Karine Kelly é terapeuta corporal, poeta e performer. Publicou “Anotações sobre o azul” (editora Patuá, 2016) em poesia e “quando gesto vira vento” (selo tremeterra, 2018) em fotopoesia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Os dias costumam começar nas noites que os antecedem, cultivo agendas desde os quinze anos e muito me agrade pensar, antes de dormir, como será o dia seguinte, ainda que entremos em desacordo como o que é possível do corpo cumprir. Acordo cedo e amo acordar cedo desde quando a memória alcança. Quando criança eu era o despertador da casa, como se as horas esperassem por mim. Na minha rotina matinal ideal acordo, faço a saudação ao Sol, faço um banho de ervas e preparo o Suco da Luz do Sol, mas ainda não alinhei desejo e ação, sobretudo nos últimos meses, estou com dificuldade para dormir à meia-noite ou um pouco antes, que é o ideal pro meu funcionamento. Na vida como ela é acordo com direito a 5 min de preguiça, vejo e-mails pelo celular, às vezes preparo banho de ervas, faço um café da manhã simples & rápido e caminho enquanto como frutas, tudo em meia hora, antes das 6h40.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou mais produtiva em qualquer atividade durante a manhã. O ritual é o tesão por verter gestos, pensamentos e sentimentos em palavras mesmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo mesmo quando não estou escrevendo, a todo momento, todos os dias. Ler é escrever poesia, dançar é escrever poesia, assistir a um filme é escrever poesia, ouvir música é escrever poesia, conversar é escrever poesia, comer é escrever poesia, tomar banho é escrever poesia e assim por diante, tudo que toca o corpo poético. Já a materialização da escrita costuma acontecer em períodos concentrados. A escrita constrói seu próprio tempo e nada posso fazer a respeito disso, muito menos impor metas. Tenho metas para demandas práticas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Irregular e dilatado. Sim, é difícil começar, acumulo notas espalhadas por onde passei, principalmente escritas a lápis nos cantos dos livros que li, mas procuro concentrá-las num caderninho que está sempre comigo. Essa mobilidade não acontece de um ponto para outro, pesquisa e escrita se alimentam uma da carne da outra como quem mastiga o próprio braço, que renasce minutos depois, mais forte. Pesquiso sobre assuntos aleatórios, no exercício repensá-los com os olhos da poesia, pesquiso muitas palavras que me aparecem feito mágica ao passo que me escapam o significado, se apresentando novas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Medito, procrastino para dar espaço para que a procrastinação também se canse. Quando publiquei o Anotações, meu livro e estreia, ainda não tinha entendido que é impossível corresponder às expectativas e que o segredo de viver com alguma leveza é não se apegar às ilusões, próprias e dos outros. Não me considero uma pessoa ansiosa para trabalhar em projetos longos, gosto do tempo de convivência com todas as coisas e todas as ideias, esse amparo de duração e distância temporal por vezes é tão perigoso que me esforço para fazer mais coisas num impulso só.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Poucas, do contrário fico insegura, desisto ou enlouqueço. Tentei mostrar algumas vezes para amigos, mas não funcionou, os poucos que procurei se calaram (com desatenção ou receio que eu não estivesse em busca de uma crítica real e sincera, suponho) ou foram gentis demais. Estou trabalhando num novo livro de poemas, escolhi (por enquanto tudo no plano das ideias) três pessoas novas para partilhar olhos comigo neste processo, veremos…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nasci nos anos 90, quando criança já tinha celular, computador, atravessei o boom de cursos focados num futuro que só acontece com e para o avanço tecnológico, mas esses apararelhos todos permancem um enigma para mim, embora esteja nas redes sociais e consiga me virar nesse território. Admiro quem alcança a naturalidade nessa relação, admiro também quem foge de tudo isso e se mantém tranquilo. No processo de revisão do meu primeiro livro fiz alguns poemas e todas anotações importantes num moleskine que foi furtado, fiquei chateada com a perda e aprendi a anotar em mais de um lugar, manter algumas coisas no computador (envio e-mails para mim com frequência), mas as notas em papel seguem imbatíveis, ainda que feitas numa conta a ser paga ou coisa assim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Surgem mais poemas quando leio, danço, observo com a minha respiração integrada ao que se apresenta, então faço uso dessas práticas como formas de ativação e construção do território criativo. Pensar a anatomia humana é um presente, uma aventura, uma engrenagem, um barco. A manutenção da minha criatividade se mostra na sinestesia, no estado de presença, atenção e escuta, viva. Viva como canta Caetano em Nine Out of Ten, para ser sucinta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muito, ainda bem, o motivo permance o mesmo. Eu diria pra não me cobrar tanto por tudo, abraçar a leveza. Levei mais tempo do que gostaria para me aproximar da escrita de mulheres, diria que o caminho primeiro é com e para as mulheres e outras ditas minorias.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ainda não comecei uma vivência literária noutro gênero, quero em algum momento me conectar com esse desejo e desenvolver uma produção potente. O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é feito pelas mulheres, pela população indígena, negra e LGBTQI, pelas silenciadas e a apagadas ao longo do tempo.