Laís Barros Martins é escritora e jornalista, autora de “A infância dos dias”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gostaria de escrever ficção para contar sobre manhãs de quem escreve olhando o horizonte pela janela. Inventar essa história sobre a rotina de uma escritora em que eu coubesse no papel principal. Mas a realidade clama por seu direito de resposta. Então, pontualmente, dirijo-me ao computador onde encontro o trabalho. Recebo todos os dias jornalismo; literatura é uma visita esporádica, embora tão bem-vinda. Entre narrativas acontecidas e inventadas, escrevo sempre. E é nesse exercício que atravesso os meus dias. Se é o trabalho com a palavra, em suas diversas formas, que faz uma escritora, então, sou uma de vocês. Agora, se sou escritora apenas quando escrevo literatura, sou então uma autora pouco estabelecida, apesar de ter um livro publicado, textos em revistas literárias e outros projetos em andamento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É nessas primeiras horas da manhã que produzo mais, organizo as tarefas, esclareço prioridades, encaminho os textos, entrego pendências. Meu método para escrever é não temer a folha em branco. Se estou diante desse espaço de possibilidades é porque primeiro senti ou pensei uma ideia. Digo isso porque o meu processo envolve essas três etapas: sentir, pensar e escrever, não necessariamente nessa ordem e sem excluir a chance de coincidirem entre si. Foi da observação sensível que cheguei a esses verbos infinitivos simples, mas essenciais, responsáveis por me conduzir por entre as palavras. É na cadência de seguir esse guia sem rotas definidas nem pontos seguros salvos no mapa que dou as boas-vindas aos textos meus e acolho-os em todos os seus tamanhos, cores e formas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho uns repentes. Essa seria a declaração mais próxima da verdade que posso compartilhar. Mas não pense o leitor desavisado que são frutos da inspiração, aquela musa intocável e tão rara. Ela diz apenas da não constância. Posso passar longos períodos sem produzir nenhuma linha, retomar um projeto e andar uma página, ou anotar frases soltas que podem seguir sendo avulsas ou amarrar-se em algum fio da meada esclarecendo um conto, uma crônica, um vir a ser romance. Quando vêm, me tomam. As palavras são potência, você sabe. Para que se tornassem mais presentes, além do trabalho jornalístico de todo dia, toco o @doispontosdl, um projeto de escrita junto da Débora Gomes, também jornalista e escritora. Na companhia distante uma da outra, exercitamos o texto com regularidade, e isso tem me feito mais disciplinada. Lá, uma palavra sempre antecede os nossos dois pontos e nos colocamos a seguir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Caótico. Sem regras. Real. Mágico. Estou com dificuldade em responder a essa questão, porque o processo não segue etapas definidas em ordem de compilar notas, partir para a pesquisa e então escrever. Vou buscando esses recursos à medida que eles exigem atenção. Talvez para um projeto de mais fôlego eu precisasse me organizar segundo uma lógica mais segura. Por enquanto, para os meus escritos, dependo mais de uma ideia inicial que me estimule, tempo e disposição para encarar os começos, escrever, apagar, reescrever, editar, revisar, ler e, por um desatino ou guiada por uma paixão bastante pueril, mas de uma força arrebatadora, publicar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Gentileza para acolher a primeira palavra. É preciso começar. O texto pode se desenvolver e pouco se parecer com a ideia original, mas acolho o que vem pois isso me ajuda a ocupar o espaço em branco desejoso de cor. Não é medo, nem coragem. É permitir-se escrever. Escreva. Foi o que tentei praticar inclusive para responder essa entrevista. Lidei com as travas da escrita que se fizeram presentes, inclusive como a procrastinação e o medo de não corresponder às expectativas, e precisei superá-las porque queria compartilhar como eu escrevo. Eis-me aqui.