Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor, pesquisador e crítico literário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Os dias começam com as preocupações corriqueiras que temos num país de incerteza constante e futuro incerto como está o nosso. De qualquer sorte, mesmo antes de o dia raiar, ou melhor, no dia(s) anterior(es), já alguma coisa começa a se formar na mente a respeito de textos de ficção, ou não, que tenho que realizar. A escrita propriamente se dá quando o tempo permite, pode ser no meio da manhã, depois do almoço, ou à noite. Aparecendo um tempinho, porque não posso me dar ao luxo de ser escritor full time, sento e escrevo. O sujeito que lida com a literatura deve se acostumar a confiar muito na sua mente, na memória, senão nada feito. Há de se ter uma tal disciplina mental que organize as coisas, estabeleça sequências, faça conexões prévias, busque desfechos, tudo dentro da ideia núcleo que orienta cada texto. O que quero dizer, e que disse a um repórter em uma entrevista certa feita, que não “baixa santo” nenhum, o negócio é esforço, e muito! Não estou com isto querendo dizer que elementos como anotações, literatura de apoio, esboços prévios etc., não tenham a sua importância.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O ritual de escrita para mim, como já disse acima se baseia em dois pressupostos: ter em mente uma tal ou qual ideia e ir trabalhando seriamente, sem nunca deixar de ter em vista outro elemento sem o qual ninguém escreve bem. O hábito sistemático da leitura. É ele que dá em muito boa medida o grau de expressividade que um bom escritor deve alcançar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim, todos os dias quando há projetos de escrita mais elaborados como um conto, ou um romance. Aí a coisa muda um pouco de figura, porque há de se buscar um planejamento muito direitinho e afinado. Senão vira uma zona terrível e a coisa termina por não sair, ou sai malfeita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita no que diz respeito à ficção é executado a partir de um sentimento prévio muito mastigado na mente, sobre o tema que estou a me propor. Há também de se ter um senso de observação muito depurado e delicado para não só observar, mas paralelamente refletir sobre questões que às vezes trazem ambiguidades, paradoxos, incertezas, etc. Quanto à crítica literária que venho exercitando de uns dois/três anos para cá, entra outro elemento também muito importante, que é o contraponto da escrita, a recepção que o texto quer provocar no leitor, e que o crítico ajuda a expandir previamente. Se me lancei nessa seara da crítica é porque para tanto, no meu caso particular, foram necessários anos e anos de leitura. Mas já aí, tendo em vista uma leitura crítica, que é diferente de uma leitura corriqueira. Há de se ter em mente que se faz necessário olhar bem dentro dos olhos do autor, não para perguntar-lhe “Trouxestes a chave”? Mas para perquirir: “Que portas tentamos abrir aqui? Como o autor se utiliza das ferramentas de que dispõe, e em que medida ele escancara a porta ou apenas sugere uma fresta de luz?”
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não vejo “travas” na escrita, em escrever uma correspondência qualquer, ou elaborar uma mera redação de escola a coisa é muito clara. Só escreve bem quem escreve com regularidade. E aqui estou somente a me deter no ato da escrita em si, que envolve construção frasal, concordância, pontuação, etc. Ninguém nasce exímio na arte da escrita ou em outra coisa qualquer, é preciso muito treino, e prática constante. Já em literatura propriamente dita, que envolve outras questões mais delicadas, além disso tudo que falamos, deve vir à tona certa propensão natural que alguns chamam meio sem saber o que é, de dom, e que chamo de talento. É aí que a porca torce o rabo, porque muita gente pensa que basta escrever bem, para ser um bom escritor. Não basta. É preciso saber como dizer também. Um detalhe, um enfoque, uma visada, uma sutileza para que se toque o mais profundamente a mente e o coração do leitor. Aí sim, quando logramos acertar nessas questões temos literatura de primeira qualidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar textos para mim é o inferno dos infernos! Mas ou fazemos isso inúmeras vezes, ou corremos o sério risco de não atingirmos com clareza o objetivo. Que fique claro. Uma coisa é o que lhe vai na mente, a outra coisa é se o que lhe vai na mente, está sendo expresso na exata medida do que você sente. É por isso que normalmente escrevo primeiro à mão, depois imprimo e torno a escrever e revisar cinco, dez versões de um texto. À medida que você se acostuma com a escrita, claro que diminui essa rotina de tentativa e erro e passas a acertar mais naquilo que escreves. Não parece óbvio? Hoje, muito raramente mostro a alguém antes de ir para a gráfica. Quem lê é o editor, alguém que participe daquele projeto específico com um prefácio ou orelhas, e depois disso tudo; fica a dica para aqueles que escrevem com vistas à publicação. Paguem um revisor de texto, porque sempre aparece um rabinho de fora no texto, por mais revisão que o próprio autor faça.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia foi um oásis no deserto. Quando comecei a escrever, não havia computador, parece que estamos falando da época da pedra lascada, não é mesmo? Mas se você recuar no tempo vinte ou trinta anos, o cara, o bandido do escritor, tinha era que se lascar batendo letrinha por letrinha numa máquina tacanha. Quando errava tinha que passar tinta branca, ou apagar com borracha, e a porra do papel lascava e escrevia e reescrevia tudo novamente. Olhe, uma derrota! De qualquer sorte, certos textos ainda hoje prefiro escrever à mão e depois digito no computador. Tal prática tem uma vantagem. Quando você escreve à mão, existe uma condição de melhor avaliar o texto em seu conjunto, não sei, preferência pessoal… depois vamos ao computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ihhh meu irmão, agora danou-se. Sei lá de onde vêm minhas ideias, não faço a menor ideia. O que sei, é que quando algo me chama atenção como potencialidade literária, observo e reflito com muita calma, muita parcimônia, e somente depois disso é que entra o tal “sal da terra”, que penso ser nossa vivência pessoal aliada a uma dedicação extrema à literatura. Acho que é mais ou menos por aí. A criatividade decorre de todos esses aspectos que abordamos e um último, que ninguém ainda soube ao certo definir: uma pitadinha de imponderável entra nessa receita também.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com os anos e, lógico, com a prática, nos tornamos mais fluentes, se assim podemos falar, a coisa sai cada vez com mais facilidade, decorrência natural da prática. Se voltasse à escrita dos primeiros textos, tornaria, muito provavelmente a reescrever alguns, mas também sem procurar preciosismos porque isso aí me cheira a coisa de gente meio maluca, meio tarada. Tudo tem seu grau de acerto e erro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho projetos a fazer que ainda não tenha começado. Os que comecei, terminei todos, ainda que para concluir alguns tivesse de dar uma de alucinado para ver concretizado. Se pintar alguma ideia que não possa, por uma razão ou outra, levar avante, simplesmente esqueço-a. Os livros que eu gostaria de ler, mas ainda não existem, são os que vão se tentando escrever todos os dias no mundo todo há milênios, livros que falem para os homens e pelos homens, de forma que afinal tenhamos um mundo melhor. É a esse pensamento que eu junto a minha pena.