José Vicente Santos de Mendonça é professor de Direito Administrativo da UERJ e professor do mestrado e do doutorado da Universidade Veiga de Almeida (RJ).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Talvez a coisa mais próxima a uma rotina matinal seja me sentir culpado por não estar fazendo exercícios físicos. Mas aí já arremato a culpa com um café expresso duplo e um pão com qualquer coisa, sinto a cafeína apitar nas veias, e logo as promessas da calistenia se descobrem afinal irredimíveis.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor no início do meu dia. Há um conceito, chamado depleção do ego, que indica a redução progressiva do autocontrole ao longo da jornada diária. Depleção do ego é só uma forma técnica de dizer que você, – como todo mundo -, vai ficando de saco cheio ao longo do dia. Depois que li sobre isso, passei a tentar realizar as atividades mais nobres pela manhã.
Não tenho nenhum ritual de preparação. Não sou desses que só escreve em papel de gramatura, usando canetas da Indonésia, ao som do Mantra para Dois Pianos. Cursei faculdade de jornalismo junto com direito; sei bem que escrever, quando faz parte do ganha pão, tem que ser feito de modo prático.
Minha única exigência é ausência de barulho. Já até tentei escrever com música, lembro que estava empolgado com o álbum Bleach, do Nirvana, só escrevia ouvindo-o; foram péssimas aquelas redações na quarta série.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou contra metas de escrita. É como estabelecer metas diárias de beijos de paixão. Embora muitos autores afirmem que se deve escrever todo dia, sou, nesse ponto, romântico. Só escrevo quando sinto que tenho algo a dizer e meu djin está no modo dervixe rodopiante.
Fico impressionado com a produtividade gerada, na academia, por exigências ao estilo CAPES. O garoto tem vinte anos, cinquenta e sete artigos, dois livros, mas, no fundo, é tudo um lixo, quase sempre escrito num português péssimo. E, talvez por isso, ninguém esteja lendo nada: se tudo é uma enorme geleia, o negócio é escrever, e não ler.
Na academia do direito ocorreu o mesmo que na literatura contemporânea: todo mundo virou um autor ruim cujo único leitor é si próprio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Anoto algumas ideias em arquivos de Word, palavras, parágrafos, fragmentos de pensamento. Por vezes, começo artigo tendo, de concreto, apenas o título. Outras vezes, é uma frase: já escrevi artigo acadêmico apenas para encaixar uma frase. Algum aluno fala algo, eu anoto num papel, depois, é claro, perco o papel.
Tais notas costumam dormir por um bom tempo, que, na maioria das vezes, é a eternidade. Começo artigos que não dão em nada, prefácios para livros jamais escritos, resenhas imaginárias. (O livro dos textos que nunca vou terminar já está na terceira edição.)
As notas que viram projetos realizados são poucas, e a realização costuma se dar por fatores externos: algum editor me cobrando texto, um colega me pressionando, uma colaboração que já embarriguei tantas vezes que começa a ficar chato.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É terrível. Sou exigente comigo mesmo, então às vezes caio num semiestado de afasia intelectual. E não é só isso: o pesquisador decente está sempre a um passo da irrelevância. Apenas os joselitos desse mundo chupam da fruta doce que é a ilusão de relevância.
A solução que funciona comigo é, simplesmente, deixar-se levar pelas exigências de prazos, e, para projetos longos, fazer caminhadas pela praia, tentar estabelecer algum grau de racionalidade procedimental, que no fundo vai dar errado, e logo estarei desesperado escrevendo monografia em uma semana, dissertação em um mês e artigo em dois dias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Diversas vezes. Só se pode ser bom escritor quando se é bom editor. E os textos costumam melhorar depois que você os deixa descansar um pouco e os submete a uma audiência crítica, qualificada e de boa fé. Na academia do direito, ainda são raros os workshops, mas é prática a ser estimulada.
Voltando à revisão: revejo para tornar meu texto o mais natural possível. Escrever de forma simples é coisa difícil.
Ainda lembro da minha impressão, no primeiro período da faculdade, quando me deparei com importante manual de direito civil. “Meu deus”, pensei, “como isso é mal escrito.” Depois, você vai naturalizando o idioleto, e, lá pelo quinto período, começa a soltar uns ademais aqui e ali. Mas não é bacana. Escreva de modo simples. Outrossim. Adrede. Hipérbatos. Debalde. Você consegue imaginar uma carta de amor com debalde? Nada pode ser mais antierótico. Morte ao debalde.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo desde sempre no computador. Pensando em tecnologia em sentido mais amplo, escrevo na e para a internet desde 1997. Tive blogs, editei e-zine, sou contemporâneo e, à época, não estava tão distante de um pessoal que, hoje, virou escritor. Dentre outros, Inagaki, Clara Averbuck, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Cecília Giannetti. Sou um escritor contemporâneo internético descoladão incubado. Se bem que ando escrevendo coisas contemporâneas de impacto, e que alguns acham bizarras, como uma lei de licitações.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não tenho ideia. Suspeito que venham de leituras de artigos e livros, filmes, debates com alunos e colegas, reflexões individuais.
Não tenho propriamente recomendação de hábito para se manter criativo, senão um: evite ler apenas textos jurídicos. Se é importante conhecer a dogmática jurídica, é igualmente importante ler filosofia, ciência política, literatura, sociologia, antropologia, história da arte, psicologia. Isso pode parecer dica de um juristão diletante do século XIX, mas funciona. Se não servir para nada, ao menos você se poupa de ler nossa horrorosa literatura jurídica.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Fui escrevendo de modo cada vez mais direto. Faço, hoje, esforço para tornar o texto cada vez mais legível pela internet, especialmente no celular.
Não é empobrecimento: é exatidão. Escrever dentro de limites é coisa revolucionária. Se, antes, textos jurídicos eram maçarocas coimbrãs, hoje, o que faz a diferença é a ideia de impacto, escrita de modo límpido.
Escrever para sites como o JOTA e o CONJUR, e para magazines como a Inteligência, liberou-me das amarras da escrita acadêmica. Aliás, vamos ser sinceros, as ideias circulam é por esses sites. Depois, vão morrer nas Qualis.
Revistas jurídicas estão deixando de ser relevantes, exceto para a manutenção do emprego de professores de pós-graduação.
Se voltasse à tese, escreveria os primeiros dois capítulos – os capítulos mais teóricos da obra – de forma mais acessível. Em alguma medida, você, doutorando, é levado a carregar a mão na profundidade, para se adequar ao que espera que a banca espera. Teses de doutorado sofrem, por isso, de sobrepeso teórico.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de ler a versão do Quixote de Pierre Menard. Pena que ela não exista. Mas a crítica diz que é excelente.
Pensando em projetos, gostaria de escrever textos não jurídicos. Meu pai outro dia me perguntou, “e quando você vai parar de escrever só esses textos chatos de direito”, mas os textos jurídicos, pai, constroem minha reputação como jurista. Quando quitar meu apartamento, vou começar a escrever textos literários. Até lá, ainda preciso falar sobre textos jurídicos que ninguém lê.