Karina Rabinovitz é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou lenta. Gosto do devagar, de vagar, mesmo. Poder não responder ao imediato, mas vê-lo passar em silêncio e rever e rever. Acordar, pra mim, é o primeiro instante desse devagar e como tenho, normalmente, a pressão baixa, acordar lentamente é um presente necessário. A partir daí, o reentendimento do teto, do quarto, das linhas de luz, até a rota banheiro, sala, cozinha, abrindo janela e geladeira. Se for dia em que eu sou obrigada a sair de casa, fazer o café nem sempre me dá prazer, mas nos dias de vagar mesmo, cada ação repetida de pó preto, fósforo acendendo, água quente, garrafa térmica, a coreografia dos objetos, até sentir esse sabor clichê de recomeço, com umas pitadas de canela, me faz ter a vontade de seguir, caminhando sobre os ponteiros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que a tarde foi se apresentando pra mim, como o melhor período pro prazer. E deixando a escrita, nesse lugar de prazer, acontece de serem as horas das tardes boas pra mim, quando há a possibilidade de dias somente para a escrita.
Mas na verdade, não há muita regra nesses meus horários pra escrever. Depende, mesmo, de cada dia.
De ritual que me lembro, só mesmo o silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há uma agonia e uma maravilha, ao mesmo tempo, que me acompanha nos dias, que é desejar e poder estar receptiva à poesia do instante.
É uma maravilha estar aberta, sentir essas inúmeras minúsculas iluminações, mas é uma agonia, ao mesmo tempo, pensar e criar vias de fazer essa tradução com palavras e não apenas, viver essa poesia.
Em muitos momentos fica pulsando o medo de perder a captura da poesia e conseguir uma forma de imprimi-la no papel, pra depois ainda, fazer novas construções, a partir desse amontoado de versos, palavras, anotações.
Os cadernos de estimação são tatuados com essa agonia da tradução inicial, ou às vezes, qualquer pedaço de papel mesmo: anotações em lista de mercado, em envelope de correspondência, em canhoto de ingresso, em post-it, em página de algum livro que estou lendo.
Mas claro, depois de tanta agonia de anotar, mais que simplesmente viver, há de se organizar os períodos de composição das anotações, reescrevendo, concentrando-se nas invenções.
Só que há tantos desvios possíveis até o momento da res-piração certa pra escrita… uma olhada nos emails, um passeio pelas redes sociais, com possibilidade de se perder, as demandas da conta corrente, sem falar naquele abatedouro horário de expediente, se houver.
Acabo (e começo) escrevendo dentro desse caos, feito de ais, feito de cais. A dificuldade e a possibilidade tensionadas, cada uma segurando um lado da corda e eu tentando me equilibrar sobre ela.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Penso sempre nesse processo de juntar o abstrato, tornar concreto, pra depois, a leitura deste concreto, levar a novos abstratos.
Fico com isso guardado, pra tentar ficar cheia de abstrato nas mãos, pra erguer esse concreto.
A hora que a escrita começa é mesmo antes de qualquer anotação, esse vagar por lugares, pessoas, leituras, estar consigo, estar com o outro, estar consigo de novo.
Como eu vario muito entre o concreto e o abstrato, naturalmente, na minha vida diária, gostando de estar tanto em um, quanto no outro, passeando frequentemente nessa ponte chão-céu, a hora de construir andaimes sobre o mar não fica tão complicado, apesar de dar muitos nós. O embaraço e o desembaraço são bem comuns nesse movimento.
Depois de ter juntado versos, palavras, anotações, geralmente digito tudo, num único arquivo e enquanto vou digitando já vou criando poemas, escrevendo novos versos, o que vai puxando a necessidade de novas pesquisas, reabertura de dicionários e contato com outros objetos, técnicas e procedimentos de criação.
Também posso imprimir esses versos, palavras, anotações digitadas e uma vez impressos, recorto-os e distribuo pelo chão da casa, pra ter uma visão panorâmica deles, juntos, buscando conexões, composições, novas ideias.
