Keila Mara de Souza Araújo é professora na Universidade Federal do Sul da Bahia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho o hábito de acordar cedo, mesmo quando, eventualmente, durmo mais tarde. Com a quarentena isso tem se alterado um pouco, ir dormir de madrugada não faz bem. Espero que isso seja passageiro, e também todas as experiências ruins desse período inominável. Costumo levantar logo, tomar banho, café da manhã, fazer uma aula online de yoga (@prileiteyoga). Porém, quando tenho compromisso de trabalho muito cedo, não consigo tempo para fazer tudo, então procuro ao menos não sair sem comer, o yoga fica para a noite. Tem dia que nada disso acontece assim, mas tento voltar porque eu realmente gosto de rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor durante o dia e não consigo escrever em qualquer situação, infelizmente. Então procuro organizar as coisas essenciais em volta e, às vezes, ajeitar as emoções aqui dentro. Nos últimos anos, venho escrevendo coisas aleatórias para direcionar as ideias e criar um fluxo de continuação de mim com a escrita, mais proximidade. Para escrever textos técnicos e de crítica, realmente a dificuldade é maior. Parece sempre que falta ler e refletir muito ainda antes de escrever. O que não significa que escrever textos de criação seja menos difícil, a atividade de constante revisão e pesquisa também está presente, só não temos a obrigação de publicar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Por muito tempo eu condicionei a escrita à reserva de um tempo específico e longo para poder sentar, com calma, e escrever. No entanto, isso raramente acontece na vida. Essa mania tece impedimentos e já me trouxe muitos problemas com acúmulo de demanda.
Vejo que o mais adequado, por permitir maior tranquilidade e, com isso, mais rendimento é escrever aos poucos. Aproveitar todo intervalo possível, porque de linha em linha, revisão em revisão, o texto vai crescendo, as ideias vão ficando mais nítidas e o sentimento de satisfação alimenta a confiança necessária para desenvolver um trabalho de maior fôlego e relevância.
Sabemos também que atender à necessidade de pausa para a criação intelectual é bem mais complicado para nós mulheres, criadas para dar conta de tudo. Os homens precisam estar presentes só quando são convocados – eles aproveitam comodamente isso –, já nós mulheres somos levadas a estar sempre atentas, organizando e cuidando de tudo, o tempo todo. A sociedade fez isso por milênios até chegarmos aqui. Para romper com essa ocupação de nossas mentes, precisamos estar em luta constante para criar e realizar o que desejamos. Quando se trata de uma mulher negra, impensável ainda nos espaços intelectuais, deixar nossas ideias ganharem forma é uma prática que devemos abraçar com muito carinho e respeito por nós mesmas, permitindo-nos realizar nossos projetos, mas também reservando um tempo para descansar, porque sim, nós também nos cansamos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita tem várias etapas, principalmente a escrita acadêmica, por estarmos muito envolvidas/os numa vastidão de conteúdos já publicados. É preciso ler, compreender e articular o repertório da revisão da bibliografia, criar a partir da fundamentação, articular dados das investigações, compor reflexões e conclusões. Então, uma estratégia muito válida para pós-graduandos é não demorar muito tempo para começar a escrever. Ler os livros da bibliografia básica, aqueles que vão contribuir para os primeiros capítulos, e já começar a esboçar a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acredito que o maior desafio de cursar um curso de mestrado, mais ainda o doutorado, seja o sentimento de pendência. Fica em nossa mente todos os dias que temos que entregar uma tese. Talvez isso seja pensamento de ansioso, mas é muito comum.
Quando ingressamos num programa de pós-graduação, pensamos “é, agora tenho que parar tudo para escrever”. Porém, a vida não para porque você precisa escrever, ela até capota sobre a gente, mas parar não para. O maior problema desse pensamento começa pela impossibilidade, é improvável conseguir interromper o curso das coisas e se dedicar exclusivamente à escrita.
Penso que muito desse problema tem a ver com a falta de informações que nos orientem para, primeiramente, conhecer os elementos de composição do texto que queremos/precisamos escrever, definir o caminho num projeto detalhado, dividir em etapas totalmente possíveis e dar um passo de cada vez.
A pior estratégia é aguardar ter algumas horas inteiras livres para escrever. É difícil isso acontecer, ainda mais quando a pesquisadora/o pesquisador também trabalha, tem filhos, família, problemas de saúde, um abismo político no país, demandas burocráticas ou tudo junto. O que permite mais chance de funcionar é aproveitar pequenos momentos, seja para escrever duas linhas, seja revisar ou transcrever para o texto da pesquisa os trechos de leituras já destacados (fichados).
