Julia Codo é editora, escritora e tradutora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha vida nos últimos anos tem sido uma bagunça. Faço uma série de coisas diferentes, então depende muito do período. Vivo de freelas, editando, ou traduzindo texto de outros, outras vezes escrevendo textos encomendados. Se tenho algum trabalho para entregar, procuro me organizar para acordar o mais cedo possível (se não sou obrigada, nunca acordo muito cedo, sou mais notívaga e às vezes tenho insônia – morro de inveja de quem acorda de bom humor às 6 da manhã), então tomo café e tento começar logo com o trabalho pago, para depois, no fim da tarde, poder me dedicar à escrita, embora nem sempre mantenha essa rigidez. Esse seria o dia ideal, mas quase nunca dou conta de tudo que me proponho a fazer.
Também costumo usar as manhãs para resolver coisas práticas: pagar contas, responder e-mails, dar uma olhada nas notícias – com parcimônia, para não arruinar o dia. E tenho enrolado para sair da cama. Tomo um remédio para hipotiroidismo e preciso ficar em jejum de no mínimo 20 minutos antes do café da manhã: essa já é uma desculpa para continuar na cama lendo, fazendo alongamento, acessando as redes sociais, anotando sonhos ou pensando demais. Uma das minhas resoluções para 2019 é: não fazer mais isso. Quando tenho tempo, gosto de começar o dia lendo literatura, ajuda a fazer o cérebro funcionar. Alguns dias também saio para correr de manhã, a endorfina me faz muito bem, mas não tenho um horário fixo para a atividade física.
Ou seja, acho que isso tudo quer dizer que por ora não tenho uma rotina matinal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acabo rendendo mais no fim da tarde, início da noite. Se a coisa está indo bem, vou até de madrugada. Quase sempre tento começar antes, mas parece que tudo passa a funcionar melhor nesse horário mesmo, depois de ficar um tempo pensando e procrastinando. Normalmente demoro para conseguir iniciar, mas, quando engato, nem vejo o tempo passando.
Não tenho um ritual fixo, mas gosto de ler. Quando estou lendo algo que gosto, parece que os pensamentos ficam mais soltos, então começo a ter ideias, que nem sempre estão relacionadas ao que estou lendo; são inclusive bastante desconexas. Fico com vontade de escrever quando leio. Criei o hábito de anotar isso que me vem à cabeça durante a leitura (antes fazia isso no caderno, agora no celular) e, em algum momento, volto a essas notas. Poesia ajuda muito, mas também qualquer tipo de prosa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados. Várias pessoas já disseram que eu deveria escrever todos os dias. Meu sonho é conseguir escrever todos os dias. Tampouco tenho uma meta diária. E acho que seria ótimo ter, porém criar rotinas e metas fixas acaba sempre sendo uma proposta utópica, algo para a partir da próxima segunda-feira.
Precisar de uma rotina de escrita é algo mais ou menos recente, porque, na verdade, passei muitos anos sem escrever, cuidando de outras coisas da vida prática, mudando de país, sabendo que tinha que escrever e não escrevendo. Só quando o resto desmoronou, criei coragem. Há dias em que me imponho uma meta: escrever ou terminar um conto, por exemplo, e me obrigo cumpri-la. Se consigo acabar, é ótimo, mas, mesmo quando isso não acontece – até porque muitas vezes a meta é pouco realista –, rendo bem e fico a ponto de conseguir, então acho que ajuda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sofro muito para começar. Funciona melhor quando sinto que tenho em mente uma história já mais elaborada. As notas nascem mentais, várias delas ficam perambulando na cabeça por uns dias. Vou anotando na medida do possível para não esquecer. Quando acho que tenho algo que dê para iniciar, tento. O primeiro parágrafo na frente do computador é sempre o mais difícil. Demoro, me distraio. É como se o desejo de ter o texto me fizesse não escrevê-lo; as coisas inalcançáveis são sempre mais bonitas e interessantes. Mas quando consigo um início e sinto que ele está mais ou menos satisfatório, geralmente o texto flui com mais facilidade.
