Julie Dorrico é descendente do povo macuxi e doutoranda em teoria da literatura na PUCRS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia com uma xícara de café e uma leitura do que escrevi anteriormente, para revisar se não vou me repetir na tese. Me programo para que essa rotina matinal e diária seja semanal, para no fim de semana poder descansar e voltar com a cabeça leve ao trabalho da escrita. Acho fundamental saber equilibrar o trabalho e o descanso, no fim das contas, a única pessoa que sofre com o excesso somos nós mesmos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu melhor horário de trabalho é com a luz do sol, portanto, não costumo ler à noite, se não for obrigada. Meu ritual de escrita funciona assim: delimito o tema que vou fazer a redação, por exemplo, vou escrever sobre como os autores indígenas definem o movimento literário indígena brasileiro, separo uma bibliografia de livros, entrevistas, artigos acadêmicos, leio todos, e com uma visão mais sistemática escrevo a ideia geral.
Esse texto-rascunho é arquivado e eu sigo para a análise das obras. Analisadas as obras, arquivo-as também e volto a trabalhar com a primeira parte do texto. Isto para não cair na sedução do texto, na ilusão de que ele já está pronto tal como rascunhei. Geralmente na primeira leitura os meus textos aparentam estar completos, sem necessidade de revisão. Mas se você os guardo, e finjo esquecê-los, na maior parte das vezes durante a revisão percebo as armadilhas, ou ausências, ou os complementos que faltam para ele ficar lúcido ao leitor. Essa tem sido minha estratégia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu procuro escrever todos os dias um pouco de teoria. Todo dia procuro ler e escrever teoria sobre literatura indígena. Mas às vezes não dá certo por causa das leituras que faltam para elucidar ou complementar o que estou escrevendo. Estabeleço a meta diária de duas a três páginas por dia, sempre tendo em mente de atingir o equilíbrio entre minha voz e as vozes dos autores das referências. Em minha experiência, se você, no meu caso estudante, escreve só aquilo que pensa, vira especulação; se você escreve só aquilo que os autores já estabeleceram como paradigma, vira repetição. Então, é importante achar o equilíbrio entre a sua tese e o suporte que você está usando para fortalecer seu discurso, ter o cuidado de não aterrar o que se quer defender, no arcabouço das referências.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever é muito difícil. Já tive o esqueleto todo da minha tese na minha cabeça, na minha agenda e computador. Estava confiante de que com o esquema que eu já visualizara mentalmente, que eu já sonhara inclusive, eu facilmente colocaria no papel e estaria tudo certo. Mas não foi o que aconteceu. Eu simplesmente congelei quando ao passar para o papel me dei conta de que a escrita que eu tentava dar forma não tinha uma lógica muito clara e precisava de outras explicações.
A escrita tem essa mágica, à medida que você vai escrevendo você vai percebendo a falta e o excesso dela. E ela me disse que os caminhos que eu estava tomando não satisfaziam o desejo da minha expressão. Então eu recomecei, com base naquilo que eu já tinha escrito, para dizer exatamente o oposto.
É preciso ter ideia do que se quer defender, no caso da escrita acadêmica, porque quando você começa, dá pra ter uma noção se o alvo do começo vai se transformar em outros alvos ou vai permanecer o mesmo do início do trabalho. Por isso é importante o exercício da escrita apesar do medo, das dificuldades, das inseguranças, e mesmo dos excessos de confiança.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Todo estudante que tem prazo lida com as dificuldades de materializar o que está no mundo das ideias. Mas, eu penso que quando se tem um engajamento com o tema, a perspectiva se dá de modo diferente. A escrita de um artigo acadêmico deixa de ser apenas uma atividade a ser cumprida para constar no relatório de bolsista, ela passa a ser um veículo para a comunidade acadêmica e para a sociedade em geral conhecer mais sobre a sua pesquisa e a importância dela. É bem clichê dizer isso, mas quando se pesquisa um tema que faz sentido para sua vida pessoal, as dinâmicas das atividades se projetam como um meio, não um fim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Geralmente reviso duas vezes o texto e faço uma leitura geral. Também participo de um grupo de pesquisa em que escrevemos juntos artigos acadêmicos sobre literatura indígena. O texto passa pela revisão dos outros dois autores, contando com umas várias revisões.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo os rascunhos já no computador. Contudo, minha forma de aprender sobre um tema ainda é o de ler, fichar no caderno, e fazer síntese em tópicos no próprio caderno. Dessa forma, ainda utilizo a tecnologia de escrever à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm da leitura da literatura indígena que passa pela cultura dos autores. Como são de diferentes etnias, Daniel é do povo Munduruku, Eliane do povo Potiguara, Márcia é Omágua/Kambeba, Cristino é Wapichana, vou conhecendo suas narrativas, processos criativos, modos de vida tradicionais, suas relações com a sociedade envolvente e suas lutas políticas. Tudo isso me inspira a escrever academicamente e publicizar ao maior público possível para que conheçam essa expressão literária desses sujeitos indígenas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo. Diria para escrever sobre temas que fizessem sentido para mim. Nessa grande teia da vida, usando a metáfora de Daniel Munduruku, tenho visto que quanto mais me envolvo com as pesquisas indígenas, mais me sinto em casa. É como se a literatura indígena fosse meu caminho para o encontro com meus ancestrais.
Escrever sobre isso não diz respeito apenas à pesquisa que desenvolvo, mas sobre minha identidade indígena. Esse processo me dá sentido, motivo para continuar todos os dias de manhã ao lado de meu café. Graça Graúna tem um poema chamado “Escrevivência” que traduz minha jornada, de como me sinto, de como me realizo. Ela diz:
Ao escrever,
dou conta da ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho a intenção de publicar um livro que trata do trânsito entre os mundos indígena e não indígena que cresci. Ele começou a ser esboçado, mas ainda deve esperar para nascer. Talvez eu ainda não esteja pronta para trazê-lo ao mundo. Esse tempo preciso respeitar. Preciso ouvir mais o que as experiências que estão dentro de mim vão de dizer. Enfim, tudo que sei é que ainda não é chegada a hora de chamá-lo de livro.
Os livros que ainda não existem, mas que anseio ler são os dos povos tradicionais que ainda não contaram suas histórias pessoais e coletivas. Tenho esse sonho de ver as vozes indígenas de todos os povos originários brasileiros publicadas em suas próprias autorias. Quem sabe, talvez ainda consigo ver esse projeto se realizar.