Boa parte desses problemas vem de um histórico de ensino da língua materna, ainda muito distanciado de suportes metodológicos para as atividades de criação escrita, o que se prolonga, muitas vezes, ao ensino superior. A prática da escrita acadêmica deveria começar com o preparo, disciplinas e cursos dedicados especialmente ao letramento acadêmico, cujo espaço de desenvolvimento é a Universidade e não poderia ser outro, devido às experiências pressupostas na composição desses textos tão específicos. Algumas instituições têm considerado esse quadro, a exemplo da UFSB, que oferece dois componentes curriculares obrigatórios dedicados ao letramento acadêmico nos primeiros meses da graduação, durante a Formação Geral.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os textos várias vezes e percebo que uma boa revisão do próprio texto depende de um tempo de maturação. Só com um tempo razoável depois de escrever é possível identificar algumas faltas ou excessos, no mínimo uma semana, eu diria. Acredito mesmo que o ideal seja contratar previamente uma revisora/um revisor profissional. É uma garantia maior de que o texto estará rigorosamente revisado e também uma experiência de ter retorno sobre o que escreveu, podendo avançar na qualidade da escrita. Por eu ser professora da área de letras, achava que daria conta da revisão e nunca contratei revisoras/es, mas tenho certeza de que, principalmente durante os cursos de pós-graduação, teria ajudado bastante.
Não costumo enviar meus textos para outras pessoas lerem. Considero ser uma oportunidade bastante frutífera, mas não tive tantas interlocuções. Tenho pavor de dar trabalho aos outros e, como fui a primeira da turma de amigos a dar alguns passos na carreira acadêmica, eu me acostumei a fazer as coisas por minha conta sem medo, submeter meus textos à avaliação e aguardar os resultados. Eu simplesmente escrevo, reviso o quanto é possível naquele momento e envio. Não é sempre, mas quando são textos mais curtos, peço a meu marido que leia atentamente.
No doutorado tive a sorte de ter uma orientadora incrível, a Fabíola Padilha (UFES). Com muito critério, ela valorizava o que eu escrevia e fazia indicações valiosas. Aprendi muito com a Fabíola, uma referência sempre.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha escrita varia muito entre o computador e cadernos. Eu sempre tenho cadernos de anotações por perto, mas também abro logo uma pasta no computador para cada projeto de escrita que quero realizar. É questão de iniciar algo que vai tomando corpo e força gradativamente, linha por linha.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vivemos em constante contato com acontecimentos, informações, pensamentos, leituras, situações desafiadoras e peculiaridades notadas no exercício de observar. Acho que um grande problema que pode surgir é nos sentirmos afastados da escrita, vê-la como algo distante, reservada em um pedestal do tempo, espaço e circunstância velada.
Como disse anteriormente, reservo cadernos para a escrita e tento anotar o máximo possível: inquietações, conclusões breves, versos, aforismos, críticas sociais, ideias para pesquisas, insights, estratégias de argumentação e coisas mais aleatórias.
Essa prática faz com que as ideias se integrem à atividade mental e corporal do gesto de escrever, desmistificando essa atividade, transformando autocobrança em prática sempre presente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou meu repertório, porque nenhum texto nasce sozinho. Também entendi que a escrita tem dinâmica própria. Então não adianta ficar só arquitetando as ideias na cabeça, articulando leituras ou mergulhando em teorias. Muita coisa poderá mudar ao escrever, pois a escrita impõe as necessidades para que aquilo que escrevemos seja um texto – um artigo, um ensaio, dissertação ou tese.
Penso que o principal entrave para a escrita acadêmica nos primeiros trabalhos seja a compreensão equivocada do texto: a ideia de que um texto precisa ser completo, dar conta de todos os desdobramentos do tema. É evidente que, sendo honestos intelectualmente, daremos o máximo de nossa capacidade para que o texto alcance de forma mais assertiva e abrangente o que propõe. Porém, não é preciso abordar e discutir todas as perspectivas e desdobramentos do assunto, mas diretamente dar conta do recorte que propomos, em espaço temporal específico, tendo em vista a contribuição que queremos deixar para nossa área de estudo. Todo trabalho acadêmico precisa estar ciente da possibilidade de continuidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um livro de ensaios. O pensar ensaístico exige visão ampla de tudo: ter lido dos clássicos aos livros esquecidos; ter vivido e sentido; poder escrever sem se afastar; assumir por completo a autoria, ao mesmo tempo não se obrigar a afirmações últimas. Então acho que vai demorar um pouco ainda.