação ou uma tese é como um quebra-cabeças, ou uma colcha de retalhos. Começamos juntando as peças pra depois montar ou costurá-las. O começo é angustiante porque não conseguimos ter uma visão “do todo”, mas a graça toda está justamente nesse processo, para o bem e para o mal. Isso porque vão ficar sempre alguns fios soltos que vão nos levar para outros lugares. É o melhor que podemos esperar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Durante o doutorado eu tinha uma meta, 10 páginas por semana, que cumpri inclusive. Era mais fácil escrever do que durante os mestrados, com o tempo vai ficando mais fácil. Mas quando a tese estava “pronta” para ser defendida, quando eu achei que tinha acabado, mudei de ideia. Passei alguns meses sem escrever, descobri outros autores, (o Deleuze principalmente, tanta insônia… mas acho que ele me curou do meu hegelianismo). Resolvi reescrever alguns capítulos. Deu certo. O resultado me deixou mais feliz, porque no final das contas, eu queria era só dizer uma ou outra coisa sobre o Lance de dados, que caberia em 20 páginas, mas para chegar nisso, foram necessárias outras setecentas e tantas. Olhar para essa quantidade toda de coisa escrita, chega a dar vertigem. E o tempo todo que demorou?!
Afirmar a importância do acaso na criação e colocar em questão toda forma de pensamento causal significava também, para mim, explorar a dimensão política do problema. Uma revolução, uma transformação histórica é produto de causas discerníveis somente a posterioriou podemos dizer que é a contingência que produz a História?
A questão política e filosófica de base da tese, sobre o que é uma revolução ou um acontecimento ainda é um problema pra mim. (Hannah Arendt dizia que só a revolução pode colocar de fato essa questão, o que é começar?) E nesse ponto, escrever me levou definitivamente para um outro lugar. Ao invés de pensar um conceito de revolução, um conceito de acontecimento, imprevisível e inesgotável em suas possibilidades (não exatamente como um lance de dados, mas como um livro talvez), eu passei a estudar a história das formas de luta políticas, agora com base na prática. As ditas formas de organização. O que não significa colocar em questão o acaso, muito pelo contrário, porque quanto mais leio livros de História mais me convenço de que a causalidade é uma ficção. Foi uma maneira de desdobrar o problema da forma em literatura, só que no campo da política.
Agora que não tenho a obrigação de terminar uma tese, escrevo menos, mas experimento mais e em geral, fico muito mais satisfeita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A melhor coisa que fiz durante a escrita da tese foi comprar um caderno. Depois do primeiro vieram muitos, agora sou viciada e obcecada por cadernos de múltiplos formatos, todos sem linhas. Era no caderno que eu ia traçando os planos, elencando os argumentos e, às vezes, desenvolvendo algumas ideias. Ele é que fazia a passagem entre a leitura e a escrita e ia me ensinando que escrever também é rascunhar, apagar, destruir. É também o Mallarmé quem dizia “a destruição foi minha Beatriz”. A melhor forma de escrever talvez seja essa, é a que me convém, a que não teme destruir, destruir clichês, ideias gastas e batidas, lugares comuns. Destruir o que nós mesmos escrevemos, jogar fora, recomeçar. Reescrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrever na universidade é fazer pesquisa, procurar. No final, a gente aprende pra que servem as Ítacas, mas só no final. Então posso dizer que não sei lidar com a angústia, mas sei que a procrastinação tem muitas razões, é preciso investigá-las também. Às vezes, nos sentimos despreparados porque de fato, falta mais pesquisa e o que está mal escrito é indício de que ainda não compreendemos bem aquilo de que tratamos. Em outros casos, a angústia é imaginária, produzida por um superego que mais atrapalha do que ajuda. Nessas horas é preciso ler o que dá prazer, sair, caminhar, ver os amigos, visitar uma exposição, olhar para o mar, se apaixonar também pode ser uma possibilidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Essa é a parte mais difícil. Reler, revisar. É a parte mais dolorosa, chega a ser impossível ou insuportável, às vezes, reler o que escrevi. Já foi pior. Quer dizer, isso também pode mudar. O que não mudou é que sempre contei com ajuda externa, seja para revisão, seja para leitura crítica. Mostro para quem se dispuser a ler e tiver a generosidade de criticar. O mais difícil para mim sempre foi lidar com a insatisfação que eu mesma sentia diante do que escrevia. Acho que isso é ainda mais violento para os literatos, alguns, claro, acostumados a ler o que há de mais fino e bonito. Acostumados a idealizar o escrito e o ato mesmo de escrever. Mas ao mesmo tempo, como sempre associei a escrita com a procura, com a busca, com a invenção de uma outra forma de viver, sei que não posso viver de outra maneira a não ser escrevendo e que essa angústia e insatisfação vão estar sempre lá, que sejam o motor de outros textos e não fonte de paralisia.
