Kátia Borges é escritora, autora de “O Exercício da Distração” e “A teoria da felicidade”.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha rotina mudou bastante. Como dou aulas em um curso de jornalismo, e não parei de trabalhar em momento algum como professora, precisei organizar direitinho o tempo de leitura e de escrita. Apesar do distanciamento social, a pandemia nos aproximou ainda mais dos alunos. Muitos perderam parentes e amigos para a Covid-19, alguns adoeceram, outros tiveram que adaptar seus trabalhos de conclusão de curso. Em um contexto como esse, dar aulas vai além de horários e ementas, exige empenho emocional. Então reservei apenas os períodos de recesso e as férias para escrever de modo mais constante. A única exceção foram as crônicas semanais. No tempo livre, a absurda situação que vivemos me levou a ler compulsivamente e a me dedicar a projetos simultâneos, talvez um modo de manter o equilíbrio, a sanidade. Lancei um livro de crônicas no finalzinho de 2020, A teoria da felicidade, pela Patuá, organizei um novo livro de poemas e já tenho quase pronto um outro, também de crônicas. Mas, em tempos normais, idealmente, prefiro mesmo me dedicar a um projeto por vez. No entanto, estou sempre às voltas com as demandas que vão surgindo. Sou muito inquieta.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Planejo antes, até para que possa fluir. Alguma pesquisa, anotações, depois solto a mão. Então retomo do começo ao fim. Sem a primeira frase, penso que nem há começo. Por menor que seja o texto, por melhor que seja a ideia. Então considero bem difícil, sim. Tão difícil, aliás, quanto a última frase. Se tenho as duas, o texto segue o desenho de um percurso, uma espécie de mapa. Nada impede que a gente se perca, claro.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Anos de trabalho em redações barulhentas de jornal me fizeram ser capaz de escrever em qualquer lugar, sublimando ruídos. Mais recentemente, adquiri o hábito de anotar frases, ideias, trechos inteiros no celular. Nunca consegui manter um caderno, hábito saudável de tantos escritores. Tenho um pequeno escritório em casa, com livros ao alcance da mão, onde me tranco por dentro, literalmente, quando estou escrevendo.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Eu já me considerei bastante procrastinadora, sabe? O que é uma grande injustiça comigo. Hoje, finalmente, aceito que eu sempre fiz o possível dentro da minha realidade, que nunca foi lá muito fácil. Tive que batalhar desde cedo para ajudar meus pais em casa, para ter uma casa. E tudo bem com isso. Tive alguma sorte. Quando fico travada, deixo que o texto descanse. Vou ler um bom livro de poemas, um romance, analiso se aquele é mesmo o caminho, lanço as moedas do I Ching. Geralmente dá certo.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Eu diria que é o mesmo de que me orgulho, um conto chamado O escorpião amarelo, que dá título a um de meus livros. Foi encomendado por um grupo de teatro maravilhoso da minha cidade e usado como um dos monólogos de uma peça que homenageava Nelson Rodrigues. Foi um desafio e tanto, e nunca esqueço a emoção de vê-lo no palco.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Penso que sempre que há algo suficientemente pontiagudo na percepção que temos da vida, somos cutucados. É como ser atormentado pela resolução de uma questão matemática. Há uma lógica, algumas vezes inalcançável, que perseguimos para dar sentido ao que nos incomoda. Nem sempre se consegue, é aquela história, mais vale o percurso. Mais que um leitor ideal ou idealizado, há um diálogo com outros autores, com outros personagens, com outras histórias. Daí a importância da leitura para quem escreve, ao que ele deve o enriquecimento dessa longa conversa.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Não costumo mostrar os meus rascunhos a ninguém, nem mesmo aos amigos mais próximos e queridos. Faço isso muito raramente, talvez seja um defeito. Minha companheira é a única pessoa que lê meus manuscritos e opina sobre eles. Mas, em A teoria da felicidade, apostei pela primeira vez numa pós-produção literária e fiquei muito feliz com o resultado do trabalho feito pelo escritor Sérgio Tavares. Pretendo repetir a experiência.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu escrevo desde que aprendi a ler. Versinhos, pequenos textos em prosa, coisas de criança. Na verdade, não consigo lembrar de um tempo sem leitura e escrita em minha vida. Caso parasse por completo hoje, seria a invenção de uma existência totalmente desconhecida para mim. Quando comecei, gostaria de ter ouvido que escrever é como a vida, que não se destina a nada, e essa é a beleza de existirmos. Mas, certamente, eu nem ligaria naquela época, eu acharia isso uma bobagem.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Creio que enfrentei as dificuldades que são comuns a quem escreve e lê muito. Tentei desde sempre encontrar um caminho. Há muitos autores, muitas autoras, não saberia estabelecer uma gradação entre elas.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Tenho recomendado a leitura de República Luminosa, de Andrés Barba, e da trilogia de Domenico Starnone, sobretudo de Assombrações, o que mais gostei. Há ainda Stoner, de John Williams, que considero um romance essencial. Dois livros incríveis de poemas que li em 2020 e que recomendo são Céu noturno crivado de Balas, de Ocean Vuong, e The Black Unicorn, de Audrey Lorde. Entres os autores brasileiros, gostei muito do romance O coração pensa constantemente, de Rosângela Vieira Rocha, dos contos curtos de Velhos, de Alê Motta, dos poemas de Nilson Galvão, em #NiBrotas, e do livro mais recente de Adriane Garcia, Eva-Proto-Poeta. Falo das leituras mais recentes, as que fiz no final do ano passado e no início deste ano.