Juliana Berlim é escritora e professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo meu dia acordando, o plano inicial sempre é esse. Costumo acordar cedo, por volta das 6h, para o trabalho acordo às 5h, em épocas de insônia acordo às 2h e levo umas duas horas para voltar a dormir, nesses casos costumo acordar de novo às 7h. O plano seguinte é justamente encontrar uma rotina. Eu realmente funciono mal de manhã, é impressionante que eu consiga ser tão direcionadora no meu trabalho, já que sou professora, mas é o senso de responsabilidade: existe uma adulta envolvida no processo, que sou eu, se eu não estiver interessadíssima no trabalho, eles adolescentes com certeza não estarão às 7h. Na verdade, minhas manhãs se norteiam hoje em torno do balé: faço tudo em função das aulas de dança, que começam às 9h. Tempos atrás eu tinha uma disciplina militar de afazeres, cada dia incluía um tipo de tarefa, rotina da qual, admito, gostava muito: tenho procurado a todo custo retomá-la, porque, quando se mora sozinha, operar com disciplina é muito melhor. Olhando com atenção, eu tenho a seguinte rotina matinal: acordar, tomar banho, olhar as redes sociais e postar um monte de notícia com chamada engraçada ou indignada e ver em seguida a curtida de amigos tão ou mais insones do que eu, o que me mata de rir, tanto sonâmbulo vendo Facebook junto às 4h ou 6h da manhã, realizo algumas tarefas domésticas, vou pro árabe tomar café e depois balé ou vice-versa, balé e depois o árabe. Noutro dia comecei a manhã um pouco diferente e fui ler um artigo do Safatle sobre o Adorno e me deu uma saudade de ler esse teórico tão importante na minha formação, um amor à primeira leitura, me deu saudade da Escola de Frankfurt, e pensei que sim, valia mais à pena ler sobre Adorno, por exemplo, do que ficar nas redes passando raiva com as notícias do Planalto. Estou em um movimento de incluir mais leitura neste meu despertar. Em meio às atividades, vou ver se leio mais tudo isso que tenho guardado aqui no apartamento pelas estantes, ao som das minhas músicas dos anos 80 e ao sabor de mate, porque até tomar um mate é como se o dia não tivesse começado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depois das 10h da manhã, qualquer hora é boa. Desde a adolescência tenho este ciclo corpóreo. Se escrevo antes, é algum trabalho iniciado em dias anteriores, força de alguma circunstância, exigência de trabalho. Mas, apesar de esses serem os limites da minha preguiça, eu me adapto bem a mudanças de rotina. Se estivesse em uma residência artística, em um desafio artístico qualquer que me obrigasse a acordar cedo e escrever, eu escreveria. Um bom momento para se escrever de manhã é enquanto se espera um namorado dorminhoco acordar. Dá para escrever uns cinco microcontos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente eu escrevo bastante, não necessariamente todos os dias, mas todos os dias estou de alguma forma envolvida com uma história. Como voltei a me colocar os desafios dos concursos literários, e ainda há as antologias de que se quer participar, e os convites irrecusáveis, e eu sou workaholic, só consigo cumprir os prazos escrevendo com certa disciplina, isto é, escrevo durante um certo período todos os dias ou paro alguns dias específicos durante algumas horas para escrever. Quanto a meta, eu não me imponho nenhuma específica, mas vendo a rotina de escrita dos meus amigos no Facebook, que postam quantas palavras escreveram em determinado dia, acredito que um certo ritmo de escrita é bom sim. Um microconto interessante pode ser escrito com trezentos caracteres. Mesmo com muito cansaço, dá para se estabelecer esta meta. Eu estou escrevendo mais quando começo um novo projeto porque tenho aumentado o tamanho dos meus contos e porque estou pegando um ritmo legal de escrita. Resumindo: não tenho uma meta diária, mas seria bom ter, porque isso dá a exata dimensão da produção escrita como um trabalho, que, até mesmo realizado de modo casual, pode gerar resultados satisfatórios. Fazer oficina de escrita criativa, primeiro com o