Com o tempo, terminar vai se tornando o menos importante, porque escrever é que é o grande barato. Ou a gente termina alguma coisa só pra poder se dedicar à outra. Escrever pode ser um exercício, de soltar a mão, nem que seja preciso fazer outra coisa, desenhar, por exemplo, até a mão desaprender os ritmos que conhecia, as linhas que foi obrigada a seguir, os caminhos do hábito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Esboços, projetos, esquemas, versinhos, traduções nascem mesmo à mão. Depois passo para o computador, mas tem sempre um caderno em algum lugar para o qual volto ou onde começo outra coisa.
O mais interessante desse processo são foram os cadernos, e o aconteceu com eles. Ganharam autonomia. Foram se transformando em outra coisa. Meus primeiros versinhos surgiram em um diário. Diário de viagens. Eu comprei esse diário porque fiz uma viagem para Tunísia, Egito e Israel (incluindo Cisjordânia), foi uma experiência tão importante, de formação política, foi um ano depois da primavera árabe, e me arrependi de não ter anotado tudo. Então comprei um diário de viagens, um ano depois, (quando comecei a escrever minha tese) ele foi o espaço que acolheu meus primeiros “poemas”. Depois dele já vieram muitos caderninhos, muitos. É muito significativo que tenha acontecido assim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Muitas das “minhas ideias” foram roubadas, outras produzidas com cuidadosa traição dos autores que mais amei. É um processo quase maquínico, meio consciente, meio inconsciente, vai acontecendo dentro da gente sem que a gente perceba. Eu não saberia dizer, quem dera! de onde exatamente elas vêm. Se é que algum dia tive alguma ideia na vida.
Eu sempre trabalhei com problemas, sempre escrevi sobre problemas que tinham grande relevância pra mim, que são como fantasmas que não cessam de me assombrar, mas são também fantasias, possibilidades, veredas. Escrever era explorar esse nó, desfazê-lo ou desdobrar uma única ideia que era a de que, em um mundo sem deuses, não há razão que explique ou justifique a forma como vivemos. Isso significa que também não deveria haveria culpa, responsabilidade ou dívidas. A terra devia ser leve. E, no entanto é o contrário que ocorre.
Eu leio autores diferentes ao mesmo tempo, e sempre alterno entre filosofia e literatura. Às vezes, escrever me cansa tanto, que só leio poesia. Às vezes, pego um romance imenso, mas sempre leio sobre algo que não vou resenhar ou criticar, sobre o que não vou escrever, pra descansar e desfrutar de um prazer que não vem com obrigação. É uma questão corporal. O perigo, (ou não), é que conforme a vontade de escrever poesia vai ganhando terreno, a filosofia vai parecendo cada vez mais abstrata e pesada. Aí eu volto pra literatura, com uma alegria…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria um grande clichê, claro: “tenha calma”. O que não é óbvio é que, no meu caso, tenho a impressão, o dia em que eu ia ficar satisfeita com o que escrevi chegou, mas pra isso, foi preciso mudar tudo ao meu redor, mudar de país, de língua, mudar muito até quase virar nômade.
Hoje eu sei que esse caminho tortuoso, entre as letras e a filosofia, foi mesmo necessário. Descobri que existem muitas escritas e escritos, que é possível explicar, desenvolver, elaborar e encontrar satisfação nisso. Mas existe também uma outra maneira de viver essa relação. Deixar o acaso guiar não só a minha vida, mas a minha escrita foi o mais difícil. Até porque não é na universidade que isso vai acontecer, nem graças a ela. Então é preciso criar um outro espaço.
