Julio Lourenço é escritor, autor de Melanina.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Estou em pleno processo de transição. Antes, eu costumava começar o dia escrevendo e continuava tentando laçar ideias e palavras arredias até o meio da tarde, com intervalos para almoço, lanches e outras necessidades básicas. A alma vivia em gozo constante, mas o corpo não gostou muito do abuso. Em nome da harmonia, agora mudei radicalmente a rotina.
Graças ao privilégio de morar em uma cidade pequena, onde a natureza ainda é relativamente preservada, desenvolvi o hábito de acordar cedo e tomar o café da manhã na varanda, para usufruir melhor o contato com o ambiente ao redor. Este mágico lapso de preguiçosa perplexidade, que pode aparentar um gasto de tempo inútil para quem impõe o ritmo veloz das grandes cidades como parâmetro de produtividade, é o que me alimenta o espírito e renova a inspiração para escrever.
Recentemente, aprendi também a importância de passar mais tempo à luz do sol e entre amigos, para equilibrar o silencioso período de introspecção à meia-luz que necessito para escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Apesar de ainda ter a sensação de que trabalho melhor na parte da manhã, agora começo a escrever somente após o almoço e vou escarafunchando o pensamento e pastando a gramática até o dia anoitecer.
Nunca tive um ritual de preparação propriamente dito, mas, com a mudança de horário, passei a tomar um café bem forte, sem açúcar, antes de iniciar o trabalho. Não sei se isso conta como ritual, mas dá uma boa sacudida na preguiça e parece fazer as ideias fluírem com mais vigor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou elaborando um projeto mais denso, como novela ou romance, trabalho no escritório durante seis horas, praticamente todos os dias (exceto domingos).
Minha meta diária é fechar, em média, uma página por dia. Pode parecer pouco, mas costumo aproveitar apenas uma décima parte do material escrito, além de fazer muita pesquisa enquanto desenvolvo a narrativa e ter um ritmo naturalmente pausado, com alguma dose de dispersão e muita desorganização, que a duras penas tornei produtiva.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo sempre começa de forma caótica. A partir de uma ideia central, que orienta a narrativa, vou tentando organizar o caos, fazendo um milhão de pesquisas sobre os mais diversos assuntos (o que toma bastante tempo, mas proporciona muito prazer), e um milhão de anotações, para enriquecer a trama da história e o caráter dos personagens.
Quando já estou bem municiado de apontamentos, a primeira página, em geral, flui espontaneamente. Depois o fluxo engasga e o índice de aproveitamento cai para mais ou menos uma página interessante a cada dez laudas escritas.
A certa altura da investigação inicial, a escrita, em estilo literário, começa de forma automática, vazando pelos poros sem aviso, como represa saturada, mas a pesquisa continua, dia após dia, seguindo o desenrolar do texto até o final da história.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O embate é duro, mas a vontade de escrever é diária e, durante a execução de um projeto, não costumo procrastinar o trabalho.
O medo maior é não corresponder às minhas próprias expectativas, embora a opinião dos leitores seja fundamental para apurar o senso crítico e afirmar o próprio estilo. Acho que estou conseguindo dominar a ansiedade de trabalhar em projetos longos, com extensas e variadas pesquisas, sem perder a qualidade pretendida, adotando o formato de novela (mais leve e compacto) ao invés de perseguir obstinadamente o formato de romance (mais robusto e complexo).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sentir que o texto está pronto para ser publicado sempre foi meu maior dilema. Por excesso de esmero, jamais consegui dar um romance por terminado, até resolver mudar de formato e escrever uma pequena novela antirracista, cujo processo de elaboração ajudou a resolver o dilema. Para poder terminar este livro, planejei um ano inteiro de dedicação quase exclusiva. Pesquisei e escrevi durante seis meses e passei outro semestre revisando o texto infinitas vezes.
Além de mostrar o texto à minha generosa esposa, primeira e insubstituível leitora, acho importante sempre recorrer a uma leitura crítica profissional, antes de cogitar a publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tecnologia é uma faca de dois gumes. Utilizada com prudência, pode ser uma mão na roda, do contrário, vira uma grande armadilha, quiçá um armamento nuclear. Custei um pouco a fazer amizade com o computador. A coisa parece estar sempre querendo sabotar o trabalho, cheia de vontade própria. Depois que aprendi a respeitar as idiossincrasias da máquina, acho que estamos nos entendendo melhor. No que depender de mim, não quero mais outra vida.
O início do processo de elaboração, porém, ainda é todo feito à base de caos, papel e caneta. Não sei se algum dia serei mais organizado, mas, enquanto o método for divertido e produtivo, nem penso em mudar.
Tenho também um caderninho de bolso com uma caneta acoplada, geralmente a poucos passos de distância, onde anoto várias ideias e divagações esparsas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias costumam brotar com certa facilidade na minha cabeça, desde que eu mantenha o solo bem irrigado e fértil. Difícil é dar conta do turbilhão, separar o joio do trigo, o factível do devaneio, traduzir o jorro em palavras, extraindo apenas o que dá para refinar e transformar em algum tipo de manuscrito.
Não cultivo hábitos propiciatórios porque já sou excessivamente criativo. Minha grande dificuldade é mesmo realizar, transformar o fluxo criativo em algo inteligível. Talvez com o passar do tempo (uma vez que ainda estou na flor dos sessenta anos), eu consiga ser menos profuso e mais profícuo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o tempo, acho que aprendi a condensar as ideias e conceitos que pretendo passar através da literatura, fazendo o processo caber em formatos e propostas mais leves, sem precisar abrir mão da profundidade. Escrever um romance possibilita um mergulho mais profundo, sem dúvida, mas creio que seja um desafio insuperável no momento. Além de ser pouco organizado para poder nadar nas vastidões do romance, como leitor, prefiro muito mais as minhas novelas.
Se pudesse voltar no tempo, o conselho que daria a mim mesmo seria prático: largue tudo o que não te dá prazer, simplifique a vida e não pare de escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou me preparando para começar a escrever uma série de livros de ficção histórica acompanhando a formação do Brasil, desde a chegada das primeiras caravelas até a mais pura especulação, em um futuro aparentemente distópico. Ainda não resolvi qual livro da série escrever primeiro ou se devo guiar o projeto pela ordem cronológica.
Gostaria de ler algum tipo de ensaio sobre o sentido da vida, simultaneamente divertido e erudito, cujo argumento fosse, também ao mesmo tempo, completamente agnóstico e totalmente digno de fé.