Essas são algumas possibilidades do processo, mas esses movimentos variam muito, de acordo com qual o caminho inventivo da vez.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Algumas vezes organizo tabelas bonitas, coloridas no Excel, de metas diárias, semanais ou mensais e volto a essas tabelas, todos os dias, como uma espécie de jogo comigo mesma, sabendo que não necessariamente vou cumprir o que me propus, podendo inclusive, me perder dentro da tabela, fazendo mil ajustes diários, e ela ser mais um desvio, mas que ao mesmo tempo, me ajuda a atravessar esses desertos.
Também gosto de responder a esses períodos através do recuo.
E acreditando que vai passar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não dá pra fazer essa conta, especialmente quando se tratam de poemas. Cada um tem sua trajetória particular, alguns passam anos guardados e são reescritos, revisados, a cada leitura; outros são relidos diversas vezes, numa mesma noite e amanhecem se achando prontos. No momento de composição de um livro, à medida que vou costurando um poema no outro, agrupando alguns e tentando dar sentido ao todo, são feitas novas revisões e depois que o livro é publicado, se for reler, com certeza serão feitas mais revisões, porque pronto, pronto mesmo, acho que eles nunca estarão.
O olhar mais vibrátil e inquieto que conheço (com o qual convivo) é o de Silvana Rezende, artista, minha companheira em inúmeras criações artísticas, intervenções urbanas, livros, vida. Pra ela mostro alguns vários poemas e essa troca rende, muitas vezes, mudanças essenciais de determinadas palavras, versos e sentidos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A maior parte das vezes é à mão e depois digito. Essa coisa da ação da mão no desenho das letras, palavras, é como se me desse a chave de acesso ao salão inicial da escrita. Às vezes decalco palavras, letra por letra, não só pelo prazer do desenho, mas como se aquele ato também meditativo, pudesse abrir alguns portais, especialmente dos milhares de sentidos e palavras dentro de uma só palavra.
Mas isso não impede de também poder iniciar a escrita, diretamente no computador ou ainda no celular, mas este último eu uso mais, pra registrar palavras e versos, quando estou sem possibilidade de caneta. E o que acaba acontecendo é que depois eu passo esses registros digitais, pra um caderno, escrito à mão, pra mais tarde, ainda, passar de volta ao digital, em arquivos que vou organizando no computador. Acaba sendo um exercício de reescrita da mesma coisa, diversas vezes, o que vai fortalecendo os músculos daqueles versos ou demonstrando sua fragilidade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nunca havia pensado nesta possibilidade de um conjunto de hábitos cultivados pra me manter criativa. O que sinto é que uma série de atividade que me dão prazer, certamente, alimentam minha criatividade ou meu desejo de invenção. Soltar meu corpo na praia, caminhando, sentado, cavando, parado; mergulhar no mar, me deixar em banho-maria, boiar; ouvir, ver, tocar, ler outras obras artísticas; ler, especialmente, poesia; praticar yoga, meditar; conversar horas com Silvana, à vontade pra divagar sobre qualquer assunto, deixando o fluxo de pensamentos livres e ouvindo, atenta, o fluxo de ideias e conexões dela; assistir o movimento cotidiano ao redor, especialmente nas ruas; contemplar de maneira excessiva e generalizada, enfim, contemplando, planto nuvens.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em primeiro lugar, mudou minha maturidade, com ela um aprofundamento maior da pesquisa, dos processos de criação. Também uma dedicação maior ao tempo da invenção, dos experimentos, da digestão de cada texto. E uma fissura, cada vez maior, pelos momentos do trabalho minucioso com a palavra.
Não sei o que eu diria a mim, na época da escrita dos primeiros textos.
Olhando daqui pra lá, vejo inúmeras coisas que não gosto mais, que eu faria diferente, mas compreendo que é injusto voltar lá atrás, pra me dizer qualquer coisa, a partir do que eu sei hoje.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Talvez o que eu gostaria de fazer, que ainda não comecei seria não projetar, não planejar. Isso eu não consigo fazer ainda, nem consigo começar…
Em relação ao livro, o que eu pensei não foi um que eu gostaria de ler e ainda não existe, e sim livros que eu gostaria que tivessem existido de outra maneira, que nos restituíssem a glória, mudando o curso da História, que seriam a bíblia, o alcorão, a torá, a cabala, a codificação espírita, o tripitaka e o mahabharata, escritos por mulheres.