Juliana Monteiro é escritora, jornalista, mãe, feminista e de esquerda.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As primeiras horas do dia são minha especialidade. Ainda não se impôs o imperativo de escrever. Acordo cedo, preparo o café da manhã das crianças, ajudo o mais velho a se vestir, a pequena arrumo como se vestisse uma rainha ou uma atriz, faço tranças nos cabelos, prendo atrás num rabo. Ela gosta. O mais velho descreve o gol que fez no sonho, contorcendo o corpo para imitar um drible e eu imito um maracanã inteiro. Ajudo-os a escovar os dentes, colocar os casacos quando é inverno, capas quando está chovendo, protetor solar quando é verão e dou tantos beijos, para que durem, os últimos os damos nas palmas de nossas mãos para guardá-los, os beijos, no bolso, para qualquer emergência. Eles vão para a escola e só nos veremos no fim do dia. Depois, café, um cigarro e as notícias do dia, não suporto a ideia de estar desatualizada, sou jornalista, minha primeira formação, mas não deve ser por isso. Tem a ver com não deixar as coisas desmoronarem. Depois dessas primeiras horas de competência, que luto para não prolongar, começa a agonia do que tenho que fazer, a partir desse momento já sou eu tentando. Sempre tenho que fazer muitas coisas, mas a agonia é porque preciso escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor quando tenho tempo, quando não preciso checar as horas, quando não serei interrompida, mas gosto de começar o processo de escrever de manhã cedo. Preciso de tempo para me alienar, antes mesmo de me sentar em frente aocomputador. Pensar em coisas sobre as quais poderia escrever, ler alguma coisa por prazer, cantar algo bonito. Sempre escrever outra coisa. Sempre tenho outra coisa que quero escrever antes daquela em que estou trabalhando. Às vezes vira um post no Facebook, uma carta para uma amiga, uma mensagem num grupo que não me estranha, uma nota que nunca mais voltarei a olhar. Depois reunir tudo que preciso na escrivaninha, chá ou café, lápis e papel, livros, caderninho, cigarro, cinzeiro. Só começo quando não posso mais adiar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias o que preciso, mas não necessariamente o que quero ou tenho que escrever. No mundo ideal, me sentaria em frente ao computador às 10 da manhã e levantaria às 5 da tarde, prefiro não anoitecer escrevendo. Mas eu sempre tenho muita coisa para fazer. O arroz, catar os brinquedos, guardar as roupas, responder e-mails, mensagens, resolver um problema de documento, passar no mercado, na costureira (que duas vezes por mês remenda os joelhos das calças do uniforme do meu filho), eventualmente tenho que ir ao consulado, à polizia, à comune. Estudo psicologia em uma faculdade semipresencial então, quando não tenho que ir ao campus, preciso terminar pelo menos due lezioni, em casa. Estudo numa língua que não domino, o que torna tudo mais difícil e lento. Então, escrevo quando dá. Quando a pressão fica grande demais, escapo, passo uns dias fora, minha família se organiza, sabe que é uma condição vital para mim.
Metas diárias de escrita, sempre tenho, nunca as cumpro. Esta entrevista, minha meta era entregá-la há um ano.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Todos os dias é difícil começar a escrever o romance. Sentar no computador, abrir o arquivo, reler as últimas linhas escritas, tentar sair delas, é difícil. Preciso de tempo, para que a história me tome e eu já não precise pensar na próxima palavra, esse é o momento que importa, isso eu chamo de escrever. Passar para o computador o que, em algum lugar, já existe.
Escrever qualquer outra coisa, no entanto, é fácil e prazeroso. É bom escrever uma carta longa, desenvolver a ideia que tive enquanto tomava banho, sair do chuveiro e gastar duas horas nela. Isso é bom.
Quanto à pesquisa, não a separo da escrita, são processos concomitantes, frequentemente funciona como um mise en place ou inspiração para a escrita. Adoro a pesquisa e escrevo muito enquanto leio, acontece que num momento estou escrevendo mais do que estou lendo, mas não sei se paro de pesquisar em algum momento.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com as travas e a procrastinação não lido, guerreio. Perco a maioria das batalhas, não desisto, mas reconheço a superioridade do inimigo. Não me ocupo tanto com expectativas, alguma ansiedade, sim, sempre acho que não vou conseguir chegar ao fim. Simplesmente escrevo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos nunca ficam prontos e eu os reviso até o momento em que não aguento mais olhar a página e desisto. Ou até o deadline. É verdade que, de vez em quando, reconheço algumas linhas prontas. Quando isso acontece é milagroso.
Tenho muita dificuldade em mostrar meu trabalho para quem quer que seja, quando mostro tenho que me separar dele, amputá-lo de mim. Não consigo mais sequer falar dele, é um estranho. Acho que o que tem de “meu” no trabalho é o escrever e não o escrito. Por isso mostrar enquanto escrevo é intolerável.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Notas têm que ser escritas à mão. Quando eventualmente as escrevo no computador ou no celular, elas se perdem, nunca mais volto a consultá-las. Mas todo o resto escrevo no computador.
Quanto à tecnologia, eu a amo quando diminui a distância entre meus afetos. Quando posso acessar rapidamente um conteúdo que de outro modo não seria possível. E a odeio quando invade meus silêncios, quando é impertinente com meus tempos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm do que vejo e sinto quando estou sozinha. Ou acompanhada, mas conectada com meus sentidos e sentir à ponto de criar uma experiência de solidão. Também do que já passou e do que não passa nunca. Os estados melancólicos ajudam, alguma dor ajuda mais. Alegria atrapalha, prefiro abrir uma cerveja quando estou alegre. Música ajuda. Medo também. Caminhar pelas ruas, andar de bicicleta por Roma, viajar. Sobretudo, ler literatura. Nada ajuda mais do que terminar de ler um romance arrebatador e plagiar descaradamente o que me fez vibrar no autor. Não sou criativa, o que tenho pra contar já está.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Era mais fácil, sem dúvida, escrever é cada vez mais difícil. Antes eu caminhava mais distraída e a escrita era mais integrada à vida, estava sempre aquecida para escrever, as palavras diziam, ainda que não dissessem bem. Acho que a dificuldade vem de querer dizer bem.
Diria a mim mesma para não ceder à cafonice ainda que todo o texto em volta tenha sido escrito apenas para encaixar aquela sentimentalidade. Diria que é preciso resistir a ela, deletá-la sem remorso. Se não for possível, cortar então tudo que puder em volta, por mais redondo que esteja e deixá-la, a cafonice, brilhando sozinha no texto. Se escolher a cafonice, tirar qualquer outra imagem, não cabe sequer um adjetivo. Talvez eu ainda me diga isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Essa pergunta é a imagem da minha insônia. Talvez minha aventura se resuma a isso, ao que escrevi enquanto tentava o livro que gostaria de escrever.