Descobri também que viver dentro dos livros pode ser um mau negócio, porque a vida vai sempre insistir em ser diferente dos romances. A vida implacável. Quer dizer, mau negócio era olhar a vida assim, como quem a espia, de dentro mesmo dos livros. Então, essa outra forma de viver que eu buscava nos livros foi se mostrando como uma vida possível mesmo dentro deles, e só deles. E não há nada de melancólico nessa conclusão, muito pelo contrário, foi libertador. Espero que assim seja de agora em diante; que eu consiga criar esse espaço de ficção, onde vou me livrar de tudo o que li até hoje e que mais teima em não sair de mim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero escrever um livro com o título, Do entusiasmo, sobre Blanqui e Hölderlin. Queria aproximar um poeta e um “revolucionário profissional” para falar de política e de poesia. Um livro que fosse o avesso da melancolia, sobre esse “sentimento moral” que o Kant julgava tão perigoso. O Hölderlin é um caso muito especial dentro do idealismo alemão. Ele não se compara com nenhum de seus amigos Hegel, Goethe e mesmo Schiller, ele foi tão além, tão mais longe. Falo do Hölderlin de Hipérion.
Já o Blanqui é uma figura das mais relevantes da História das revoluções do século XIX, e não foram poucas. Ele sempre esteve lá, ou por perto quando podia. Passou a maior parte da vida na prisão e escreveu um texto “A eternidade sobre os astros”, sobre astronomia. Nada estranho já que o termo revolução tem origem na astronomia, mas o que interessa nessa relação é que o céu estrelado não está aqui para calar a boca de ninguém, não é uma fuga ou um refúgio; o mundo natural, esse que não está ao alcance dos olhos porque desafia a nossa razão, esse que é infinito, funciona como modelo para uma nova sociedade. Esse Blanqui, que dizia que era mais fácil o homem ir à lua do que implantarmos o comunismo na terra, é o que me interessa, o homem encarcerado que escreveu sobre astronomia e também um manual militar para a tomada da cidade de Paris. Ele que defendia a educação laica como única forma de transformar a sociedade. Ele nunca teve uma teoria tão sólida quanto Marx, e é uma referência esquecida (ver as teses sobre a história de Benjamin), mas é um personagem que me fascina.
E também tem o filme, do Dziga Vertov, que deixa tudo ainda mais interessante, porque é dele tambémUm homem com uma câmara… De um lado, a propaganda, de outro, o cinema monumento ao movimento, imagens que entram em ação. Blanqui era diferente de Marx justamente por isso, não era um teórico, mas um homem de ação.
Eu ainda não consegui ler muitos livros que já existem, quanto aos que não existem, eu gostaria de ler um livro do Proust, queria saber o que ele escreveria depois deEm busca do tempo perdido. Porque esse romance, pra mim, é dos maiores. Se tivesse que indicar um só livro pra alguém, seria esse. É um livro sobre como inventar uma vida verdadeira, que não pode ser outra senão literatura. Acho que queria ler vários livros como O método Albertine, não pra colocar a pergunta idiota, por que Albert virou Albertine?, ou pra ficar quicando entre metáfora e metonímia, mas para pensar todas as maneiras de ser Albertine, ser de velocidade, antes da queda, claro. Porque o que interessa são aqueles versos, no avião ou no barco pouco importa, o belo, o virgem, o vivaz… E talvez fosse possível pensá-lo com Hölderlin e Blanqui e Vertov, pra começar. A poesia hoje em dia, tenho a impressão, está cheia de cavalos… Talvez porque, escrever mesmo, não é se conformar a um modelo, mas algo como montar um cavalo.
Aliás, tem um outro livro, esse não é sobre como o desejo faz uma vida, mas sobre escrever: Les grandes épreuves de l’esprit et les innombrables petites, do Michaux. Não acho que pode existir análise mais detalhada da agonia e do deslumbramento, da velocidade e da lentidão que é escrever.