Marcelino Freire, depois com o Fábio Fernandes, e agora e principalmente, com a Márcia Denser, me deu a preparação para o texto mais imediato, escrito em poucos dias ou mesmo em poucos minutos. A meu ver, uma escritora profissional precisa se treinar para desenvolver esta habilidade da escrita contínua e, por vezes, rápida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É difícil começar sempre. Escrever é uma dança do amor: apaixonamento, dança da sedução, até o momento do acasalamento. Difícil é acasalar com a tua escrita. Eu não tomo notas até o presente momento, não pesquiso tanto, porque escrevo um material que não requer propriamente tanta pesquisa, eu acho. Eu não necessariamente gosto disso. É porque meu dia-a-dia é corrido, faço tudo por conta própria e nem sempre posso fazer uma pesquisa alentada, do jeito como eu gosto, porque sim, eu gosto de pesquisar, há dois projetos em curso que me obrigarão a pesquisar certas informações com mais cuidado. Normalmente, ajo de outra forma: eu roubo. Leio autores cujos estilos casam com aquilo que pretendo escrever e roubo o máximo que puder deles, sugo o máximo, bem vampira mesmo. Não chego a parafrasear ou copiar textos de terceiros como fazem autores como Thomas Bernhard, em um processo de autoria tremendamente singular, mas gosto de ler o autor que combina com aquele texto que estou escrevendo ou pretendo escrever. Além disso, quanto menos pressa eu tiver para escrever um texto, mais tempo eu o deixo crescendo dentro de mim. Este é meu verdadeiro processo. É difícil escrever de modo espontâneo algo que não estivesse cozinhando faz tempo na minha cabeça. A história fica ali, me dizendo o que ela quer me dizer, aí sim eu tomo algumas notas, escrevo algumas linhas, parágrafos. É um processo mais recente que percebi ser bastante auxiliar, pretendo adotar cada vez mais estas anotações fugidias. A certa altura, só falta sentar e dar uma forma literária a esta ideia, que pode ser mais ou menos fiel àquele projeto inicial mental. Nesse ponto começa a carpintaria.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não me lembro de ter participado de projeto longo, então não sei responder a isso. Para lidar com o medo, velho companheiro, fui fazer análise. Ele desapareceu em grande medida quando decidi participar do projeto da Festa Literária das Periferias, a FLUP, projeto do Julio Ludemir e do Ecio Salles (que acabou de nos deixar em 22 de julho de 2019), em 2016. A gente tinha uma meta de escrita de um conto a cada duas semanas, com um mote diferente do outro, foi um tremendo desafio, porque na época eu levava meses escrevendo uma só história, eu meio que tinha parado de escrever ou de acreditar que voltaria a publicar. Foi um test-drivegrande, para ver se era isso mesmo, viver para valer este sonho da minha vida. A minha orientadora era a Cristiane Costa, professora de Comunicação da UFRJ, com livro próprio publicado, uma mulher escritora, sabe, e eu ali “Ai , meu Deus”, cheia de insegurança. Mas eu cumpria as tarefas, e os textos surgindo, e ao final do processo consegui emplacar três contos no livro da FLUP de Narrativas curtas que saiu pela editora Casa da Palavra, aí foi o momento do “Opa!”, em que eu passei a acreditar mais em mim, sem tanto medo de não corresponder às expectativas dos outros. Porque a gente pensa que a expectativa do outro é ruim, mas pode ser boa, você só vai saber se tentar escrever e publicar. Aí eu comecei a tentar, e a tentar bastante. Nisso fui conseguindo ser aprovadas em algumas chamadas, em alguns editais, e estamos aí com textos espalhados por várias editoras independentes: Aliás Editora do Ceará, Lendari de Manaus, Venas Abiertas de Belo Horizonte, um texto pela Hueber, editora alemã… Eu sou a rainha da procrastinação, mas os prazos curtos têm me ajudado a cumprir as metas direitinho e me dão a injeção necessária. Me estresso bastante, mas gosto de trabalhar sob pressão, devo admitir. Mas agenda é fundamental para não se perder quando se faz muita coisa. Estou com uma aqui aberta ao meu lado enquanto escrevo, faz muita diferença para melhor esta organização mínima.