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso sempre, pelo menos uma nova leitura antes de julgar o texto mesmo pronto. Meu processo é bem solitário; as trocas acontecem neste plano tão particular em que apenas eu acesso o texto e ele me acessa, escavando lugares pouco frequentados, às vezes obscuros e até inéditos de mim. Num daqueles repentes em que sou escritora – quando escrevo –, pode acontecer um texto. Os escritos são guardados em suas respectivas pastinhas de projetos futuros e ficam ali, descansando. Quando volto a ele, se o sentido permanece, algumas palavras ganham rearranjos, edições, complementos. A etapa da publicação pode nem acontecer e eles seguirem guardados. O tempo do texto tem relógio próprio. Participar do Clipe 2020, o Curso de Livre Preparação do Escritor da Casa das Rosas, alterou um pouco esse processo solitário, rearranjando possibilidades. Compartilhei alguns textos inéditos com colegas antes mesmo de eles ganharem tempo. Arrisquei subverter as lógicas desabitadas de gente, fui acolhida por colegas escritores e pude vislumbrar seus outros modos de escrever em exercício. Essas trocas passaram a ser muito bem-vindas. Todo texto precisa ser lido, sem depender tanto do quando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meus primeiros rascunhos acontecem apenas no plano das ideias; às vezes eu os perco entre as memórias ou crio ficções na hora de recontá-los, quase sempre no computador. O original jamais é publicado, porque existiu só para mim. Os textos que existem, antes de se perderem, foram resgatados em partes ou reinventados em nova versão através da tela. Queria dizer que ocuparam cadernos em letras pouco legíveis que me acompanham pelos anos, mas estou aqui na função de responder a uma entrevista. Se eu puder inspirá-lo, saiba que os textos acham espaço em qualquer suporte.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As palavras são uma espécie de companhia constante. São mais comuns no trabalho com o jornalismo, o que paga os boletos, e podem acontecer de virem inspiradas numa grande reportagem, com lirismo, com paixão. Cada texto, mesmo que uma notinha, me tem. Esse processo está intimamente ligado ao tempo; o texto precisa descansar. No dia seguinte, todo texto ganha a oportunidade de ser melhor. A dedicação para encontrar a melhor forma de apresentar o assunto e contar aquela história está sempre presente. Nesse esforço de me recriar, a criatividade vive. Mas como a realidade não se sustenta sem imaginação, dedico-me também a inventar histórias, essas sem compromisso com as histórias reais, embora possam viver de fato. Essas histórias da ficção costumam aparecer quando não se espera nada delas: durante a tarefa de passar um pano molhado no chão ou naquele momento de sono vigília, em que é preciso optar por levantar e registrá-la em papel ou deixá-la ir, vencida pelo cansaço.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Está tudo bem, Laís. Os textos são o seu corpo no mundo. Vê como você cresceu? Aqueles primeiros escritos publicados serão sempre capazes de afetar o outro num encontro, independente de você perto ou longe, e cada leitura importa. Esses pedacinhos da gente compartilhados merecem respeito, também pela coragem de confiarem na inspiração genuína, o rompante de acharem-se prontos e o afã por serem lidos. Foram possíveis. Agora, tento entender o processo como a combinação dessa ideia original e a dedicação do trabalho, o acúmulo do tempo a recuperar algo esquecido na gaveta e avaliar seu valor. Permito inclusive que eles recebam leitura prévia de algum colega. Experimento um ou outro curso para tentar uma rotina mais disciplinada. Mas nada disso me faz mais ou menos escritora. Sou escritora apenas porque escrevo. Os textos seguramente estão mais maduros, embora ainda sejam exercícios. Na certeza de que ainda cresceremos, talvez jamais sejamos gigantes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Até tenho um projeto que gostaria de fazer e ainda nem comecei. Mas, antes, existem aqueles começados aguardando encaminhamento. São livros infantojuvenis, três. Quer ler? Estão na fase de avaliação de originais, sabe? Também está em gestação uma coletânea de prosa junto dos colegas do Clipe. Sobre os livros que eu gostaria de ler, talvez eu só não os tenha encontrado ainda ou desconfio que estejam sendo produzidos agora mesmo por escritores que passarei a admirar tanto que poderão inspirar algum de meus próximos projetos. Das leituras próximas ou inexistentes, espero que me conduzam àquele momento em que suspendemos o livro aberto na mão e somos tomados pela nítida sensação de encanto e arrebatamento. Quando pensamos “é isso!”. Aí busco estar o como eu escrevo.