Júlio Pimentel Pinto é professor no departamento de história da Universidade de São Paulo.

Como você começa seu dia? Tem uma rotina matinal?
Levanto-me bastante cedo – perto das 5h30 – e cumpro a rotina doméstica (alimentar os cachorros, preparar o café da manhã de minha filha, tomar café com minha mulher, etc). Em seguida, quando pretendo escrever (o que não ocorre todos os dias, porque sou prioritariamente professor, o que implica diversos encargos cotidianos), sento-me ao computador e inicio o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando comecei a escrever (artigos, teses, etc), em meados dos anos 1980, escrevia sobretudo na madrugada. Era solteiro, morava sozinho, dava aulas de manhã e à noite. Lá pelo início dos anos 1990, não sei bem por quê, passei a preferir escrever pela manhã. Em 98 me casei, no ano seguinte nasceu minha filha, a carreira universitária avançou – tudo isso acentuou essa tendência. Ou seja, há cerca de vinte e cinco anos escrevo quase exclusivamente pela manhã, avançando, quando é possível, até a metade da tarde. Não faço nenhum ritual de preparação. Apenas mantenho, a meu lado, na mesa, um copo de água, que é frequentemente reabastecido. De vez em quando – ao final de um texto ou de uma parte importante dele -, me presenteio com um café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse antes, sou prioritariamente professor e os compromissos acadêmicos impedem a escrita diária. Escrevo quando pretendo produzir um artigo ou livro. Nessas ocasiões, escrevo todos os dias, entre quatro e oito horas – o tempo que tiver disponível ou em que o corpo e a cabeça resistirem. Não tenho meta prévia; em geral, há um momento em que bate o cansaço – é meio instintivo – e interrompo o trabalho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Leio. Leio. Leio. Muito. Organizada ou desregradamente. Faço anotações nos próprios livros, de forma algo selvagem (à margem das páginas, no meio das linhas, nas folhas finais). Gosto de acreditar que, enquanto leio, as ideias amadurecem de forma meio mágica – na verdade, é claro que não há magia, mas uma espécie de consciência profunda que vai combinando os elementos e inventando significados e sequências. Esporadicamente, uma ideia ganha mais força e eu a anoto numa caderneta que uso para esse fim – registro numa página dela a proposta geral do texto e vou reunindo ideias e possibilidades que me ocorrem durante as pesquisas, as leituras e os estudos. Num determinado momento, sinto-me pronto para escrever; é então que vou para o computador. Penso muito enquanto escrevo e, quase sempre, é na escrita que o texto de fato se desenha. Consulto as anotações nos livros com frequência. E a caderneta… Em geral, ignoro o que lancei lá. Só quando já escrevi a primeira versão do texto é que a revisito – se tudo o que está lá já foi incorporado ao texto, volto a fechá-la e a esquecê-la. Se alguma observação que encontro nela ainda não está no texto e me parece importante, a incorporo numa segunda versão do texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Felizmente nunca experimentei uma “trava na escrita”. Tampouco procrastino: sou prussianamente disciplinado e trabalho em casa da mesma forma como trabalharia se tivesse que bater ponto numa firma. Projetos longos tampouco afligem: a experiência da vida acadêmica e das diversas teses que temos que fazer torna habitual, pois necessária, a demora na conclusão dos escritos.
Já o temor de não corresponder às expectativas, próprias e alheias, sim, incomoda. A idade e a experiência – escrevo com frequência desde 1982 e, confesso, adoro escrever – ajudam a enfrentá-lo, mas ele persiste. É algo inevitável e contínuo, reaparece a cada novo texto ou a cada frase e parágrafo. As sucessivas leituras e reescrituras de cada texto talvez ainda sejam o melhor caminho para lidar com esse medo e esconjurá-lo. Mas ele nunca desaparece e mesmo depois que o texto é publicado, se relido (o que evito fazer, inclusive porque posso ter a má surpresa de encontrar uma interferência indevida de algum revisor desatento), continua a incomodar, faz com que se tenha vontade de alterá-lo aqui e ali, de reescrevê-lo inteiro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso, corrijo, altero, às vezes reescrevo partes inteiras, remonto diversas vezes. Não tenho um padrão. Às vezes, três ou quatro redações resolvem – ao menos na aparência. Às vezes, dez, vinte releituras e ajustes parecem insuficientes.
Raramente mostro a outras pessoas antes de entregá-los às revistas ou editoras. As revistas acadêmicas têm pareceristas e os diálogos com eles frequentemente são férteis e ajudam a melhorar os textos. Quando se trata de livro, o editor também contribui bastante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei a escrever, escrevia à mão e depois datilografava; nunca consegui escrever diretamente na máquina de escrever. No final dos anos 1980, época do mestrado, passei para o computador – o mestrado foi escrito metade à mão, metade no computador. De lá para cá, escrevo exclusivamente no computador. Tenho uma tela gigantesca na minha frente, 27 polegadas, que permite a abertura simultânea de dois “documentos”, facilitando cotejamentos e deslocamentos de fragmentos de textos para uso posterior ou remontagem. Acho que o tempo de digitação no computador coincide com o tempo do meu raciocínio. A visualização da palavra escrita também me é essencial, inclusive para medir seu peso, sua força e precisão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minha escrita não é imaginativa, pelo menos no sentido profundo da palavra. Sou historiador e crítico; logo, tenho outros compromissos, distintos do da imaginação. Mas claro que há imaginação na história e na crítica. E a criatividade ocasional de minha escrita vem – tenho absoluta certeza disso – do que leio. Borges fazia questão de repetir algo óbvio, mas que muitas vezes é negligenciado: qualquer pessoa que escreva, antes de ser escritor, é um leitor. E são as leituras que movem a escrita, consciente ou inconscientemente, de maneira direta ou de viés.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Minha escrita se tornou mais enxuta, mais direta, mais objetiva. Treinei muito, exaustivamente, e continuo a treinar, escrevendo todo tipo de texto. Isso ajudou a evitar desvios, exageros, metáforas desmedidas, etc. Ajudou a valorizar mais os substantivos e, dentro do possível, a economizar adjetivos e advérbios (o que é um custo, pois adoro advérbios).
Se voltasse à escrita das minhas teses, reescreveria cada uma delas mais quatro ou cinco vezes, me imporia a obrigação de reduzi-las em, pelo menos, um terço, eliminaria alguns milhares de artigos e complementos desnecessários.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever ficção – forma breve: contos -, mas não tive ainda espaço, oportunidade e, mais provável, coragem. Sobretudo porque dificilmente ficaria satisfeito com qualquer texto ficcional que escrevesse.
Não consigo imaginar um livro que não exista. Há tantos ainda para ler ou reler, e uma vida tão curta para eles…