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu fiz essa conta, eu reviso no mínimo cinco vezes. Peso cada palavra. Atualmente mostro sim. Importuno os seres humanos ao redor para lerem, mendigo o tempo alheio, principalmente a sinceridade. Eu não quero elogio fácil. Gosto particularmente quando o escritor tem um estilo muito diferente do meu, é quando a avaliação fica mais interessante. Tem um escritor para quem eu mostro meus trabalhos que não gosta de quase nada do que eu escrevo, portanto, quando ele me elogia, é como achar ouro em mina esgotada. Uma crítica negativa fere o ego? Muito. Mas o ego está aí no ringue para levar porrada. Você vai crescer como artista com certos comentários. É preciso ter ouvido e sangue frio para esta escuta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minhas primeiras versões são quase todas à mão. Nem que seja uma linha. No curso de escrita da Márcia, eu escrevo no celular e posto direto no campo de texto do Skype, mas isso é incomum. Essa prática até me ajudou a escrever mais vezes diretamente no celular, mas admito, sou muito analógica, entendo pouco de tecnologia. E sim, gosto bastante de escrever à mão, uma artesania deliciosa, há vezes em que risco a página inteira na sequência de algumas linhas, meus textos à mão se tornam labirintos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias têm origens mistas. Vêm desde uma pessoa que eu conheça, um fato que presenciei, uma ideia que me sai de um livro, um filme que vi. William Gibson, autor de “Neuromancer”, disse uma frase sobre os escritores pós-modernos de que gosto muito, vou citar de cabeça, não vai ser ipsis litteris: “É como se nós escritores nos deixássemos influenciar só pela literatura, como se não fôssemos influenciados pela música, a TV, o cinema.” Está aí o Murakami que não nos deixa mentir. Para escrever, acredito que como muitos outros escritores, uso muito a matéria pessoal, mas a diluo na criação. Autoficção eu acho meio chato. O que eu fiz, e ainda faço, é tomar o cuidado de envolver minhas impressões pessoais sobre um argumento em uma história desligada de mim, porque senão depois eu não aguento me ler. Tenho um trabalho criativo, é para criar. Quanto aos hábitos criativos que cultivo, são os de me deixar impregnar de todo o tipo de arte, ciência ou conhecimento desde pequena. Conhecer me fascina e sempre vai me fascinar. Do encontro com o novo, o inteligente e o belo eu tiro o alimento para minhas histórias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou a percepção de que a escrita não é um hobby ou algo para se realizar de modo bissexto, é um trabalho que requer disciplina, dedicação, muito estudo e muita paixão. Eu diria àquela menina que começou a escrever criança para não parar por causa do medo de não escrever bem, porque tinha muita coisa bacana já naqueles tempos, e porque um texto ruim também pode ser publicado, aliás, como disse Bráulio Tavares, um livro ser ruim nunca foi um impedimento para que fosse publicado. E, como qualquer trabalho, um dia ele pode começar ruim, mas, com dedicação e interesse, ele pode mudar para tremendamente melhor com o tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho umas novelas na mente há uns vinte anos que não coloquei no papel, mas verbalizar isso está sendo bom, não sei se elas vão continuar estacionadas nas sinapses mentais. Eu gostaria de ler os livros que os outros têm em mente e que jamais passariam pela minha cabeça. Gostaria também de ver mais histórias de mulheres como eu, negra, classe média, profissional liberal, metida a intelectual, politizada, crítica, enfim, eu queria que a literatura brasileira reconhecesse, em todos os seus gêneros, as múltiplas formas de se ser mulher e negra, sem nos encerrar em fórmulas literárias, em que estamos servindo aos brancos na cama, na mesa ou no banho, como eternas coadjuvantes. Há muitas formas de protagonismo para uma mulher negra, basta se ter boa vontade de se sair da bolha mental para criar em cima dessas possibilidades.