A pesquisa também faz parte dessa parte inicial de ir criando um esboço que serve para me dar mais segurança. Mas também faço muitas buscas na internet enquanto escrevo. O Google está enlouquecendo e não sabe mais o que me oferecer de propaganda direcionada, porque pesquiso de tudo: orações subordinadas, quanto mede uma cristaleira, explosões de baleias, batedeiras dos anos setenta, diabetes, oxigênio etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que não lido muito. Elas estão ali o tempo todo. E quanto mais fico ansiosa com minha improdutividade, mais me desconcentro no que estou fazendo. Divago muito. Já me mandaram fazer trabalhos manuais, porque sou muito aérea. Sei que há também em toda essa procrastinação um certo receio do texto não ficar bom o suficiente. Noto que, inconscientemente, vou arranjando pensamentos, atividades, desculpas para não fazê-lo. Isso atrapalha, embora esteja cada vez mais convencida de que é preciso buscar mecanismos para contornar essa característica, sofrer menos, mas também entender que é dessas divagações, afinal, que nascem as ideias. Funciono um pouco assim. Mas tenho criado táticas para enganar a mim mesma, como pensar: “eu não estou escrevendo, isto que eu estou fazendo é só uma anotação, no máximo um rascunho” – e, quando me dou conta, o texto saiu.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes, não sei quantas. É até uma dificuldade saber quando chega a hora de parar de revisar. Se abrir um texto meu agora, com certeza vou querer mudar algo. Acho que acabo de terminar um livro de contos (se não inventar de revisar tudo outra vez ou de incluir alguma coisa nova). É difícil achar que está pronto, mas talvez seja um livro possível. Às vezes, releio uma frase que há meia hora me pareceu ótima e acho horrível. Sou geminiana, mas não sei se acredito no horóscopo.
Tenho mostrado os trabalhos para outras pessoas. Antes era muito difícil, agora sinto que está mais fácil. Faço parte de um grupo de escrita que já está junto há algum tempo, num espaço chamado Escrevedeira. Estudamos um tema por semestre (o curso é dado pela Noemi Jaffe), escrevemos e lemos os textos uns dos outros. Eles são excelentes leitores, aproveito muito o que vem de lá. E mostro outros textos que escrevo para amigos escritores ou que gostam de ler. Precisa ser alguém que pede ou se oferece para ler, porque também tenho receio de incomodar os outros com pedidos inseguros de leitura.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os dois, mas cada vez mais só no computador (e até no celular). Nem sempre estou com o caderno ao lado, além disso, tenho um problema: não entendo minha letra. É como se a mão não acompanhasse a velocidade do pensamento, a letra sai apressada, deformada. Ou talvez só não tenham me ensinado bem caligrafia. A minha escrita também não é muito linear; no papel, faço muitas rasuras e fico puxando flechas labirínticas para cima e para os lados. No computador, apesar dos erros de digitação, consigo organizar melhor as incorreções e alterações do processo. Mas gostaria de ter esses cadernos lindos, que ficam guardados e depois podem ser contemplados muitos anos depois. Os meus são bem feios mesmo; uma vez notei que estava escrevendo na diagonal, ignorando as linhas. Mas gosto de escrever à mão quando viajo de ônibus, vai entender. Escrevo a lápis, para poder apagar.
E é estranho, mas tenho escrito muito no celular. Antes eram só algumas ideias e frases soltas, porém, ultimamente, tem saído algo maior, ainda um rascunho, mas já um texto. Estou usando um aplicativo de notas que depois acesso no computador com uma senha. Facilita muito a vida, porque copio e colo no Word e porque o celular, hoje em dia, é aquilo que está sempre por perto. Acho que já me conformei com os possíveis efeitos cancerígenos das ondas radioativas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da leitura de várias coisas diferentes, de olhar pela janela, observar a rua, escutar a conversa alheia, lembrar de coisas, prestar mais atenção nos sonhos, ver filmes, exposições. Às vezes, uma imagem me chama a atenção, por exemplo, e fico obcecada com ela, vou criando uma narrativa. O mesmo com uma frase, uma palavra…
Vou juntando várias coisas. Tenho ideias de pé no metrô, deitada na cama antes de dormir, almoçando, tomando banho, nos momentos mais inapropriados. Elas me pegam distraída. Quando estou fazendo um trabalho que considero chato e não tenho vontade de fazer, geralmente tenho muitas ideias. Um dia escrevi quase meio conto no bloco de notas do celular enquanto deveria estar editando um texto didático.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho conseguido demorar menos para começar. E também, aos poucos, vou me sentindo mais segura.
Diria para não deixar de escrever. Para não idealizar a escrita, trazê-la para um lugar menos pretensioso, alcançável. Para começar de qualquer modo, que às vezes parece que não vai sair nada, mas vai. E também que a escrita é uma forma de lidar com a dificuldade de entender as coisas, uma forma de organização mental, talvez a mais importante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uns dois projetos começados – que estão meio empacados, mas que agora quero me dedicar a eles –, um deles com uma amiga artista plástica, que mistura texto e imagem. E uma ideia para um romance (ainda precisa amadurecer).
Se soubesse que livro é esse que ainda não existe, estaria escrevendo, ou desejando eternamente escrevê-lo.