Júlia de Miranda é jornalista, ativista, feminista negra e antirracista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Me considero uma pessoa diurna, gosto bastante de aproveitar minha manhã e tarde. Logo ao acordar reservo um breve momento para meditar sobre como será o dia, faço um bom alongamento e tomo café da manhã. Esse período é totalmente dedicado a mim e minhas necessidades, bem introspectivo, gosto de amanhecer no silêncio e com sol. Durante o café, prefiro mais movimento: escuto música ou algum podcast de notícias. A partir daí já me sinto mais desperta e com a mente funcionando de forma criativa e sagaz.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã. Normalmente, por me considerar bastante criativa, tenho mais facilidade de criar notas mentais sobre algo que gostaria de escrever. Gosto de me aprofundar e pensar criticamente sobre o tema, faço uma espécie de esqueleto no papel (curto cadernos e rascunhos, sou um pouco analógica neste processo) onde elenco as ideias que posso talvez usar. Dependendo do assunto, logo após colocar para fora os insights, ou começo a escrever no momento ou espero algumas horas, como uma forma de deixar a cabeça mais limpa para poder me concentrar com mais facilidade depois. Também costumo não ler muitas matérias ou entrevistas sobre o que vou escrever para não ter muita interferência textual. Acho válido o hábito da leitura diária, seja de livros, artigos ou matérias. Isso estimula o pensamento, dá mais vocabulário e informa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No momento não tenho uma meta rígida. Tenho uma coluna quinzenal no site da revista AzMina onde escrevo sobre questões de negritude, raça e feminismo, então, me organizo para entregar o material. Costumo escrever semanalmente nas minhas redes sociais, em especial no Medium e Instagram, onde costumo expressar meu ponto de vista e ideias sobre algum livro (acadêmico ou de literatura) que esteja lendo, filmes, música, comportamento, política, espiritualidade, viagens e o que mais me provocar reflexão.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende. Cada texto nasce de um modo único e especial, claro que quem tem o hábito de escrever, pode ter mais rapidez e até manias durante o ato. Depois de compilar ideias, naturalmente costuma fluir bem a estrutura do texto. Minha primeira pergunta é “Como vou começar?”. Prefiro uma abordagem criativa e diferente, algo até mais intimista ou que provoque o leitor a continuar a leitura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho necessário olhar para os medos e inseguranças, se permitir sentir tais sentimentos, sabemos que como seres humanos é natural passar por momentos onde eles apareçam. Compreendo e, dependendo do nível ali acessado, podemos nos sentir paralisados ou incapazes de dar conta da demanda, dessa forma autoconhecimento é essencial para driblar autossabotagem e procrastinação, acreditar no próprio potencia é preciso. Se em algum momento me sinto empacada ou sem inspiração, paro por algumas horas. Saio, vou tomar um café, andar pela rua, ouvir música, conversar com algum amigo, tirar o foco um pouco. Depois retomo relendo tudo desde o início como mais gás.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não costumo mostrar. Escrevo, reviso durante a escrita e depois leio 2 vezes no máximo e envio. Claro que quando sai alguma publicação em revistas, jornais e sites, passa pelo olhar de algum outro jornalista, normal até para corrigir algo que pode ter ficado sem sentido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como comentei numa outra resposta, me considero um pouco analógica neste quesito, rs. Acho que o aprendizado fixa mais quando escrevemos, lemos e compreendemos, então, gosto do rascunho à mão. Estou sempre com cadernos em casa, no trabalho ou na bolsa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Claro, acredito que tudo que vivemos (e sentimos) pode ser utilizado para o nosso crescimento e, igualmente no estímulo a uma mente e práticas mais criativas. Gosto de ler, ver filmes, ouvir música, consumir arte em suas variadas manifestações, meditar, conversar com as pessoas (ótimas ideias podem emergir de encontros quando ouvimos ativamente o próximo), me observar (terapia também ajuda) viajar, comer, praticar atividades físicas, caminhar e também relaxar. Considero relevante exercitar o pensamento crítico, é algo construído e que pode nos fazer refletir com mais profundidade e “fora da caixa” acerca de diversos temas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que muita coisa mudou, eu mudei. Então tudo que me constitui como indivíduo passa pelo processo de amadurecimento. Se eu voltasse no tempo diria “Continue! Você pode muito e vai ainda aprender e compartilhar muito conteúdo relevante na sua caminhada. Acredite e tenha coragem!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos e pretendo colocar em prática. Livros que sinto falta são os que debatem temáticas feministas e o racismo de forma honesta e profunda. Tais materiais existem, hoje podemos encontrar, mas muitos ainda se pautam na linguagem acadêmica, que por vezes pode ser elitista e excludente. Considero caro escritores que visam sair do núcleo universitário e optam por dialogar com uma maior parcela de leitores, pessoas diferentes e plurais. Menciono aqui também a demora com que grandes editoras comerciais publicam (e também traduzem quando estes são estrangeiros) o trabalho de pesquisadores e intelectuais negres.
O apagamento do sujeito negro como sujeito histórico, como sujeito que escreve a sua própria história (o negro visto por ele mesmo) foi/é tão perverso que nomes como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e mais uma extensa lista de intelectuais e pesquisadores seja desconhecida por boa parte da população. Se observarmos criticamente e sem o véu da cegueira, é nítido que os estudos da humanidade são sempre eurocentrados: absorvemos e aceitamos os saberes europeus, impostos como a verdade absoluta e inquestionável. Criamos nossa identidade/cultura/intelectualidade baseada na visão europeia ou norte-americana. Não generalizo, mas sem o mínimo de senso crítico, uma gigante parcela de brasileiros não consegue reconhecer (e tem quem não queira) a riquíssima produção e prática made in Brazil. Primeiro, podemos rever historicamente o passado escravista nacional, muito do que sabemos hoje teve início ali: de alguma forma toda violência brutal praticada pelos colonizadores europeus contra a população negra/indígena e o “desfecho” (pois ainda carregamos as feridas seculares) desse período, determinou qual seria a condição social do negro no Brasil. Aliando isso ao racismo estrutural que por décadas tonificou sua raiz, vemos, dentro de inúmeras outras consequências abissais, a crença de muitos no mito da democracia racial.
Reconheço que temos caminhado, a passos lentos, no quesito publicação de autores negres, porém ainda é necessário questionar a atenção dada à produção de autoria negra estrangeira, especialmente norte-americana, e o ato de ignorar intelectuais nacionais. Ainda é difícil encontrar livros de acadêmicos e pensadores pretes. São muitos talentos espalhados em nosso território que merecem os holofotes e que têm muito para contribuir para o nosso aprendizado, pensamento e história.