Kevin Kraus é escritor, tradutor e professor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não há uma rotina por conta da maleabilidade temporal mesmo. Existem épocas em que me encontro dentro de rotinas básicas: filhos, trabalho, motivos torpes etc. Em outros momentos a rotina é esquecida e dá tempo para dispersões de todas as naturezas. Houve épocas em que não havia o termo matinal, com o passar dos anos e a dor nas juntas vieram os primeiros raios de sol.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Qualquer hora que exista oportunidade e motivo. Quando era estudante escrevia durante as aulas, pela manhã e as vezes a noite – existem professores que incentivam a criação literária sem mesmo saber que o fazem – sobra pedantismo que se transforma em combustível para sonhos de conquista e vinganças. Meu ritual é sempre ter um objeto que eu possa transformar em texto – se estou desenhando acaba virando pretexto. Se foi uma foto, algo deve ser dito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo escrever todos os dias pois os boletos não permitem. Houve períodos de completo hedonismo em que a escrita era acompanhante incansável de apertos e gozos diários. Hoje tenho a mania de reservar alguns períodos para poder compor e pensar. Quando isso se dá, não há metas diárias – penso as metas como mecanismos de castração pesados e sempre deixei que pertencessem àqueles que abusam das gravatas. Prefiro ter a liberdade de escrever uma linha, um verso, uma palavra e já ficar de barriga cheia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre que resolvo escrever é por um motivo externo – externo mesmo – visual, sonoro, seja lá o que for. O meu entorno comanda esse primeiro anseio e é a partir do que me chamou a atenção que se inicia o processo. Faço um primeiro rascunho se não tenho tanto tempo. Anoto ideias se estou no meio de outra tarefa. Caso esteja com material à mão já toco o barco e produzo o máximo que consigo e que seja suficiente para abarcar aquilo que senti, que tive vontade de dizer, que se construiu num roteiro utopicamente perfeito na cabeça e que a mão não deu conta de reproduzir. Se parto de notas tomadas a escrita é mais vagarosa e deformada, como se empurrasse um corpo que não fosse o meu em direção ao topo da serra. A pesquisa sempre vem depois – são detalhes que gosto de melhorar no texto e que às vezes demandam acertos geográficos, nomenclaturas, troços distantes. Como não escrevo romances não tenho esse ímpeto da pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca lidei com travas da escrita. As travas das chuteiras são bem piores. Quando o texto não flui eu simplesmente paro e deixo que ele germine numa outra dimensão – aquela em que eu não existo e que não me diz respeito. Meu processo de escrita é quase um ato sexual, não abre espaço para medos e ansiedades – ou está bem, disposto e relaxado, ou vai ser uma broxada pontual.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso sempre após escrever algo: é uma revisitação imediata e que ajuda a trabalhar melhor as ideias. Depois faço do texto um vinagre. Vai descansar por um mês, dois – até que seu azedume venha à tona e possa ser revisto. Não mostro nada para ninguém – os textos são meus. Não gosto de gente interferindo nas minhas construções – acho insuportável ter que explicar aquilo que é obvio para mim para alguém que não passou pelo processo todo de escrita e ainda se permite mendigar subsídios de entendimento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo em tudo: papel, guardanapo, celular, cadernos, computador, muros, portas de banheiro… Gosto muito de cadernos de desenho – minha relação com a escrita também é uma relação pesada (no bom sentido) com o traço, o desenho da letra ou de um outro corpo qualquer. Os caderninhos vão se acumulando, guardando histórias bizarras, desenhos, anotações, números telefônicos, dívidas, mapas de nomes, poemas e crônicas malditas. Certa vez, ainda morava no Rio, alugava um quartinho de cachorro tão espremido que o colchão tocava três paredes. Era noite, meus caderninhos num canto, havia uma vela acesa, adormeci bêbado, resvalei o pé e o fogo levou um tanto de memória. Tivesse me queimado, não teria doído tanto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias chegam principalmente do horror que a maioria das pessoas causam no mundo pensando que estão fazendo algo de bom. Não é uma questão de hábito, é uma questão de estar atento ao entorno, às mínimas interferências desastrosas que são perpetradas diariamente por todos que me cercam – desde os mais íntimos até os mais distantes. Fora isso, a relação com a arte visual desde que me conheço por gente, ajuda muito quando necessito erguer algumas torres de babel na cabeça.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Se eu pudesse voltar aos meus primeiros textos eu tomaria outro caminho. Só posso entender a mudança no processo de escrita como algo que seja muito bem-vindo. Talvez eu minta menos agora.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um romance sobre algo que eu nunca li a respeito. Depois das leituras importantes e das histórias pelas quais vivi, é muito difícil pensar em algo que eu queira. Eu sou um cara satisfeito com minha trajetória, vivi bem a bem dizer. Pedir mais chega a beirar egoísmo, um livro que não existe é uma maravilha por si só. Pode ser deixado fora da imaginação.