Krishna Monteiro é escritor e diplomata, autor de O que não existe mais (Tordesilhas Livros), finalista do Prêmio Jabuti (2016) na categoria Contos e Crônicas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como a imensa maioria das pessoas que escrevem no Brasil, tenho o desafio de conciliar a literatura com o trabalho. Minha rotina matinal, assim, não está ligada à escrita, mas a questões práticas como acordar cedo, preparar o café, dar comida para o cachorro, preparar-me para sair etc.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, com certeza, quando o mundo está em silêncio e minha cabeça funciona melhor. Se pudesse, trocaria sempre o dia pela noite. Quanto a rituais, gosto de ter à mão livros de autores prediletos, além de tudo o que estou lendo no momento. Sempre recorro a essas obras de apoio em busca de referências, de ideias, de símbolos e situações que posso adaptar e usar à minha maneira.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou bastante lento para a escrita. Minha meta é de mil palavras por mês, o que em tese me permite produzir um livro a cada quatro anos. Por conta da necessidade de conciliar a escrita com o trabalho, escrevo somente a partir de sexta-feira à noite e durante os fins de semana. Isso prejudica a vida social, mas, como tenho uma natureza mais introspectiva, não me importo muito.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No meu caso, não tenho fronteiras muito delimitadas entre pesquisa e escrita. Elas ocorrem ao mesmo tempo. Tenho uma ideia, pesquiso um pouco, escrevo; pesquiso um pouco mais, escrevo. Depois de algum tempo, quando a história se estabelece e tenho uma noção mais concreta das motivações dos personagens, retorno às páginas e capítulos iniciais, reviso tudo o que escrevi. Escrevo mais um capítulo. E a pesquisa ocorre continuamente, ao longo de todo esse processo.
Cada autor tem seu conceito de “pesquisa”. O meu consiste na leitura de obras literárias que possam me ensinar, apontar caminhos para o que estou escrevendo. Se quisesse escrever um romance narrado do ponto de vista de vários personagens, por exemplo, minha pesquisa envolveria a leitura, ou releitura, dos grandes livros construídos com base nessa forma específica, como “Guerra e Paz”. A pesquisa, assim, é um aprendizado, um diálogo com outros autores.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essas são questões sérias, que ocorrem o tempo inteiro. Atualmente, minha forma predileta de lidar com elas é pensar que, no fundo, o ato da escrita, da criação, é um grande prazer; um prazer tão bom quanto o da leitura, ou até prazeres físicos, como nadar, por exemplo. E, além disso, trata-se de um prazer especial, que pelo menos em meu caso tem o dom de acalmar um pouco o espírito, neste mundo que anda tão conturbado, tão cheio de ódio, de intolerância. Contra o caos do mundo e da realidade, a literatura proporciona uma certa ordem; um sentido. Para usar uma metáfora de um dos grandes contos de Hemingway, é “um lugar limpo e bem iluminado”, onde podemos sentar, encontrar a paz, ainda que momentânea.
Se, além de todos esses prazeres, o livro fizer sucesso, ótimo. Mas se, ao sentar para escrever, nos enchermos de expectativas sobre o que os outros vão achar de nosso trabalho, isso pode se transformar num grande bloqueio à espontaneidade.
Há uma passagem muito interessante na biografia de William Faulkner. Depois da recusa de várias editoras a um de seus originais e de toda a carga de frustração associada a isso, ele se isolou por vários meses, simplesmente escrevendo, quase automaticamente, sem expectativas além do próprio prazer da escrita. O resultado foi “O Som e a Fúria”, um dos maiores romances do século XX. Claro que ninguém tem pretensão de ser Faulkner, mas tentar pensar dessa forma é um bom caminho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O tempo inteiro. Na verdade, acho que os textos nunca ficam prontos, apenas há aquele momento em que o livro deve ir para a gráfica. E, mesmo ao folhear um livro já publicado, fico pensando em possíveis revisões.
Mostro meu trabalho para amigos e pessoas de confiança. E gosto muito de trabalhar com leitores críticos, profissionais do meio literário especializados em ler manuscritos, dar pareceres, sugerir modificações.
Se eu pudesse fazer uma ligação entre esta pergunta e a anterior, diria que, durante o processo de produção, de escrita do livro, a espontaneidade é essencial. Depois, é hora de ponderar, usar a razão, revisar, editar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho muita habilidade com tecnologia, mas reconheço seu valor. Meus primeiros rascunhos, em geral, são escritos à mão e têm origem em notas que vou escrevendo à medida que ideias surgem. Depois – e quando meu computador colabora – uso o editor de texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
É uma pergunta difícil, mas acho que a ideia para um conto, um romance, surge do somatório de nossas experiências, de tudo o que vivemos, nossos dramas, questões mal resolvidas. De nossas angústias, nossas “sombras”. De nossas crenças, nossa visão de mundo. De tudo que nos incomoda ou fascina profundamente na vida.
Creio que essa espécie de “patrimônio de experiências” vai se acumulando e, um dia, eclode, sob a forma de uma ideia. Não acho que seja possível prever ou controlar essa “eclosão”, mas uma excelente maneira de estimulá-la é estar aberto ao mundo, a todo tipo de experiências: ler sempre, por exemplo, pois muitas ideias surgem quando lemos livros de outros escritores; e estar atento a histórias da vida cotidiana, contadas por pessoas à nossa volta, que muitas vezes são o germe de grandes ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Embora, na pergunta 5, tenha ressaltado a importância da espontaneidade, reconheço que, com o tempo, fui sentindo um pouco o peso de minhas próprias expectativas. No início, quando escrevi meu primeiro livro, escrevia sem saber direito o que fazia, para onde caminhava, e essa sensação era muito boa. Meu objetivo, hoje, é reencontrá-la.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre fui fascinado pelas histórias envolvendo o mar, como “Moby Dick”, de Melville, os grande romances de Joseph Conrad. Esses autores têm um padrão que não está a nosso alcance, mas, dentro de minhas possibilidades, ainda gostaria de escrever um romance sobre o mar.
Um livro que gostaria de ler e ainda não existe: sinto tristeza por Gabriel García Márquez não ter conseguido escrever os outros volumes de sua autobiografia, “Viver para contar”. É uma pena que um livro como esse nunca existirá. Há escritores que poderiam ser imortais, escrever para sempre, e Gabo é um deles.